PICICA: "Retrato da selvageria policial no centro de São Paulo, com um
lembrete: não seremos derrotados, enquanto “conseguirmos ficar juntos”"
O dia em que Marcuse encarou a PM
Retrato da selvageria policial no centro de São Paulo, com um lembrete: não seremos derrotados, enquanto “conseguirmos ficar juntos”
Por Deni Rubbo | Fotos Ponte
Nas explosões do ano de 1968, o filósofo Hebert Marcuse
foi perguntado em uma palestra se se poderia combater o medo com a
violência. O autor de O homem unidimensional respondeu que a
violência é algo muito perigoso aos mais frágeis. E acrescentou que
existem diferentes aspectos de violência com funções igualmente
diferentes. Assim, existiriam dois modus operandi que regulam a
violência: a violência da agressão e a violência da defesa. Ou seja,
existe a violência da polícia, do Exército, da Ku Klux Klan e uma
violência de oposição que responde a essas manifestações agressivas de
violência.
Hoje em São Paulo, mais de 45 anos depois das palavras
de Marcuse o cruzamento da violência da agressão com a violência de
oposição cruzaram-se no cruzamento da Ipiranga com a avenida São João.
Trabalhadores, moradores do centro, negros, mulheres, grávidas, crianças
e sem teto enfrentaram a violência da sociedade, a violência legal, a
violência institucional. Sua violência, a violência dos moradores (sem
moradia) foi defensiva. Eles têm razão.
Por volta das dez horas, no cruzamento, aglomeraram-se
uma multidão de pessoas e alguns ocupantes da Frente de Luta por Moradia
(FLM) que haviam saído do prédio logo após a liminar de reintegração de
posse em um hotel abandonado na São João, para observar os próximos
movimentos da ação policial. Havia muita indignação. A polícia fez um
cordão e não deixou ninguém passar. Depois de alguns minutos, um
policial chamou uma das pessoas que ali se encontrava e disse:
– Não queremos entrar em conflito. Só entraremos em ação caso sejamos provocados. Prometemos.
A moradora concordou com o policial, virou-se para o restante do grupo e anunciou:
– Nós não vamos arremessar nada neles, nem pedras, nem
paus. Nós nunca damos o primeiro tapa, ouviram? Por favor, vamos
permanecer aqui de maneira pacífica.
Todos concordaram, aplaudiram e cumpriram com o prometido.
Quinze minutos depois, a mesma polícia, descumpriu sua
promessa e executou a violência da agressão, explicada por Marcuse.
Balas de borracha e gás lacrimogênio espalharam-se pelas ruas tão
rapidamente que quanto mais se corria, mais elas apareciam. A ardência
dos olhos só era um detalhe. Nesse mesmo momento, a televisão transmitia
que “vândalos” haviam iniciado a violência e a polícia simplesmente
estava retaliando. Curiosamente, graças ao manejo de habilidade
linguística da sociedade estabelecida, nunca se chama a violência
policial de violência. Por outro lado, com toda facilidade, se nomeia
violência à ação dos moradores que se defendem da polícia. Nesse mesmo
momento uma mulher grávida caiu na rua, bem ao meu lado. Rapidamente a
socorri e então ela me disse.
– Precisamos resistir, eu e ele (o bebê). Precisamos de futuro. Precisamos estar juntos.
Desnorteado, apavorado, em frações de milésimos de segundos, consegui não sei como nem porque lembrar de Eles não usam Black-Tie
(Leon Hirzman, 1981) e da cena em que Maria (Bete Mendes), grávida,
levava chutes na barriga da polícia. E aquelas palavras, tão fortes,
intensas, também me recordaram outra cena de um outro filme, Segunda Feira ao sol
(Fernando León de Aranoa, 2002) em que o personagem Sanca (Javier
Bardem) é questionado sobre o fracasso da greve que desencadearam e,
posteriormente, foi pretexto para sua demissão. “De que adianta? Não
conseguiram nada e, além disso, ninguém mais se lembra”. Ele responde:
“fizemos que as pessoas soubessem e conseguimos ficar juntos”. Nem ela,
nem eu, nem quem estava lá vai esquecer.
Para mim, de agora em diante a música de Caetano Veloso,
“Sampa”, inspirada no cruzamento da Ipiranga e a avenida São João ganha
uma triste paródia: a “dura poesia concreta das tuas esquinas”
tornou-se repressão concreta de tuas armas; a “deselegância discreta de
tuas meninas” transmutou-se para estupidez indiscreta das autoridades,
do povo oprimido pela falta de moradia, da propriedade sagrada que
expulsa ocupantes, da feia fumaça que circula as ruas, intoxica, arde.
Eu vejo surgir policia por todos os cantos, mas vejo, em meio às nuvens
de gás pimenta, o “possível novo quilombo de Zumbi”
Fonte: OUTRAS PALAVRAS
Nenhum comentário:
Postar um comentário