PICICA: "Muitas
questões podem ser ponderadas, mas não resta dúvida que passou da hora
de pensar em qualquer método cujo plano B seja a polícia. Abolir a Operação Delegada,
como se aboliu sem maiores prejuízos o "Nova Luz" de Kassab, é um
primeiro passo. Aceitar que as graves demandas da metrópole demandam
conselhos de interlocução e negociação é outro ponto. Não é possível
fazer política habitacional sem considerar as partes envolvidas. Nem que
se aja corretamente na resolução de problemas, em determinados casos,
os problemas não deixarão de ocorrer."
O Drama Barroco de Haddad: Por que não pôr fim à Operação Delegada?
O Enterro de Cristo -- Roldán |
Um camelô
morreu atrapalhando o trânsito. No meio do caminho da democracia, havia o
corpo morto de um camelô. À bala. Tiro certeiro na cabeça, bem no meio
da avenida. Poderia ser eu (e era, por que não?). A rebelião que se
instaurou, um pequeno levante, ao mesmo tempo em que é marcado pela
névoa de gás (lacrimogêneo, com se precisássemos disso para chorar) que
sobe, faz descer, por paradoxo, outras cortinas de fumaça.
Uma pausa, um corte, uma narrativa.
Fernando
Haddad, em seu breve governo, se viu em meio ao epicentro do Junho de
2014, ousou políticas inovadoras, esteve no meio de um debate para o bem
e para mal. O fato é que sua aprovação -- alta para os padrões paulistanos nos cem primeiros dias -- caiu como ocorreu com todas as autoridades e instituições na esteira das Jornadas de Junho, mas ela não registrou nenhuma recuperação ao contrário do que aconteceu com a presidenta, governadores e demais prefeitos.
Há poucos dias, contudo, a popularidade do prefeito registrou sua primeira recuperação em mais de um ano,
animada pelo sucesso da política pró-ciclofaixas: a ampla adesão às
faixas de bicicletas somada às faixas de ônibus seriam a "resposta
definitiva" no campo da mobilidade e do transporte urbano, o rompimento
da barreira que impedira o prefeito de melhorar seus índices. São Paulo,
terra do automóvel como elemento de promoção moral e dignificação, se
tornou como um delírio anarquista do Provos: autônoma e alegremente pedalante.
Por outro
lado, dois eventos bombásticos -- literalmente -- tomaram as ruas e os
noticiários: a desocupação do prédio de um antigo Hotel no Centro e a
execução de um ambulante na Lapa. Nos dois casos, a polícia militar agiu
com sua habitual truculência e despreparo, aumentando um confusão que
ela deveria dirimir. A cidade virou uma praça de guerra.
No primeiro
caso, a prefeitura não mediou como deveria. Embora, de fato, a reforma
do prédio fosse demasiadamente cara, como apurou a prefeitura, com a
ordem judicial da reintegração de posse, é de se esperar que a retirada
de quase mil pessoas, com presença de contingentes policiais, seria
problemática. Não havia um plano de contingência, a truculência veio e
um massacre policial durou quase um dia todo no Centro.
No segundo, a polícia militar, agindo sob os auspício da Operação Delegada,
um convênio aberrativo entre Prefeitura e Polícia Militar criado na
gestão Kassab, acabou executando um camelô de forma vil e covarde. A
missão que resultou na execução consistia no exercício, pela PM, de
função de repressão ao comércio ambulante.
Acerca do primeiro caso, Haddad acenou com a tese de que os sem-teto foram usados por oportunistas. Sobre o segundo, que a execução foi um caso isolado.
É fato que os sem-teto não são oportunistas, ele não têm oportunidades
ou opções -- e mesmo que se considere a ação de algum agente provocador,
possivelmente não eram os sem-teto ou os seus dirigentes os maiores
interessados. No segundo caso, mortes de pobres pelas mãos da polícia não é algo ocasional -- nem pelas mãos do próprio policial, que já respondia a processo por homicídio.
Haddad, com
muito pouco, faz e ousa bastante. É um prefeito consideravelmente melhor
do que a média -- e um dos melhores que São Paulo já teve. Mas não
consegue lidar com crises, porque as crises são imprevisíveis, não cabem
em planos ou planejamentos -- nem são solúveis por qualquer política
pública, mas por um processo político, um método político.
Se a gestão
não aceitar isso, sobretudo num cenário de profundas crises -- e, pior,
de alta complexidade e custos (não só financeiros) para a resolução dos
problemas --, fatalmente se pegará frequentemente apostando suas fichas
na repressão policial -- o que, em matéria de Brasil, é uma escalada
para o desastre.
A ideia de Haddad como seu duplo,
o prefeito de esquerda corajoso e competente que anima a todos e, ao
mesmo tempo, um tecnocrata frio e insensível toma conta do imaginário e
dos debates. O fato é que a aparente quimera -- dizer que Haddad são os
dois ao mesmo tempo seria como falar em "bola quadrada" -- esconde a
maneira como ele se ajusta: a exemplo da social-democracia alemã, ele
põe a concretude das relações materiais abaixo do Plano.
A realidade
não se verga ao ideal, salvo à força. O que põe qualquer político de
esquerda numa encruzilhada ética (em um sentido). O nazismo não ascendeu
na Alemanha por pura ignorância, ou necessidade, daquele povo, mas em
parte porque, antes, a social-democracia normalizou determinadas
práticas como a suspensão de direitos que, não raro, levaram à repressão
de trabalhadores. A esquerda se colocou numa zona cinzenta onde todos
pareciam a "mesma coisa", o que naturalizou seus próprios algozes.
Muitas
questões podem ser ponderadas, mas não resta dúvida que passou da hora
de pensar em qualquer método cujo plano B seja a polícia. Abolir a Operação Delegada,
como se aboliu sem maiores prejuízos o "Nova Luz" de Kassab, é um
primeiro passo. Aceitar que as graves demandas da metrópole demandam
conselhos de interlocução e negociação é outro ponto. Não é possível
fazer política habitacional sem considerar as partes envolvidas. Nem que
se aja corretamente na resolução de problemas, em determinados casos,
os problemas não deixarão de ocorrer.
A política
existe para resolver pacificamente os problemas comuns. A ideia estanque
de ordem pública podem levar, aí sim, a uma real ameaça à ordem pública
igualmente protagonizada pelas próprias autoridades que deveriam
media-la. Haddad precisa, o quanto antes, se desvencilhar disso, senão
restará indiferenciado em relação à massa conservadora com a qual
concorre.
Foram as
bicicletas, e não a overdose policialesca, que colocou Haddad de volta
ao jogo. Será a overdose de polícia que poderá lhe criar problemas
novamente. É bastante simples.
Fonte: O Descurvo
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