PICICA: "A recontextualização que o plágio desvela
parece ser um elemento fundamental da comunicação. Pois do que
consistem nossos diálogos senão de palavras copiadas e reorganizadas de
forma a fazer sentido em um novo contexto? Se toda expressão é ao mesmo
tempo copiada e única, a linha entre a imitação e a inovação é tão tênue
que toda e qualquer distinção está fadada a ser arbitrária. Sobre isso,
Hegel já teria afirmando: “Quanto aos efeitos que a honra deverá
ter contra o plágio, de tal modo se deixou de ouvir a palavra plágio ou
roubo intelectual que temos de concluir ou que a honra já eliminou o
plágio, ou que o plágio deixou de ser atentatório da honra e desapareceu
o correspondente sentimento, ou, então, que a menor alteração numa
forma exterior se tem já como uma tão alta originalidade, um tão
autônomo pensamento, que a ninguém ocorre a ideia de plágio”."
verbete #7: [plágio]
Assim como esse texto é constituído por plágios, qualquer trecho ou o texto inteiro, é livre para ser copiado
Se não há nada de novo no mundo por qual razão ainda somos tão possessivos com nossas ideias?
Ainda na infância fomos ensinados que a
maioria das nossas ideias já foi pensada. Quantos de nós não passaram
pela situação de ter uma ideia excitante e promissora para rapidamente
ser repreendido por um adulto afirmando que não há nada novo em nossas
propostas ou que isso já havia sido pensado anteriormente e não
funcionou. Nosso método de educação é bastante claro, devemos aprender
(de preferência calados) e escolher entre as ideias e crenças já em
circulação, dificilmente somos estimulados a desenvolver posições
próprias.
O conceito de propriedade intelectual
parece ainda mais enraizado ao senso comum do que o de propriedade
material e mesmo que muitos intelectuais tenham afirmado que toda
propriedade é um roubo (e entre as movimentações anticapitalistas,
anarquistas ou ditas “pós-modernas” isso já tenha virado um clichê
teórico) dificilmente tal colocação é dita em relação às ideias. A
grande maioria das pessoas desconsidera que conceitos, ideias e obras
são frutos de uma cultura e de um tempo, não emergindo do nada. Afirmar
que uma ideia possa surgir de um único individuo é desconsiderar toda
uma historicidade e simplificar grosseiramente as redes de influências
variadas que os processos criativos sofrem. Além disso, não há como
fugir da linguagem, no momento em que um sujeito passa a enunciar um
discurso qualquer, este já está imerso em algo dado, a própria
linguagem. O grande problema está na naturalidade em que somos levados a
declarar ideias, conceitos, objetos e até pessoas como sendo
propriedades. A lógica do mercado econômico adentra não só nas nossas
relações de trabalho e consumo, mas parecem também invadir a vida
cotidiana, alterando a forma com que nos relacionamos, pensamos e
criamos.
A noção de que ideias possam ser tratadas
como propriedade privada acaba por afetar nosso comportamento critico,
deixamos de tomar um posicionamento questionador em relação à história
e a toda a herança que podemos retirar dela. O passado, artistas e
pensadores tomam formas estáticas e religiosas, como se fossem esferas
intocáveis e não passíveis de critica. Importante notar como fazemos
pouca distinção entre os pensadores e seus pensamentos, o que acaba por
levar a um culto à personalidade que impede qualquer consideração útil
sobre os trabalhos destes pensadores e artistas. Tal culto personalista
promove uma cruel inversão, já que se torna mais importante saber quem é
o pensador que entrar em contato com seus pensamentos. Assim, não
importa mais o que é emitido, apenas quem emite, tornando a posse da
ideia o fator mais relevante para mensurar o valor das preposições ou
obras. Será que um autor é independente de seus trabalhos? A obra de um
autor pode ser reduzida a sua vida? Se tal questionamento for de fato
importante, talvez devêssemos nos atentar que às vezes uma obra pode ser
bem maior do que seu autor (podemos citar vários grandes autores e
pensadores que flertaram ou aderiram a ideias execráveis, mas, ainda
assim deixaram um legado riquíssimo: Martin Heidegger, Knut Hamsun,
Jorge Luís Borges, Luigi Pirandello, Ezra Pound, Bertolt Brecht, dentre
centenas de outros.).
