setembro 11, 2014

"Desafiando a hegemonia". Escrito por Ruy Braga

PICICA: "Se confiarmos nas atuais enquetes, Marina Silva apresenta boas chances de derrotar Dilma Rousseff em um eventual segundo turno. Uma guinada desta magnitude na cena política não se improvisa. Mas como interpretá-la? Há tempos, tenho insistido que a hegemonia lulista resulta da convergência entre duas formas distintas de consentimento. Por um lado, o consentimento ativo das direções dos movimentos sociais, tendo os sindicalistas à frente, que se acomodaram ao aparelho de Estado e aos fundos de pensão das empresas estatais. Por outro, o consentimento passivo das classes subalternas que, seduzidas pelas políticas públicas redistributivistas implementadas pelo governo federal, permaneciam ao lado do Partido dos Trabalhadores. Vale sempre destacar que o adjetivo “passivo” qualifica o substantivo “consentimento” e não os próprios subalternos.

No entanto, a atual desaceleração econômica decorrente do aprofundamento da crise internacional e da diminuição de investimentos domésticos ameaça o regime hegemônico lulista. Afinal, uma economia em compasso de espera castiga o mercado de trabalho. Além disso, o aumento do endividamento das famílias trabalhadoras combinado ao aprofundamento da precarização do trabalho amplificam o descontentamento popular com o atual modelo de desenvolvimento. Percebendo os riscos inerentes à desaceleração da economia, as classes subalternas brasileiras colocaram-se em alerta."


Desafiando a hegemonia Imprimir E-mail
Escrito por Ruy Braga   
Quarta, 10 de Setembro de 2014



