PICICA: "Os dois grandes perigos de hoje? A
compaixão e o nojo do homem. Não há problema em temer o homem, mas a
compaixão e o nojo são o rebaixamento ao lodo da alma moderna, suja e
contaminada. Elevar o homem, esta é a tarefa da Vontade de Potência,
fazer do homem uma ponte para o além-do-homem. Trazer para um nível superior, não rebaixar-se em preces e choros."
Genealogia da Moral – o que significam os ideais ascéticos?
Lida de um astro distante, a escrita maiúscula de nossa existência terrestre levaria talvez à conclusão de que a terra é a estrela ascética por excelência, um canto de criaturas descontentes, arrogantes e repulsivas, que jamais se livram de um profundo desgosto de si, da terra, de toda a vida” – Nietzsche, Genealogia da Moral, terceira dissertação, §11
Os ideais ascéticos são o resultado do
niilismo absoluto de nosso tempo. É aqui onde a crítica nietzschiana
atinge seu ponto máximo, os valores ascéticos são a conclusão, o
desfecho, o produto final do ressentimento e da má consciência. O
acabamento é feito pelo sacerdote ascético, que já vimos em outros
textos e trataremos também neste.
Os ideais ascéticos são aqueles que viram a vida contra ela mesma, aqui, a Vontade de Potência
procura dominar a si mesma. Temos padres, pastores, muitos psicólogos e
filósofos neste terreno movediço, Schopenhauer e Paulo de Tarso talvez
sejam seus grandes representantes.
Uma vida ascética é uma contradição: aqui domina um ressentimento ímpar, aquele de um insaciado instinto e vontade de poder que deseja senhorear-se, não de algo da vida, mas da vida mesmo, de suas condições maiores, mais profundas e fundamentais; aqui se faz a tentativa de usar a força para estancar a fonte da força” – Nietzsche, Genealogia da Moral, terceira dissertação, §11
Se já vimos que o organismo humano está organizado hierarquicamente (veja aqui),
e que o homem moderno é “misarquista”, então podemos concluir que os
ideais ascéticos são expressão de uma fisiologia doente, desorganizada.
Neste caso, o ressentimento e a má consciência são doenças em si, sendo o
ideais ascéticos seus sintomas. “O olhar se volta, rancoroso e pérfido contra o florecimento fisiológico mesmo, em especial contra a sua expressão”
(p. 99). O homem segue sua vida, sentindo-se culpado, envergonhado de
si, excluído da existência, temendo o devir, desviando os olhos da
realidade. Esconde-se nas paredes da sua casa, nas sombras de sua
caverna escura, vivendo a vida por imagens (televisão, sonhos,
interpretações, sinais da bíblia).
Tudo consiste em aproveitar-se do
sentimento de culpa para tornar os doentes inofensivos. O sacerdote
ascético administra seus remédios para que o homem moderno suporte sua
dor. É preciso admitir, mesmo que a contragosto, o sacerdote ascético é
realmente o grande salvador do homem, sem ele a espécie humana já teria
há tempos caído no desespero profundo.
Mas o próprio homem espalha o
ressentimento e a má consciência ao seu próximo: a simples visão do bem
aventurado do saudável e do forte é para ele fonte de ódio. Assim diz o
escravo: “Não, há sofrimento demais, dor demais, não podem haver pessoas felizes, contentes, satisfeitas“.
O desejo do escravo é que todos sejam como ele, todos sejam iguais na
fraqueza. Eles rondam entre os felizes espalhando suas censuras e
advertências. Eles se misturam aos de boa constituição para dizer: “você não tem vergonha da sua falta de moral?“, eles espreitam os fortes, esperando para dar seu bote e inocular seu veneno.
