PICICA: "Talvez esse texto soe determinista e
catastrófico, pelo fato de não nos preocuparmos em explicar como essa
situação histórica opressiva se formou (assim como propor concretas
reversões desse quadro), mas aqui colocaremos o seguinte
problema/proposta: não bastaria simplesmente apelar à existência do
sofrimento social resultante da opressão, da pauperização persistente,
das práticas disciplinares presentes em múltiplas instituições sociais e
na própria cidade para que nós nos insurjamos?"
verbete #8: [cidade e anti-cidade]
Cidade
Diderot no século XVII escreveu na Enciclopédia o verbete “cidade”. Esse verbete traça um panorama histórico e simbólico sobre como as cidades são criadas e, mais do que isso, a forma como o poder na cidade é retirado das mãos dos cidadãos em direção a um outro, garantindo segurança e outras comodidades. Podemos perceber que os ideais Iluministas explicam a sujeição do povo ao poder por meio de um voluntarismo. Os homens por seu próprio interesse aceitariam a subordinação ao poder e as leis da cidade.
Esse pequeno exemplo demonstra o óbvio: a
cidade sempre foi um local de poder conformado em uma estrutura que
força seus habitantes a uma abdicação constante de suas vontades em prol
de uma suposta segurança. O poder pode emanar do povo, mas isso não
implica que será gerido por ele.
Mesmo que parte de um circuito de saberes sobre a cidade de Paris, que envolveram profissionais de diversos países, a figura do Barão de Haussmann
contribuiu significativamente para a configuração da ideia de cidade
moderna. A cidade é remodelada pelo poder de forma explicita, com a
transformação das ruas estreitas de Paris em longas vias, bairros
centrais anteriormente habitados por trabalhadores pobres foram
aburguesados. Tais medidas visavam conter qualquer lastro de revolução e
negação do poder, além de cumprir um papel central na manutenção e na
reprodução do modo de produção capitalista. O uso de barricadas,
aproveitando as conformações espaciais e arquitetônicas era muito comum
no centro de Paris, com as reformas o exército poderia manobrar canhões
facilmente contra os levantes, um exemplo disso foi a Comuna de Paris,
mesmo que com suas enormes barricadas em 1871 já assinalassem o
fracasso circunstancial do empreendimento urbanístico e uma resistência a
ele, isso não evitou a reiteração e expansão de seus paradigmas. As
barricadas depois de Haussmann tornaram-se quase impossíveis (até Maio de 68
). A reforma de Paris uniu habilmente a repressão às insurreições e um
senso estético homogeneizador, que ganhou um belo nome “embelezamento
estratégico”. O poder – aqui entendido como um conjunto de instituições
(dentre elas, aquelas pertencentes ao Estado) e grupos de influência de
interesse privado que se juntam convenientemente à estrutura
institucional – constrói um imaginário e molda a cidade por meio de
grandes construções. Há a destruição da memória da cidade através do
urbanismo, principalmente no caso de Paris onde as revoluções deixaram
marcas profundas na cidade e que foram apagadas.
A formação da cidade moderna
(considerando Paris como esse modelo paradigmático), seu crescimento
vertiginoso e o desenvolvimento da técnica evidenciam não só uma mudança
social, econômica e urbanística, mas também da própria percepção dos
moradores e transeuntes da cidade. A experiência urbana moderna, com
seus aspectos mais rápidos, caóticos e fragmentários, acabou por
provocar novos registros da experiência subjetiva através de choques
físicos e sensitivos do ambiente. Em meio ao tráfego, barulho, grandes
prédios e multidões, o indivíduo se defrontava com o aumento da
estimulação sensorial, com o bombardeio de impressões. O ritmo da vida
se configurava mais frenético e acelerado pelas formas de transporte
rápido, pelos horários prementes do capitalismo moderno e pela
velocidade apressada da linha de montagem. Esse tempo é rapidamente
internalizado (que passa a ser encarado como algo natural), modificando
as relações concretas das pessoas e sua relação com o espaço.
Se por um lado a multidão e a experiência
na cidade parecem fazer com que a noção de identidade seja dissipada,
por outro, temos a formação de uma nova identidade desses homens na
multidão. Esse novo habitante da cidade vai se constituir a partir da
própria fragmentação, do anonimato e da despersonalização. A cidade
moderna instaura a contradição: a mesma alienação que priva os homens de
sua individualidade, provocando um senso de não pertencimento, também
permite a formação de novas maneiras de socialização. Ou seja, a mesma
cidade moderna que aliena é justamente a que instaura possibilidades de
emancipação. É com a cidade moderna que podemos perceber claramente esse
desenraizamento, a perda de uma “constituição originária”.
É importante notar como as atuais e
influentes noções de política e de espaço público ainda são marcadas por
um forte traço idealizador do passado. Devemos tentar quebrar essas
ideias que firmam o modelo grego (ou até mesmo anterior e primitivo)
como um ideal normativo.
Não há situação ou estado mais “natural”,
“livre” e “verdadeiro” para onde possamos voltar (momentos quase sempre
colocados em um ponto imemorial do passado). Não se trata de esquecer o
passado, mas de evitar sua imagem mítica e arcaica, tendo sempre em
vista que um dos traços da modernidade e do capitalismo é o apagamento
do passado recente, colocando a novidade como o mais importante e nos
fazendo crer no passado remoto como eternamente presente e permanente. O
que podemos fazer é recolocar tais noções em jogo, atualizando
radicalmente essas lutas do passado sem avaliá-las por referencia a um
modelo, mostrando que nem sempre o mundo foi assim e fugindo de um tempo
pseudo-cíclico que nos afasta do presente.
