PICICA: "Na batalha entre Roma e Judeia, vencem os judeus e, com eles, segundo Nietzsche, principia a revolta dos escravos na moral.
É do ódio judeu, o mais perverso criador de ideais, que brota o amor
cristão, como uma coroa de espinhos. É com Jesus Cristo que a moral dos
escravos triunfa sobre todos os outros ideais. Essa moral carrega
consigo a marca do ressentimento, a reatividade do mais enfático não e
as mais profundas raízes da sedução."
Genealogia da Moral – Bom e Mau, Bom e Ruim
Como se dá início a uma Genealogia
da Moral? Em Nietzsche, esse trabalho começa por investigar a raiz de
uma só palavra: a saber, a palavra Bom. Qual a sua gênese? E,
mais importante do que isso, quais as condições de sua gênese? Antes de
ir direto às conclusões, o filósofo do martelo precisa intervir, é
preciso refutar as mais aceitas teses de sua época se assim for
necessário.
As teses às quais Nietzsche irá se opor são as dos psicólogos ingleses, como ele chama, ou, como costumamos chamar hoje, dos utilitaristas ingleses. Um ponto preciso faz com que Nietzsche recuse esses teóricos: “eles pensam de maneira essencialmente a-histórica”. Para eles, todo o bom está diretamente ligado ao útil. Nietzsche toma como exemplo principal o não-egoísmo.
Segundo os Ingleses, o não-egoísmo é bom em si, pois é socialmente útil
em qualquer ocasião. Para Nietzsche, essa teoria simplesmente
estabelece a fonte do conceito bom no lugar errado:
O juízo bom não provém daqueles aos quais se fez o bem. Foram os bons mesmos, isto é, os nobres, poderosos, superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo, vulgar e plebeu.
Já nessa recusa se apresenta a tese nietzschiana. O bom não se liga ao útil, mas ao nobre. É o próprio bom que diz o que é bom, que toma para si a tarefa de valorar o mundo pelo sim e o não
de seu paladar. Bom é o que o agrada, é o que o fortalece, é o que o
apetece… Ao redor deste monumento, que é sua apreciação tornada
soberana, que o nobre estabelece um phatos da distância. Ele afasta de si o juízo baixo, comum, alheio e se aproxima cada vez mais o seu sim de seu bom. Não importa a utilidade, importa a força, isto é, a potência de se efetuar que existe neste sim.
Segundo o próprio Nietzsche, o fundamento de sua tese está no fato de que as designações para bom cunhadas pelas mais diversas línguas são transformações conceituais, onde nobre, no sentido social, deveio bom e comum
deveio ruim. É por isso que os nobres gregos, por exemplo, se
denominavam “Os verazes”, eles são aqueles que têm realidade, que são.
Eles são possuidores de algum tipo de distintivo de nobreza, que os
torna portadores da afirmação de suas vontades. A superioridade social,
então, sustenta um sim, que se torna a medida de uma valoração.
Eis que surge um problema. Que acontece
se a vontade da casta mais nobre for contaminada por uma moral
transcendente, escrupulosa, ressentida, doente? É o que Nietzsche
identifica nas sociedades em que as castas superiores são sacerdotais.
Ele toma como exemplo principal os hebraicos. O que ele chama de transvaloração judaica
é a inversão do conceito de bom através de um modo de valoração
nobre-sacerdotal. Este modo de valoração se opõe inicialmente ao dos
guerreiros, diz Nietzsche:
O modo de valoração nobre-sacerdotal tem outros pressupostos: para ele a guerra é um mau negócio! Os sacerdotes são, como sabemos, os mais terríveis inimigos – por quê? Porque são os mais impotentes. Na sua impotência, o ódio torna-se a coisa mais espiritual e venenosa.
Na batalha entre Roma e Judeia, vencem os judeus e, com eles, segundo Nietzsche, principia a revolta dos escravos na moral.
É do ódio judeu, o mais perverso criador de ideais, que brota o amor
cristão, como uma coroa de espinhos. É com Jesus Cristo que a moral dos
escravos triunfa sobre todos os outros ideais. Essa moral carrega
consigo a marca do ressentimento, a reatividade do mais enfático não e
as mais profundas raízes da sedução.