Se confiarmos nas atuais enquetes, Marina Silva apresenta boas chances de derrotar Dilma Rousseff em um eventual segundo turno. Uma guinada desta magnitude na cena política não se improvisa. Mas como interpretá-la? Há tempos, tenho insistido que a hegemonia lulista resulta da convergência entre duas formas distintas de consentimento. Por um lado, o consentimento ativo das direções dos movimentos sociais, tendo os sindicalistas à frente, que se acomodaram ao aparelho de Estado e aos fundos de pensão das empresas estatais. Por outro, o consentimento passivo das classes subalternas que, seduzidas pelas políticas públicas redistributivistas implementadas pelo governo federal, permaneciam ao lado do Partido dos Trabalhadores. Vale sempre destacar que o adjetivo “passivo” qualifica o substantivo “consentimento” e não os próprios subalternos.
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No entanto, a atual desaceleração econômica decorrente do aprofundamento da crise internacional e da diminuição de investimentos domésticos ameaça o regime hegemônico lulista. Afinal, uma economia em compasso de espera castiga o mercado de trabalho. Além disso, o aumento do endividamento das famílias trabalhadoras combinado ao aprofundamento da precarização do trabalho amplificam o descontentamento popular com o atual modelo de desenvolvimento. Percebendo os riscos inerentes à desaceleração da economia, as classes subalternas brasileiras colocaram-se em alerta.
Enquanto os setores organizados protagonizam greves e o subproletariado segue firme com o governo, uma massa de aproximadamente 45 milhões de cidadãos formada por jovens entre 16 e 33 anos e mais escolarizada que a geração anterior, percebendo renda individual semelhante à dos pais, desgarra-se da hegemonia lulista, avizinhando-se de Marina Silva. Segundo dados divulgados recentemente pelo Instituto Datapopular, sete em cada dez jovens brasileiros estudaram mais do que seus pais, 65% deles trabalham e quatro em dez conciliam trabalho e estudo. Além disso, nos lares onde vivem estes jovens trabalhadores, de cada R$ 100,00 que um pai injeta nas finanças domésticas, o filho coloca R$ 96,00. Politicamente inexperientes e sindicalmente desorganizados, não é de se estranhar que 59% deles acreditem que o país estaria melhor se não existissem partidos políticos [1].
Apesar de reconhecer certo progresso sócio-ocupacional na última década e meia, essa massa fartou-se do atual modelo. Nem Aécio Neves, nem Eduardo Campos lograram seduzi-la. Afinal, ambos são políticos tradicionais, ou seja, totalmente identificados com o sistema partidário criticado pelos jovens. Mas o que dizer da líder de um partido que é uma “rede”, uma mulher que não é “nem de esquerda, nem de direita”, oriunda de um grotão esquecido do país, cuja trajetória de vida é ligada à preservação ambiental e que fala o tempo todo em “nova política”?
Marina Silva surfa confortavelmente na onda “mudancista”. De quebra, ela absorveu parte do voto das classes médias tradicionais animadas com a possibilidade de derrotar Dilma Rousseff. De fato, a pesquisa do Instituto Datafolha que cruzou dados eleitorais com o perfil político dos brasileiros mostra que, em um provável segundo turno contra Dilma, Marina seria a escolhida pelos eleitores de direita (49% contra 35% de Dilma) e de centro-direita (50% contra 38% da atual presidenta). Segundo o Datafolha, parte importante destes eleitores apoiam Aécio Neves, o candidato mais associado às opiniões direitistas [2].
Apesar de a presidenta vencer Marina Silva por uma boa margem entre os eleitores identificados com opiniões à esquerda (50% a 43%), o que mais chama atenção nesta enquete é a vantagem obtida pela ambientalista entre eleitores de centro-esquerda (47% a 45%) e de centro (48% a 43%). Trata-se de praticamente metade do eleitorado brasileiro (48%) e, apesar de a pesquisa não cruzar dados relativos à idade, é razoável supor que esta fatia acolha parte considerável dos 45 milhões de eleitores entre 16 e 33 anos. Neste sentido, ao contrário do que dirigentes petistas têm afirmado, simplesmente não há como concluir que a maioria dos jovens que flertam com Marina Silva votem à direita [3].
Na realidade, ainda que distorcida pelo rebaixamento geral de um debate político aprisionado pela polarização PT/PSDB, a aproximação entre a juventude trabalhadora e a candidata ambientalista manifesta eleitoralmente um desejo progressista de mudança social. Trata-se de uma ilusão, pois, certamente, Marina Silva faria um governo mais neoliberal do que Dilma Rousseff. No entanto, o desejo é legítimo e merece respeito. Os jovens trabalhadores que vivem entre um emprego sem futuro e uma faculdade particular noturna de baixa qualidade querem aquilo que o atual sistema político não é capaz de garantir, isto é, a ampliação de seus direitos sociais.
Além disso, eles pressentiram o risco de retrocesso histórico em caso de vitória do candidato tucano. Afinal, não foram os governos do PSDB que produziram desemprego e sucatearam os serviços públicos? Mas o que dizer de uma ex-militante do Partido Comunista Revolucionário (PRC), companheira de Chico Mendes, senadora pelo PT e dissidente, à época (lembremos) pela esquerda, do lulismo? A ex-ministra do meio ambiente surgiu ao olhos desta massa precarizada como uma alternativa confiável à fadiga do lulismo.
Pessoalmente, considero Marina Silva politicamente oportunista, ideologicamente conservadora e economicamente neoliberal. Em suma, uma péssima escolha. No entanto, a imagem que estes jovens despolitizados, por mais de duas décadas de neoliberalismo e de lulismo, parecem ter da candidata pessebista é bem diferente. Ela identificou-se à pulsão plebeia que anima o ciclo de lutas sociais inaugurado pelas Jornadas de Junho, capitalizando o desejo de progresso ocupacional enraizado na efetivação e na ampliação dos direitos da cidadania. É um baita estilhaço vindo diretamente da explosão das ruas no ano passado.
Evidentemente, Marina Silva jamais seria capaz de disputar a direção dos movimentos sociais com o PT. Ou seja, o consentimento ativo das direções permanece intocado. Isto garante ao governo um enorme poder de reação. Ademais, o subproletariado não se afastou um mísero centímetro de Dilma Rousseff. Ou seja, a eleição segue indefinida. Entretanto, Marina Silva disputa com o lulismo, e esta é a grande novidade do momento político atual, o consentimento passivo dos subalternos. E o jovem precariado urbano, isto é, aquela massa precarizada de trabalhadores do setor de serviços acantonada nas periferias das principais cidades brasileiras, poderá garantir a vitória da candidata pessebista.
Afinal, não devemos nos esquecer que a ampla maioria dos milhões de jovens que foram incorporados ao mercado de trabalho na última década recebendo pouco mais de um salário mínimo é formada por mulheres não brancas. A identificação com uma candidata mulher, negra, pobre e trabalhadora não é acidental. Na verdade, Marina Silva é um tipo de liderança que se encaixa à perfeição nos sonhos desta massa em busca de alternativas. E ainda que a frustração popular seja certa, precisamos reconhecer que sua eventual vitória fluiria diretamente das contradições do atual regime hegemônico.

Notas:

[1] Para mais detalhes sobre os dados desta pesquisa, ver Alan Rodrigues. “O que os jovens pensam sobre a política”. Istoé, n. 2336, 3 de setembro de 2014.
[2] Para mais detalhes, ver Ricardo Mendonça. “Centro-direita sustenta liderança de Marina no 2º. Turno, diz Datafolha”. Folha de S. Paulo, 7 de setembro de 2014.
[3] Ver Valter Pomar. “Quem não sabe contra quem luta não pode vencer”. Blog de Valter Pomar. Set. 2014.

Ruy Braga é professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da mesma instituição.

Originalmente publicado em http://blogdaboitempo.com.br/2014/09/08/desafiando-a-hegemonia/

Fonte: Correio da Cidadania

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