Mas não poderia haver erro maior e mais fatal do que os felizes, os bem logrados, os poderosos de corpo e alma começarem a duvidar assim do seu direito à felicidade. Fora com esse ‘mundo do avesso’! Fora com esse debilitamento do sentimento! Que os doentes não tornem os sadios doentes [...] o superior não deve rebaixar-se a instrumento do inferior” – Nietzsche, Genealogia da Moral, terceira dissertação, §14
Os dois grandes perigos de hoje? A
compaixão e o nojo do homem. Não há problema em temer o homem, mas a
compaixão e o nojo são o rebaixamento ao lodo da alma moderna, suja e
contaminada. Elevar o homem, esta é a tarefa da Vontade de Potência,
fazer do homem uma ponte para o além-do-homem. Trazer para um nível superior, não rebaixar-se em preces e choros.
Os doentios são o grande perigo do homem: não os maus, não os ‘animais de rapina’. Aqueles já de início desgraçados, vencidos, destroçados – são eles, são os mais fracos, os que mais corroem a vida entre os homens, os que mais perigosamente envenenam e questionam nossa confiança na vida, no homem, em nós” – Nietzsche, Genealogia da Moral, terceira dissertação, §14
Mas a morte de Deus não foi o bastante
para acabar com os valores ascéticos. Na verdade, tal evento contribuiu
para o niilismo se tornar apenas mais sutil: o homem da ciência ainda é
niilista por excelência! A ciência é um dos produtos mais recentes da
vontade de nada. Por quê? Ela ainda acredita na verdade, ela não põe em
questão este valor metafísico supremo. “Esses estão longe de serem espíritos livres: eles ainda creem na verdade…” (p. 129). Se antes vivíamos uma ditadura teológica, hoje vivemos uma Ditadura da Verdade.
Se hoje, a vontade de verdade proíbe a mentira de acreditar em Deus,
ela ainda está deitada em valores metafísicos como o progresso, a
verdade, a humanidade. (Veja aqui).
Quem quer a verdade? Não são os padres, que buscam a verdade de Deus?
Não são os cientistas, que querem as verdades imutáveis das Leis
físicas? Em que medida os cientistas ainda são padres? Em que medida
nós, espíritos livres, não podemos desejar a mentira?
Ambos, a ciência e o ideal ascético, acham-se no mesmo terreno – já o dei a entender -: na mesma superestimação da verdade (mais exatamente: na mesma crença no inestimabilidade, incriticabilidades da verdade), e com isso são necessariamente aliados – de modo que, a serem combatidos, só podemos combatê-los e questioná-los em conjunto. Uma avaliação do ideal ascético conduz inevitavelmente a uma avaliação da ciência: mantenham os olhos e os ouvidos abertos para esse fato” – Nietzsche, Genealogia da Moral, terceira dissertação, §25
Vê-se bem que os ideais ascéticos são o
suporte da religião, da moral, da filosofia e da ciência. Eles são o
diagnóstico preciso dos tempos modernos. Se desconsiderarmos o ideal
ascético, a forma homem não teve até agora outro sentido. Algo falta, a
existência não faz sentido, o homem não sabe seu lugar no mundo: devemos
suicidar-nos? Não, o ideal ascético é este “algo que faltava”, ele traz
o sentido. Ele é a “solução final” de nossos tempos. É a única forma
encontrada para manter este ser de alma despedaçada em seu curso. A
terra gira cada vez mais devagar, até quase parar, mas com os ideais
ascéticos, este planeta ascético continua girando, mesmo que em estado
de hibernação, inércia, letargia.
O ódio por si mesmo, o ódio pelo que há
de animal em si, ódio da matéria, ódio pelos sentido; medo da
felicidade, da beleza, da força, da potência; anseio de afastar-se de
tudo que é aparência, mudança, morte, desejo: “eis o homem” (João 19:5).
Por que ele não se deixa ir? Por que ele não se mata? Ah, por um
simples motivo: a vontade mesma estava salva! Com os ideais ascéticos, a
vontade do homem está resguardada, ele preserva o homem! Quer-se o
nada, mas se preserva o querer. Vê-se agora que a negação da vida não é
um combate contra a vida, mas contra a morte, é a última maneira de
salvação, o último recurso. Sim, a vontade de nada, ainda é uma vontade!
E para repetir em conclusão o que afirmei no início: o homem preferirá ainda querer o nada a nada querer…” – Nietzsche, Genealogia da Moral, terceira dissertação, §28
Fonte: Razão Inadequada
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