PICICA: "Em prefácio a “Serafim Ponte Grande”, escritor revê trajetória,
declara desejo de servir à revolução proletária e renega fase
antropofágica — à qual voltaria depois"
Oswald encara “tarefa heroica”
Em prefácio a “Serafim Ponte Grande”, escritor revê trajetória, declara desejo de servir à revolução proletária e renega fase antropofágica — à qual voltaria depois
Por Oswald de Andrade | Imagem Liberati
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Oswald de Andrade conclui “Serafim Ponte Grande”, em 1928, mais ou menos pela mesma época em que lança o Manifesto Antropófago.
A proximidade das duas obras não é um fato desprezível. Desconsiderados esquemas escolares que pensam de forma rígida a criação literária, com suas datas imperativas, parece bastante óbvio que o romance-invenção oswaldiano dialoga com “pressupostos fundamentais da Antropofagia”.[1]
Além disso, como escreve Antônio Cândido em “Oswald Viajante”: “Libertação é o tema do seu livro de viagem por excelência, “Serafim Ponte Grande”, onde a crosta da formação burguesa e conformista é varrida pela utopia da viagem permanente e redentora, pela busca da plenitude através da mobilidade”.[2]
Desse modo, não há como deixar de pensar nos três elementos decisivos que as unem, em suas evidentes características de cultura de resistência, ou de re-existência, como pensa um outro grande antropófago, o encenador Zé Celso.
Assim, temos: a) a rebeldia individual exacerbada, b) o movimento migratório e c) a recusa ao domínio social próprio do patriarcalismo e a moral colonizadora.
Avançando um pouco, em nossa breve introdução, precisamos nos perguntar: por que romance-invenção?
Segundo Haroldo de Campos, no exemplar do “Serafim” que recebeu “das mãos do autor, a expressão ‘romance’, na capa, foi riscada por Oswald e substituída pela palavra ‘invenção’”.[3]
Esse pequeno gesto gerou uma enorme consequência na percepção/recepção do crítico-poeta sobre a obra. Daí, ter estabelecido a alcunha de romance-invenção para “Serafim”.
Dito de outra forma, “Serafim Ponte Grande” irrompe o “mundo literário”, colocando-o sob suspeita, na medida em que se esquiva às “redes de classificações convencionais”.[4]
Nesse sentido, a invenção oswaldiana põe em xeque o “universo disciplinar da crítica e da teoria literária”[5], ao promover uma espécie de “ausência”: como classificar um livro assim? Como pensar em um “romance”, elaborado em fragmentos, que acintosamente desprestigia, dentro da voga do século XX, a ideia de “contínuo temporal”? [6]
Importante observar com clareza alguns desses aspectos. Como se nota em “Memórias sentimentais de João Miramar”, assim também o romance-invenção “Serafim Ponte Grande”, representam, ambos, marcos de “ruptura com a forma e a estrutura tradicionais da ficção romanesca”.[7] Neste último, ressalte-se, ficamos diante de “um novo conceito de livro e de leitura”.[8]
Mas ainda não chegamos ao fundo. Como se fosse pouco, Serafim exacerba a “crítica e a sátira social já proposta naquela outra obra”[9], na medida em que retrata um mundo oco, revelando suas imposturas. Conforme atenta Mário da Silva Brito, Oswald “mostra-se empenhado na transformação dos costumes sociais e políticos, literários e artísticos. É um Oswald movido pela ânsia de contribuir para a libertação do homem e do seu pensamento ético e estético”.[10]
Ora, é nesse contexto brutal e eletrizante que podemos começar a nos guiar para entender o efeito de chofre que significou esse segundo prefácio, escrito por Oswald de Andrade, em 1933, para a publicação do seu livro (ou não-livro). Nesse ano, Oswald já tinha aderido ao Partido Comunista e renegado de um modo impiedoso a maioria das suas obras, inclusive o próprio romance em questão.
Escritor multifário, polêmico, capaz de se mover ao redor do mundo, através de uma “dança de conceitos”[11], na feliz expressão de Benedito Nunes, mais tarde, ao final da segunda guerra, se desligaria do PC e retomaria as teses antropofágicas. Mas essa é uma outra história.
Alerta aos caraíbas!
A edição original da primeira edição da obra de Oswald de Andrade
continha a seguinte nota, no verso da página de rosto:
“Direito de ser traduzido, reproduzido e deformado em todas as línguas — S. Paulo — 1933.”
(Theotonio de Paiva, editor de Oswald 60)
O MAL foi ter eu medido o meu avanço sobre o cabresto metrificado e nacionalista de duas remotas alimárias — Bilac e Coelho Neto. O erro ter corrido na mesma pista inexistente.
Inaugurara o Rio aí por 16 ou 15. O que me fazia tomar o trem da Central e escrever em francês era uma enroscada de paixão, mais que outra veleidade. Andava comigo pra cá pra lá, tresnoitado e escrofuloso, Guilherme de Almeida — quem diria? — a futura Marquesa de Santos do Pedro I navio!
O anarquismo da minha formação foi incorporado à estupidez letrada da semicolônia. Frequentei do repulsivo Goulart de Andrade ao glabro João do Rio, do bundudo Martins Fontes ao bestalhão Graça Aranha. Embarquei, sem dificuldade, na ala molhada das letras, onde esfuziava gordamente Emílio de Menezes.