A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e gera valores. [...] Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a moral Não a um fora, um outro, um não-eu – e este não é seu ato criador.
Valorar o mundo através das forças
reativas, eis o modo operante da moral escrava. O homem do ressentimento
não cria valores através da ação, pois sua ação é essencialmente
reação. Ele primeiro é ferido, agido, movido, perturbado e depois age.
Seu movimento é sempre em torno de algo que lhe é exterior, estranho,
oposto. O escravo tem um conhecimento profundo da própria alma, uma
sabedoria voltada para a dor e uma memória incapaz deixar desvanecer os
próprios constrangimentos. São homens de grande inteligência, são
estrategistas cheios de inimigos, são planejadores que levam a sério,
acima de tudo, suas dores.
Sua alma olha de través, ele ama os refúgios, os subterfúgios, os caminhos ocultos, tudo escondido lhe agrada como seu mundo, sua segurança, seu bálsamo; ele entende do silêncio, do não esquecimento, da espero, do momentâneo apequenamento e da humilhação própria
A questão que nos cabe não envolve
julgar, mas perguntar: qual a moral que erige desse homem? Quem é bom
segundo sua perspectiva? Ele mesmo, claro. É dessa maneira que bom torna-se fraco, humilde, inofensivo, manso; bem torna-se aquilo que se faz pela preservação, paz, união, compaixão. Que mais quer o ressentido do que alguém que entenda seu sofrimento, que sinta pena de suas dores?
Em nome de sua própria preservação o
homem renuncia à sua força. Antes de tudo, esse homem quer proteger-se e
esquivar do que lhe afeta. Seu pedido é simples: que o forte não se
sobreponha ao fraco. Mas Nietzsche inverte a questão, é preciso proteger
os fortes dos fracos – há uma vontade corrompida que a tudo quer
enfraquecer, um perpétuo nivelar por baixo. Desta ideia, nascem algumas
das mais polêmicas e mal interpretadas teses nietzschianas.
Exigir da força que não se expresse como força, que não seja um querer-dominar, um querer-vencer, um querer-subjugar, uma sede de inimigos, resistências e triunfos, é tão absurdo quanto exigir da fraqueza que se expresse como força
A crença no livre arbítrio, tão cara aos
cristãos, leva-nos a pensar que o forte pode escolher ser fraco, que o
falcão pode deixar de lançar-se em busca de sua presa, que o mar pode
deixar de devir maremoto, que a gravidade pode desistir de derrubar. O
fortalecimento da ideia de alma em torno da cristalização do sujeito
moderno nos tornou ingênuos – pensamos agora que somos responsáveis por
tudo que nos acontece!
O sujeito (ou, falando de modo mais popular, a alma) foi até o momento o mais sólido artigo de fé sobre a terra, talvez por haver possibilitado à grande maioria dos mortais, aos fracos e oprimidos de toda espécie, enganar a si mesmos com a sublime falácia de interpretar a fraqueza como liberdade, e o seu ser-assim como mérito.
Que é o niilismo, então? Nada mais do que
o cansaço, um profundo esgotamento de uma forma chamada Homem,
resultado de uma cultura de amansamento dos nobres, de excomungação das
forças e entronamento das fraquezas. Um contínuo arrastar-se. O último
movimento de uma vontade doente, que, em busca de um local onde se
despejar, fabrica pérfidos ideiais vazios para cultuar.
No último parágrafo, Nietzsche anuncia
seu projeto, tema de um livro anterior, ao qual a Genealogia
complementa: a saber, ultrapassar bem e mal. Mas ele alerta: “ao menos,
isso não significa “Além do bom e do ruim”. Que significa essa ressalva?
Buscar a superação do homem através da crítica à moral não significa
abolir todos os valores, mas transvalorar todos os valores. E isto
significa precisamente: buscar novos modos de valoração por sob os quais
se possa assentar um novo homem, que vá além do Homem.
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