O atual senso comum afirma que uma cidade
define-se como uma área urbanizada com população, densidade
populacional, estatuto definidos e avaliados sobre critérios técnicos
específicos. Essa noção facilmente disseminada por especialistas e
burocratas acaba por perder a dimensão subjetiva e simbólica, assim como
um conjunto de relações políticas que também constituem a cidade com
seus encontros, confrontos, conhecimentos e reconhecimentos. É
importante lembrar que ainda que a cidade possua relações cotidianas
potencialmente emancipatórias, carregadas do particular e do vivido,
elas transmitem, ao mesmo tempo, as mensagens hegemônicas do poder e da
dominação, representações das relações sociais de produção.
A cidade contemporânea é aquela
administrada e controlada sob critérios supostamente democráticos, em
que a condição de “indivíduo” não possui nenhuma dimensão política –
restando o confinamento no espaço privado e domesticador do mundo
urbano. O “público” nada mais é do que a manutenção da ordem pública em
favor da ordem privada, uma relação de subordinação dos bens comuns e do
uso das coisas. Ainda que atos legais públicos possam trazer mudanças e
sejam reconhecidos pelo Estado como legítimos por exporem as falhas do
sistema, dificilmente tais ações deixam de ser cooptadas, geram pressões
por mudanças mas não colocam em xeque o próprio ordenamento legal
existente.
A condição de “cidadão”, daquele que
habita a cidade e que deveria caracterizar um indivíduo que goza dos
direitos civis e políticos de um estado livre (tão falsamente alardeado
como um “progresso” e um “bem”), é parte de uma terminologia burocrática
que submete indivíduos a mecanismos de dominação complexos baseados no
mercado e na submissão política. A cidade, desde o século XIX, vem se
consolidando em sistemas de administração de produção e serviços, e nós
nos distanciamos cada vez mais da possibilidade de uma experiência
consciente. Já que construir e morar em cidades implica necessariamente
em uma vida coletiva, os princípios de coletividade deixaram de ser
definidos por qualquer lampejo de vida social autônoma. Sob esse
parâmetro, não são os indivíduos que definem a sociedade, mas sim, os
cidadãos submetidos ao poder urbano que definem a coletividade e o que
poderia vir a ser a vida social na cidade. Entretanto, somos privados de
participar dessa vida social, já que a experiência hoje se dá de
maneira particularizada e fragmentária. Então, somente nos é “permitido”
a contemplação espetacular, a performance da participação e o consumo
dos espaços. A cidade como conhecemos impede a real relação entre as
pessoas (aqui, o “real” só pode ser entendido em seu sentido negativo à
atual ordem das coisas e como uma condição de possibilidades que se
apresentam a partir dessa negação).
Então devemos lembrar que a cidade não é
liberdade, é a centralização do poder em algum lugar sob nossas cabeças.
É confinar o indivíduo e administrar seus desejos. Quanto mais
complexificada, mais expandida, maiores os mecanismos de controle e
dominação da cidade.
“Anti-cidade” ou “pelo fim da cidade”
A consciência necessária para a
libertação do indivíduo urbanizado, e para a subsequente apropriação e
ressignificação da cidade, é a de que cidade não é um fenômeno natural.
É um artefato que tende a corresponder com os mecanismos de dominação
de um poder centralizador, e deve ser reconhecida como tal. Mesmo com o
atual discurso de uma descentralização das gestões e da participação
popular nas decisões da cidade, esses modelos não se concretizam
principalmente por conta do emaranhado burocrático construído
historicamente numa estrutura hierárquica. A tal “democracia
participativa” acaba funcionando apenas como uma instância performativa e
como um belo nome para os mesmos processos hierárquicos. Essa dominação
tem se desenvolvido sob a inaceitável “crença no poder emancipatório da
evolução capitalista” que funcionaliza o cotidiano e o torna um vazio
de ações espontâneas e autônomas.
Para uma cidade melhor é necessário
buscar o fim da cidade. O fim da hierarquização e do controle político, o
fim da submissão ao espaço construído. É necessário romper com os
valores simbólicos constituídos e cristalizados, que nos definem como
seres inferiores ao espaço urbano controlado, que docilizam nossos
corpos e acabam por internalizar os padrões normativos impostos pelo
poder. Devemos rejeitar também a arquitetura e o urbanismo como saberes
dominados por especialistas em favor de qualquer espaço transformado
pelo trabalho humano.
A anti-cidade é justamente a
negação diária da cidade como ela se mostra e é dessa negação, dessa
recusa que se faz no cotidiano, que é possível uma abertura para novas
possibilidades que não essas já reificadas e mortas.
Post-Scriptum
Talvez esse texto soe determinista e
catastrófico, pelo fato de não nos preocuparmos em explicar como essa
situação histórica opressiva se formou (assim como propor concretas
reversões desse quadro), mas aqui colocaremos o seguinte
problema/proposta: não bastaria simplesmente apelar à existência do
sofrimento social resultante da opressão, da pauperização persistente,
das práticas disciplinares presentes em múltiplas instituições sociais e
na própria cidade para que nós nos insurjamos?
Fonte: [Conjunto Vazio]
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