A situação “revolucionária” desta bosta mental sul-americana, apresentava-se assim: o contrário do burguês não era o proletário — era o boêmio! As massas, ignoradas no território e como hoje, sob a completa devassidão econômica dos políticos e dos ricos. Os intelectuais brincando de roda. De vez em quando davam tiros entre rimas. O único sujeito que conhecia a questão social vinha a ser meu primo-torto Domingos Ribeiro Filho, prestigiado no Café Papagaio. Com pouco dinheiro, mas fora do eixo revolucionário do mundo, ignorando o Manifesto Comunista e não querendo ser burguês, passei naturalmente a ser boêmio.
Tinha feito uma viagem. Conhecera a Europa “pacífica” de 1912. Uma sincera amizade pela ralé notívaga da butte Montmartre, me confirmava na tendência carraspanal com que aqui, nos bars, a minha atrapalhada situação econômica protestava contra a sociedade feudal que pressentia. Enfim, eu tinha passado por Londres, de barba, sem perceber Karl Marx.
Dois palhaços da burguesia, um paranaense, outro internacional “le pirate du lac Leman” me fizeram perder tempo: Emílio de Menezes e Blaise Cendrars. Fui com eles um palhaço de classe. Acoroçoado por expectativas, aplausos e quireras capitalistas, o meu ser literário atolou diversas vezes na trincheira social reacionária. Logicamente tinha que ficar católico. A graça ilumina sempre os espólios fartos. Mas quando já estava ajoelhado (com Jean Cocteau!) ante a Virgem Maria e prestando atenção na Idade Média de São Tomás, um padre e um arcebispo me bateram a carteira herdada, num meio-dia policiado da São Paulo afarista. Segurei-os a tempo pela batina. Mas humanamente descri. Dom Leme logo chamara para seu secretário particular a pivete principal da bandalheira.
Continuei na burguesia, de que mais que aliado, fui índice cretino, sentimental e poético. Ditei a moda Vieira para o Brasil Colonial no esperma aventureiro de um triestino, proletário de rei, alfaiate de Dom João 6º.
Do meu fundamental anarquismo jorrava sempre uma fonte sadia, o sarcasmo. Servi à burguesia sem nela crer. Como o cortesão explorado cortava as roupas ridículas do Regente.
O movimento modernista, culminado no sarampão antropofágico, parecia indicar um fenômeno avançado. São Paulo possuía um poderoso parque industrial. Quem sabe se a alta do café não ia colocar a literatura nova-rica da semicolônia ao lado dos custosos surrealismos imperialistas?
Eis porém que o parque industrial de São Paulo era um parque de transformação. Com matéria-prima importada. Às vezes originária do próprio solo nosso. Macunaíma.
A valorização do café foi uma operação imperialista. A poesia Pau-Brasil também. Isso tinha que ruir com as cornetas da crise. Como ruiu quase toda a literatura brasileira “de vanguarda”, provinciana e suspeita, quando não extremamente esgotada e reacionária. Ficou da minha este livro. Um documento. Um gráfico. O brasileiro à-toa na maré alta da última etapa do capitalismo. Fanchono. Oportunista e revoltoso. Conservador e sexual. Casado na polícia. Passando de pequeno-burguês e funcionário climático a dançarino e turista. Como solução, o nudismo transatlântico. No apogeu histórico da fortuna burguesa. Da fortuna mal-adquirida. Publico-o no seu texto integral, terminado em 1928. Necrológio da burguesia. Epitáfio do que fui. Enquanto os padres, de parceria sacrílega, em São Paulo com o professor Mário de Andrade e no Rio com o robusto Schmidt, cantam e entoam, nas últimas novenas repletas do Brasil:
No céu, no céu
com “sua” mãe estarei!
com “sua” mãe estarei!
O caminho a seguir é duro, os compromissos opostos são enormes, as taras e as hesitações maiores ainda.
Tarefa heroica para quem já foi Irmão do Santíssimo, dançou quadrilha em Minas e se fantasiou de turco a bordo.
Seja como for. Voltar para trás é que é impossível. O meu relógio anda sempre para a frente. A História também.
Rio, fevereiro de 1933.
OSWALD DE ANDRADE
OSWALD DE ANDRADE
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[1]Essas considerações encontram-se
bastante bem desenvolvidas no livro de Pascoal Farinaccio, estudioso da
obra de Oswald de Andrade. Farinaccio, Pascoal. Serafim Ponte Grande e
as dificuldades da crítica literária. São Paulo: Ateliê Editorial:
FAPESP, 2001, p. 107. A propósito, Outras Palavras publicou interessante
artigo do crítico sobre a relação entre Oswald de Andrade e cinema,
dentro da série Oswald 60 [aqui].
[2]Cândido, Antônio. “Oswald Viajante”, em O Observador Literário, Comissão Estadual de Literatura, São Paulo, 1959, p. 91.
[3] Campos, Haroldo. “Serafim: um grande não-livro”. Andrade, Oswald. Obras completas 2: Memórias sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972, p. 102.
[4]Farinaccio, 2001, p. 150.
[5]Farinaccio, 2001, p. 151.
[6]Farinaccio, 2001, p. 154.
[7]Brito, Mário da Silva. “Miramar-Serafim: duas invenções”. In: Andrade, Oswald. Obras completas 2: Memórias sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.
[8]Campos, 1972, p. 102.
[9]Brito, 1972.
[10]Brito, 1972.
[11]Nunes, Benedito. Oswald Canibal. São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 75.
Fonte: OUTRAS PALAVRAS
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