PICICA: "Trecho selecionado do artigo “É
possível pensar em devires-animais do homem e poética menor em Manoel de
Barros?” de Victor Silveira do Carmo"
Poética menor em Manoel de Barros
Trecho selecionado do artigo “É possível pensar em devires-animais do homem e poética menor em Manoel de Barros?” de Victor Silveira do Carmo
Em
seu livro “Matéria de Poesia” (1970) Manoel de Barros constrói um
método diante da seguinte questão: o que serve para a poesia? A pergunta
poderia ser recolocada: Como sustentar a experiência poética no
interior de uma língua marcada por determinações simbólicas e de
significâncias? Como extrair de uma língua seus afectos e perceptos?
As coisas que não se pretendem, como
Por exemplo: pedras que cheiram
Água, homens
Que atravessam períodos de árvore,
Se prestam para poesia
Ainda nos dirá o poeta, “as coisas que não levam a nada tem grande importância”
A indagação do poeta recoloca constantemente o problema da matéria
expressiva e as possíveis respostas se abrem para um lugar das
inutilidades e marginalidades, lugar das “coisas que não se pretendem”,
das “coisas ordinárias”, das “coisas que não levam a nada”. Em uma
segunda parte do poema, Manoel se questiona sobre o que se poderia fazer
em favor da poesia, e a partir disso desenvolve respostas, que se
subdividem nas letras do alfabeto, com isso ele cria pequenos
fragmentos, que podem ser vistos como planos de composição, extensões,
do qual advém afectos e perceptos. Abaixo exporei alguns desses planos:
b- Perder a inteligência das coisas para vê-las.
c- Esconder-se por trás das palavras para mostra-se.
e- Penguntar distraído: – O que há de você na água?
f- Não usar colarinho duro. A fala de furnas brenhentas de Mário-pega-sapo era nua. Por isso as crianças e as putas do jardim o entendiam.
Júlia Almeida, em seu livro “Estudos deleuzenanos da linguagem” (2003) introduz o tema do literário em Deleuze
pretendendo buscar suas interferências na concepção de linguagem do
filósofo. E ao se perguntar sobre quais operações efetuadas pela
literatura na linguagem, a autora chega à questão do impessoal: “O impessoal em Deleuze não designa um modo de individuação que não é aquele que conhecemos dos indivíduos, sujeitos e objetos”. Isso significaria, “pensar
o ser a partir de uma realidade pré-individual. Contra um princípio de
individuação a partir de um indivíduo já formado, já constituído”. A
individuação é então concebida em termos de devir, e o individuo sendo
apenas uma fase, de uma operação que é metaestável, ou seja, nunca
alcançando um equilíbrio permanente. “A arte é o reino dessas individuações sem sujeito”. E nesse campo intenso de individuações, a literatura, diz Deleuze em “Crítica e Clínica”, “só
se instala descobrindo sob as aparentes pessoas a potência do
impessoal, que de modo algum é generalidade, mas uma singularidade no
mais alto grau: um homem, uma mulher, um animal” (p. 13). A singularidade não seria então da ordem da individualidade, “mas, são os trajetos e devires os traços singulares não-pessoais que a arte é capaz de compor”.
Retomemos a questão do poeta, “o que se
deve fazer em favor da poesia?” Deixar-se conduzir pelos trajetos da
palavra em devir. Para isso, “esconder-se por trás”, abdicar-se do eu em
favor de uma enunciação impessoal, mostra-se a partir daí como um puro
ser de sensações. No que nomeio como plano de composição f, Manoel diz
de uma “fala de furnas brenhentas”. Da furna, deduzimos um antro, uma
extensão. Extensão de emaranhado, de selva, de labirinto, de rizoma.
Fala nua, de Mario-pega-sapo, sem eixo central, fala aberta a conexões
efetuadas por diferença, que atingem assim o entendimento das putas e
das crianças. “Silêncio das coisas anônimas, passaram essa tarefa para os poetas”.
Falar em nome de um povo que não existe, de uma minoria, falar ao
entendimento das “putas e das crianças”; a partir daí poderíamos
estender à questão para os agenciamentos coletivos de enunciação, sendo
este, mais um dos critérios propostos por Deleuze e Guattari, na
constatação de uma literatura menor. E tal questão é recorrente na
poética manoelina, no entanto, nos cabe agora apenas essa sinalização.
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