setembro 07, 2014

"O erro crasso de Marina", por Moysés Pinto Neto

PICICA: "Esse texto talvez seja usado oportunisticamente para defender outra candidatura. Nesse caso, lembro que o plano de Marina está a frente dos de Dilma e Aécio mesmo na sua versão revisada. Lembro que nenhum dos outros dois concorrentes principais assumiu posição favorável ao casamento gay. Por isso, cuidado com o oportunismo. Quem critica esse ponto e deseja coerência deve partir para aquelas candidaturas que efetivamente assumem a pauta, não apenas atacar inimigos políticos sem qualquer coerência."



O erro crasso de Marina

Uma das polêmicas que tem alimentado as eleições é a posição das principais candidatas acerca do casamento gay. Marina Silva, particularmente, vem sendo cobrada à exaustão no tema: primeiro, por ser evangélica; segundo, por ter retificado seu programa eleitoral que vinha a acolher, para surpresa geral, a proposta, para em seguida retirar o trecho e alterar para “união civil”. Apesar do que vem sendo dito, a rigor se isso veio por influência de Malafaia ou não é algo que fica em segundo plano em relação ao fato de que essa sempre foi a posição de Marina. É possível encontrar pilhas de entrevistas em que ela declara ser a favor da união civil e inclusive da adoção, mas contrária à extensão do casamento. Por isso, contra tudo que se vem escrevendo sobre o assunto, acho verossímil a versão de que houve um erro no lançamento do programa. Só que é o caso em que a correção é o erro e o erro estava certo.

A posição de Marina em primeiro lugar é eticamente errada. Ela cria desigualdades que enfraquecem a diferença. Trata-se de tratar injustamente quem tem direito a ser tratado com igualdade. A situação do casamento entre homossexuais é rigorosamente igual à situação dos heterossexuais. Quando Marina evita reconhecer essa igualdade, ela age com violência e preconceito, apesar de pensar que não. Nenhuma justificativa que não seja uma interpretação religiosa dogmática legitimaria o exercício da discriminação. Além disso, a posição é estrategicamente errada. Perder o apoio de poucos fundamentalistas extremados em detrimento do apoio da comunidade LGBT é um cálculo político completamente equivocado e reforça o rótulo pejorativo que já é colado à candidata. Pior ainda sendo um recuo: mesmo sendo verdadeira a afirmação de que houve equívoco na redação do texto, a própria resposta positiva após a publicação deveria ter feito a candidata assumir a posição, mesmo contra sua vontade. Mas não é característica de Marina esse tipo de recuo. A rigor, nenhum dos argumentos é capaz de a convencer. O último, de caráter estratégico, porque se afirma uma candidata que não embarcaria nesse tipo de negociata. Em várias entrevistas anteriores ela afirma que admite perder votos para jogar com transparência em relação aos eleitores. É claro que cabe um ceticismo aqui, porém essa vai acabar sendo a justificativa. Quanto ao primeiro argumento, mais de caráter moral, tampouco é aqui o jogo de Marina. Sua posição acerca do assunto é liberal: a moral é uma questão privada que não se confunde com a tolerância da esfera pública. Assim, nenhuma moral pode ser abrangente a ponto de vincular politicamente os indivíduos em termos comportamentais, trata-se de assunto particular que não entra em contato com o fazer público. Na esfera pública, vige a igualdade de direitos. Alguém pode, portanto, nutrir uma posição de resistência ao casamento gay na sua intimidade, mas não impedir a união civil no âmbito público em que os direitos são garantidos independentemente das convicções privadas. É claro que Marina está errada em vários sentidos, mas vou tentar mostrar porque internamente à sua própria posição ela está em contradição.
 