A longa tradição de reconhecer direitos
de propriedade intelectual a indivíduos resultou em nossa sociedade na
ideia de que um “pensador” ou “artista” é um ser diferenciado, detentor
de uma sensibilidade maior do que a maioria dos meros mortais. A
glorificação do gênio, como alguém que naturalmente tem o dom de
produzir artefatos, ideias elevadas e que é capaz de unir o conceitual e
o sensível acaba por nos levar a crer que são poucos os indivíduos que
possuem tais talentos, como se a criação e o pensamento devessem ficar
apenas nas mãos desses seres únicos e raros, transformando tais
atividades em domínios apenas para especialistas. Tornamo-nos
dependentes das ideias alheias, e permanecemos contentes em sermos meros
espectadores dos trabalhos criativos dos outros.
É importante notar que nem sempre foi
assim, a própria ideia de autor é histórica e apresenta seus primeiros
traços na Idade Média a partir dos livros heréticos. Para identificar e
condenar os responsáveis pela transgressão escrita era preciso primeiro
designá-los como autores de tais textos. A noção de autoria passa a ser
importante na medida em que os discursos se tornam transgressores e
passíveis de punição. Foi na Renascença e seus distintos fatores
sociais, políticos e econômicos que contribuíram para a invenção e
exaltação do indivíduo, o que no campo da arte correspondeu à invenção
do “autor”. O autor como uma invenção moderna, era importante porque
dava pistas à leitura, a obra estava então intimamente associada a quem
produziu e a ideia de autor criava uma unidade do discurso.
No século XV com a invenção da imprensa, é
possível ver a íntima vinculação entre autoria, propriedade intelectual
e poder. Os soberanos ao notarem a rápida circulação de informações
sentiam-se ameaçados já que antes da imprensa, o conhecimento ficava
restrito à pequena elite religiosa e econômica que tinha acesso aos
livros manuscritos. Assim o poder cria um instrumento de controle,
concedendo aos donos dos meios de produção dos livros o monopólio da
comercialização dos títulos que editassem, a fim de que estes, em
contrapartida, velassem para que os conteúdos não fossem desfavoráveis à
ordem vigente. A própria invenção do copyright na Inglaterra do século
XVI não surge para a proteção dos autores mas para o monopólio dos
comerciantes e livreiros (além de exercer seu papel no controle das
informações). A associação da ideia de propriedade intelectual as leis
de direitos autorais é a ideologia que fundamenta o monopólio privado do
capitalismo, justamente por isso que tal situação deve ser atacada por
qualquer descontente com o atual estado das coisas.
Talvez esse seja um dos aspectos pelos
quais anarquistas e os assim chamados “pós-modernos” constantemente são
atacados por intelectuais e acadêmicos ¹. O argumento é que a
desconstrução da ideia de autor contribuiria para o acirramento do
problema da propriedade intelectual e acabaria por legitimar o roubo de
ideias (o que esses combatentes da livre circulação de ideias não
conseguem entender é que isso não é um problema, é justamente a
solução). Necessário afirmar que nem sempre o plágio foi visto como
crime, basta lembrar que Shakespeare nunca hesitou em copiar boas ideias
alheias² e o próprio Cervantes defendia a posição de que cada autor não
fazia mais do que repetir os seus antecessores sem nenhuma
originalidade.
Acreditamos que o plágio como um método
de apropriação e reorganização de ideias pode ser uma ótima ferramenta
para encorajar o pensamento crítico. Um método que concentra sua atenção
no tema, não no autor, tornando impossível verificar as origens
genuínas do material (se é que alguma vez na história tais origens
puderam ser traçadas). O plágio anula o princípio de identidade, negando
a originalidade e que qualquer coisa criada possa ser considerada
patrimônio individual de um autor.
