setembro 08, 2014

"Onde Marina poderia dar certo", por Moysés Pinto Neto

PICICA: "Tem circulado na Internet uma comparação estapafúrdia entre Marina Silva, Jânio Quadros e Collor. No desespero com o crescimento da candidatura, até o programa eleitoral da Dilma chafurdou na lama das análises, aproximando a “falta de base política” do suposto messianismo da dupla de presidentes que não terminou o mandato. Distorce-se também uma afirmação de Marina de que não seria “nem direita, nem esquerda”, ignorando que o contexto em que ela é proferida é no conflito entre neoliberalismo e desenvolvimentismo. A frase dentro do contexto (e quiçá deva ter sido enunciada dessa forma) é: “nem a direita nem a esquerda que estão aí”. Afora a lamentável estratégia da retórica do medo, a análise revela o quanto o fenômeno eleitoral pode nublar distinções básicas e fazer com que respeitáveis intelectuais abracem a causa do seu partido até o ponto de abrir mão do mínimo bom senso." 


Onde Marina poderia dar certo

Tem circulado na Internet uma comparação estapafúrdia entre Marina Silva, Jânio Quadros e Collor. No desespero com o crescimento da candidatura, até o programa eleitoral da Dilma chafurdou na lama das análises, aproximando a “falta de base política” do suposto messianismo da dupla de presidentes que não terminou o mandato. Distorce-se também uma afirmação de Marina de que não seria “nem direita, nem esquerda”, ignorando que o contexto em que ela é proferida é no conflito entre neoliberalismo e desenvolvimentismo. A frase dentro do contexto (e quiçá deva ter sido enunciada dessa forma) é: “nem a direita nem a esquerda que estão aí”. Afora a lamentável estratégia da retórica do medo, a análise revela o quanto o fenômeno eleitoral pode nublar distinções básicas e fazer com que respeitáveis intelectuais abracem a causa do seu partido até o ponto de abrir mão do mínimo bom senso. Apenas comparativamente, intelectuais e artistas como Luiz Eduardo Soares, Marcos Rolim, Célio Turino, Ricardo Paes de Barros, Antonio Nobre, André Vallias, Gilberto Gil e Caetano Veloso (sem falar dos que a apoiaram na eleição anterior) não embarcariam em um navio cujo leme é comandado por um Collor ou Jânio. É uma ofensa a eles esse tipo de raciocínio. Aliás, é também uma ofensa à história do PT, que teve Marina muito tempo nos seus quadros, destacando-se como senadora e ministra cuja luta é identificada com uma realidade pouco conhecida pela parte Sul do país.

Na realidade, o que essa comparação oculta é com quem efetivamente é comparável Marina: o Lula do primeiro mandato de 2002. Não apenas pelas questões biográficas, como o belíssimo texto de Eliane Brum mostra (revelando o quanto a biografia não é apenas uma questão anedótica), mas também em termos políticos. Naquele momento, Lula não tinha uma base política para governar e ainda era visto com desconfiança pelos mercados. Sobre seu governo havia a ameaça de instabilidade política e econômica. Para apaziguar ânimos, o PT lançou a conhecida “Carta ao Povo Brasileiro” que contentou provisoriamente a quase todos. Claro, pode-se dizer que se trata de coisas muito diferentes, já que Lula vinha amparado como uma das lideranças do ciclo político pós-ditadura e com uma ampla base social. É verdade. Mas é também verdade que o Lula que se elegeu em 2002, chamado “Lulinha paz e amor”, não foi o mesmo Lula que tinha essa base orgânica. Lula precisou se reinventar, levando consigo o PT, para se tornar um nome capaz de ser vitorioso nas eleições. Não vou nem me basear em análises mais radicais como as de Francisco de Oliveira ou Paulo Arantes, que tratam do “aburguesamento” das lideranças sindicais a partir dos fundos de pensão, mas na análise do mais renomado pensador do “lulismo”, André Singer. O que caracteriza o trabalho de Singer é a consciência de que o PT se converteu a partir da “Carta” até sobretudo o período pós-mensalão a uma “segunda alma”, a partir do chamado “pacto conservador” de melhorias da condições sociais do “subproletariado” sem mudanças estruturais. Aliás, falando em mensalão, é preciso lembrar que foi a primeira estratégia do PT para enfrentar sua condição de difícil governabilidade pela escassez de alianças. Se o PT é um partido forte, o PR era um partido fraco e único aliado. A cooptação dos partidos nanicos deu no que deu e inclusive provocou a ruptura da velha base com o PT, uma parte migrando para o PSOL e outra mudando de perfil para se adequar aos novos tempos. A partir de 2005, começa o pacto definitivo com o “peemedebismo” (daria para teorizar sobre uma “terceira alma” do PT com Dilma, mas deixemos isso para outra ocasião).