Para quem conhece autores como Carl Schmitt, Walter Benjamin, Jacques Derrida e Giorgio Agamben, a separação liberal entre Estado e Igreja não tem a mesma força retórica. O que eles exploraram nesse terreno foi como as instituições políticas, apesar de trocarem os nomes, continuam mantendo as velhas estruturas religiosas. É o caso do conceito de soberania, por exemplo, ou mesmo de dignidade. São conceitos teológicos deslocados, mas estruturalmente não cansam de lembrar sua procedência. Em todo caso, apesar dessas suspeitas que compartilho, convenhamos que jogar no tabuleiro da secularização pode ainda ser dos melhores jogos que dispomos para lidar pragmaticamente com a religião hoje em dia. Assim, se Marina aceita jogar esse jogo, joguemos. Talvez isso seja melhor que a postura do governo atual, cujas negociações se estabelecem com religiosos como religiosos, isto é, eles ingressam na esfera pública com sua religião. O que Marina parece propor, ao contrário, é manter sua religião em nível privado separando-a das decisões políticas no âmbito público. Mas ela consegue isso no caso do casamento civil? A resposta é um sonoro NÃO.

A falácia na argumentação de Marina está em pressupor que o casamento é uma questão de convicção privada. É verdade que, pelos problemas que estão no início do parágrafo anterior, o nomen iuris do instituto casamento é conservado em relação ao sacramento cristão. No entanto, trata-se de duas coisas diferentes: uma coisa é o sacramento assumido diante da sua própria religião, outra coisa é a instituição estatal que se norteia por regras públicas e universais. Assim, apesar de o nome ser o mesmo, o casamento civil é laico e público. O problema da laicidade, da secularização e inclusive do que se poderia chamar de “religião civil” baseada em princípios republicanos é mais complicado que parece, mas não passaria na cabeça de um estudante de direito que quando estuda os dispositivos do Código Civil acerca do casamento estaria diante de um sacramento religioso. A justificativa de Marina, por isso, é completamente absurda e sem sentido. Ela é tão inconsistente que faz questionar a promessa de que manteria essa separação estrita, já que, apesar de eu já ter escutado de vários juristas (inclusive um muito cult) que a interpretação da Constituição não comporta outra interpretação que a do casamento só ser possível entre homem e mulher, ela tampouco proíbe que haja casamento entre pessoas do mesmo sexo. Em outros termos, a Constituição simplesmente afirma que o casamento é isso, mas não prevê a proibição de que possa ser estendido para casos análogos. E o casamento de pessoas do mesmo sexo é rigorosamente análogo. Mas, diz o pastor Malafaia, e como se reproduzirão? Ora, o casamento não comporta obrigação de ter filhos e, assim como casais com casos de infertilidade, o casal homossexual pode recorrer à adoção ou outras técnicas de reprodução assistida para gerar descendência. Portanto, nada, absolutamente nada justifica a posição de Marina Silva acerca do tema, nem mesmo sua visão de combinação entre pluralismo religioso no âmbito privado e tolerância civil no público. O sacramento religioso permanece rigorosamente intocado caso haja casamento gay, porque o casamento no âmbito do Estado não se confunde com a esfera religiosa. Não por acaso são usadas cerimônias ou momentos distintos de cerimônia, e as autoridades que as realizam são distintas. Confundir-se isso é fazer invadir perigosamente um domínio de crenças no outro, cometendo justamente o erro que Marina, em uma racionalização inaceitável do preconceito, pratica. Espero que alguém possa a convencer a reassumir o plano original e revisar sua posição, independentemente de ser eleita. Sempre é bom – sob qualquer circunstância – que alguém do seu peso político saiba qual é o lado certo no caso.

PS: Esse texto talvez seja usado oportunisticamente para defender outra candidatura. Nesse caso, lembro que o plano de Marina está a frente dos de Dilma e Aécio mesmo na sua versão revisada. Lembro que nenhum dos outros dois concorrentes principais assumiu posição favorável ao casamento gay. Por isso, cuidado com o oportunismo. Quem critica esse ponto e deseja coerência deve partir para aquelas candidaturas que efetivamente assumem a pauta, não apenas atacar inimigos políticos sem qualquer coerência.

Fonte: O Ingovernável

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