Afirmar o plágio não significa que a
criatividade está solapada, não há o autor, mas ainda permanece a
atividade de delimitar, cortar e caracterizar os discursos a partir de
todo esse background e referências. Com a diminuição do poder do autor,
temos não só a infinita possibilidade de criação a partir de materiais
já disponíveis na história mas também uma maior importância do leitor
(aqui entendido como diferente do espectador passivo e alienado), sua
função é a de estabelecer instâncias articuladoras entre a criação,
história e o novo contexto onde ela se apresenta. O nascimento desse
leitor só pode ocorrer com a morte do autor.
Inventar um novo nome, não assinar,
assinar com um nome coletivo ou com um nome de alguém conhecido são
jogos simples mas acabam por inserir o material produzido em um contexto
totalmente diferente, gerando novas perspectivas e desvinculando a
unidade do discurso a uma pessoalidade. O plágio, além disso, permite a
combinação das melhores e mais relevantes partes de qualquer coisa,
criando efeitos imprevisíveis, desencadeando significados,
possibilidades e recepções não planejadas.
Quando ocorre o plágio de um texto, obra
ou pensamento considerado “sagrado”, esta simples ação acaba por negar a
existência de qualquer diferença hierárquica entre quem efetua o plágio
e o pensador em questão. As ideias são tomadas para que sejam expressas
da forma mais justa, da maneira que convém a cada um ao invés de se
tratar o autor como uma autoridade inquestionável. O plagiador nega
qualquer diferença entre aqueles que podem criar e o resto da
humanidade, torna a criação de um indivíduo propriedade de todos.
A recontextualização que o plágio desvela
parece ser um elemento fundamental da comunicação. Pois do que
consistem nossos diálogos senão de palavras copiadas e reorganizadas de
forma a fazer sentido em um novo contexto? Se toda expressão é ao mesmo
tempo copiada e única, a linha entre a imitação e a inovação é tão tênue
que toda e qualquer distinção está fadada a ser arbitrária. Sobre isso,
Hegel já teria afirmando: “Quanto aos efeitos que a honra deverá
ter contra o plágio, de tal modo se deixou de ouvir a palavra plágio ou
roubo intelectual que temos de concluir ou que a honra já eliminou o
plágio, ou que o plágio deixou de ser atentatório da honra e desapareceu
o correspondente sentimento, ou, então, que a menor alteração numa
forma exterior se tem já como uma tão alta originalidade, um tão
autônomo pensamento, que a ninguém ocorre a ideia de plágio”.
Deixemos então aos detalhistas a tarefa
de decifrar quem foi o primeiro a rearranjar palavras e ideias em uma
ordem particular. Há um mundo inteiro a ser plagiado, copiado,
destruído e refeito, afinal de contas, somos nós que possuímos ideias ou
são elas que nos possuem?
Notas
1- “Mesmo negando a existência do
autor, como indivíduo criador de novas ideias, os pós-modernistas são
forçados a reconhecer que ainda há escritores. Escritores são genuínos,
indivíduos que produzem textos que nunca tenham sido produzidos antes –
incluindo os próprios escritores da pós-modernidade. O escritor
sobrevive à morte do autor, e é alguém que ainda pode ser plagiado. Nós
apenas temos de substituir o termo “escritor” para “autor” e tudo está
como era antes”. Trecho do artigo “Plagiarism really is a crime: a counterblast against anarchists and postmodernists (and others)” de George MacDonald Ross
2- Curiosos questionamentos surgem no
século XIX sobre a existência real de Shakespeare, se seria ou não um
nome múltiplo, além de estudos e especulações sobre a existência de
Homero e também de um Jesus Cristo histórico. Não parece ser
coincidência que isso se dê em tal século, justamente quando há uma
forte institucionalização e preocupação com o conceito de autor.
Fonte: [Conjunto Vazio]
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