A desvantagem óbvia de Marina é que ela não tem o PT, que tem uma base parlamentar sólida, e nem a mesma base social. Ela tem apenas um partido de médio porte (PSB) e sua própria Rede, que é uma incógnita. A vantagem, por outro lado, é que surfa em um clima político de insatisfação bem mais agudo que o de 2002, tendo se expressado fundamentalmente nos movimentos de 2013. As condições “objetivas” favorecem Marina, que acabou identificada por uma significativa parcela dos insatisfeitos, de parte da esquerda à centro-direita, com 2013. Lula não tinha como confrontar o sistema porque a insatisfação não era tão patente. Talvez sob essas condições pudesse ter feito até coisa melhor que Marina pode fazer, mas são as circunstâncias que mudaram, em suma. A figura gerencial de Dilma não convence ninguém na tarefa de enfrentar o sistema político (“peemedebismo”), ainda mais para os que acompanharam com cuidado as suas decisões durante o período. A outra vantagem de Marina é que ela conseguiu simpatia de uma base política transpartidária de peso (Cristovam Buarque, Pedro Simon, Roberto Freire, Luiza Erundina, José Serra), e isso pode fazer diferença em matéria de reforma política (não duvido que mesmo nomes do PT mais independentes como Olívio Dutra, Eduardo Suplicy e Paulo Paim aceitariam a aliança para esse objetivo).

Resta discutir ainda o outro lado das críticas procedentes a Marina, que é seu conservadorismo econômico. De fato, o programa de Marina não é só muito parecido com FHC, como ela própria reconhece, mas igualmente com o primeiro mandato de Lula. Mas é preciso lembrar que o boom das commodities não foi uma obra do talento de Lula, e sim de circunstâncias que ele soube aproveitar. O grande salto que desmentiu as leituras destrutivas do Governo Lula associando-o ao neoliberalismo e conservadorismo foi que soube distribuir os ganhos com o boom de uma forma quase inédita, ou seja, atingindo os mais pobres. O grande mérito de Lula não foi, portanto, um desenvolvimentismo bem sucedido, mas as políticas sociais que melhoraram a condição de vida dos mais pobres. Além disso, o perfil conciliador de Lula favorecia o ambiente de uma usina de ideias, possibilitando que o Ministério da Cultura, por exemplo, desse um salto de qualidade com a gestão Gil/Ferreira introduzindo e escutando conceitos que, sem causar alvoroço, provocavam pequenas revoluções nos espaços em que intervinham. Mesmo conservador na macroeconomia, Lula conseguiu fazer a diferença durante seus primeiros mandatos.

O cenário mudou bastante desde então. A crise de 2008 colocou em xeque a ortodoxia neoliberal e diminuiu os índices econômicos positivos do Brasil. Diante disso, Dilma tem reagido com uma plataforma que, embora não rompa com alguns princípios adotados por Lula, aposta no desenvolvimentismo para amenizar os efeitos da crise. O problema específico que vem criando é a quase indiferença aos impactos humanos (por exemplo, em relação dos índios) e ambientais que esse projeto vem causando, além do perfil tecnocrático do governo.

Sempre se pode alegar, e isso com relativa procedência, que é arriscado admitir o recuo conservador de Marina na macroeconomia, voltando à política econômica do primeiro mandato de Lula. É possível. O problema é que não foi a política econômica desenvolvimentista supostamente “mais arrojada” de Dilma que gerou resultados, mas a manutenção das políticas sociais durante esse período. E em relação a elas Marina não pretende recuar. A vantagem de Marina, seguindo as reivindicações de 2013, é que ela pode atacar o problema político da falta de democracia real (causado pelo domínio oligárquico do peemedebismo), atacar a questão urbana sob uma perspectiva ecológica e abrir espaço para os movimentos sociais sem repressão policial, pontos estratégicos que foram secundarizados por uma visão quantitativa da economia do atual governo. Sem falar no contraponto à hegemonia incontestável dos ruralistas (por mais que haja recuo, é sintomático que Marina ainda seja o nome mais temido por exemplo por Katia Abreu, hoje aliada do governo). Dilma não percebeu o quanto esses pontos são nevrálgicos hoje em dia, continuando com políticas suicidas a longo prazo como fomentar o produção de automóveis para turbinar índices econômicos tornando a convivência social na cidade algo cada vez mais estressante e inóspito para todos os seus habitantes. O que Marina poderia provocar, nesse sentido, não seria uma ruptura anticapitalista em nível macroeconômico, nem tampouco uma transvaloração cultural (nenhum governo poderá fazer isso nesse momento), mas a melhoria qualitativa em alguns setores estratégicos que ela conhece bem a realidade: cultura, meio ambiente, educação, segurança, direitos indígenas e urbanismo. Poderíamos pensar em nomes bem mais imaginativos para essas pastas  que aqueles que comporiam um segundo governo Dilma em um governo Marina (os próprios Luiz Eduardo e Gil, p.ex.). Nesse cenário positivo (do qual não há qualquer garantia), Marina surpreenderia aqueles que privilegiam a macroeconomia com medidas menos abrangentes, mas criativas e transformadoras, como Lula fez no seu primeiro mandato.

Fonte: O Ingovernável

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