PICICA: "O rumo que aqui se defende não ignora as dificuldades presentes e
futuras para a retomada do crescimento nem minimiza os problemas que se
avolumaram no período recente e requerem solução, mas entende que é
possível buscar um caminho que aprofunde o caráter social que marcou o
desenvolvimento brasileiro dos últimos anos"
O autor fala do "arranjo virtuoso" do governo Lula, que favoreceu as condições para a associação de crescimento com distribuição de renda. O sucesso econômico lulista, apto para blindar o país na crise de 2008-09, não se deveu simplesmente a uma conjuntura externa favorável, ao tal "boom das commodities", segundo a narrativa colonizada que tudo de bom ou de ruim que acontece é por causa da conjuntura global, suas crises e ciclos. Na realidade, o cerne do bom desempenho se deu graças ao "dinamismo da economia" acelerado pelo "mercado doméstico", fortalecido pelo aumento do consumo, do investimento induzido (em capacidade produtiva) e inclusão no mercado de trabalho.
Isto inverte a equação economicista: que o sucesso da macroeconomia permitira ousar mais em políticas sociais. Na verdade, a ousadia em políticas sociais --- sua massificação, qualificação e autonomização --- é que garantem o sucesso da macroeconomia. Tal orientação foi viabilizada politicamente com Lula, num arranjo que se construiu em cima do tripé macroeconômico herdado de FHC, e de um foco no social como base do econômico.
André, na conclusão, defende um aprofundamento dos direitos sociais, dotados de um "grande potencial econômico", como demonstrado desde a década de 2000. Escapa-se, assim, de posições eminentemente conservadoras:
1) De que primeiro seria preciso "arrumar a casa", segundo a lógica do "no pain no gain"; a fim de aumentar a competitividade e acelerar a reespecialização produtiva, seria preciso fazer um ajuste estrutural, cortar gastos, reduzir a renda do trabalho e ampliar ainda mais a ação do estado na fiscalidade, um dos apoios do tripé herdado desde FHC, mantidos com tensionamentos num sentido ou no outro, por Lula e Dilma;
2) De um desenvolvimentismo industrialista, que pretende centralizar o controle monetário no estado a fim de financiar grandes players da indústria e agroindústria brasileiras, com vistas a inserir-se no mercado mundial de maneira mais vantajosa, como se houvesse um "setor produtivo" em oposição ao "setor do consumo" ou "serviços", naquela proposta compartilhada por desenvolvimentistas da ditadura e da esquerda (no Brasil, desde os anos 1950), de que existe uma economia real nacional, a base para custear os serviços públicos e direitos sociais (entendidos como gasto);
3) De uma crítica contra o dito "modelo de inclusão social pelo consumo", alegadamente baseado no consumismo e no endividamento, adotada à esquerda (em boa parte, pelo campo "mais-à-esquerda"), contornando o fato que o consumo é produtivo, que as condições de qualidade de vida passam pelo consumo, e que a expansão do crédito não pode ser vista apenas como captura na figura do endividamento: ela é também um aumento do poder de agir associado à produção de virtualidade econômica, o que confere condições para uma reapropriação "desde baixo" dos circuitos produtivos, contanto o crédito seja democratizado.
É possível assumir, a partir dessas reflexões, que a economia durante o governo Lula deu certo porque a multidão *reinventou-a* "desde baixo", entrando em ciclo virtuoso com a massificação e qualificação das políticas sociais, transferência de renda, ampliação do acesso, formação de novas redes e espaços de construção de autonomia. Houve uma grande resiliência entre consumo, produção, inclusão e fortalecimento político, que podem ser radicalizados. A ampliação do ensino, público e privado, por exemplo, não só qualificou a inclusão social, como tem uma força econômica própria: inclusive libertando as pessoas de cotas de tempo de trabalho em sentido estrito. Por isso, as questões macroeconômicas serviram antes de anteparo para essa mobilização produtiva, do que fatores causadores primários --- o contrário seria inverter causa e efeito, e negar que a classe trabalhadora é a força motriz do desenvolvimento.
É nesse último sentido, aliás, que me distancio do texto. Ainda o vejo assentado sobre a virada keynesiana, que parte da macroeconomia e volta a ela, no que se busca uma melhor teoria para a regulação do capital depois da crise de 1929, internalizando o conceito de classe na gestão econômica dos estados e dívidas públicas. Falta, talvez, virar essa crítica ao avesso, partindo da expressão econômica das lutas até a macroeconomia, para então fazer um retorno às lutas, como sugeriria uma teoria marxista da moeda."
CONCENTRAR OU DISTRIBUIR
O “modelo” brasileiro de crescimento e distribuição esgotou-se?
O rumo que aqui se defende não ignora as dificuldades presentes e futuras para a retomada do crescimento nem minimiza os problemas que se avolumaram no período recente e requerem solução, mas entende que é possível buscar um caminho que aprofunde o caráter social que marcou o desenvolvimento brasileiro dos últimos anos
por André Biancareli
I
O crescimento do PIB em 2004 (5,7%, depois de apenas 1,1% no ano anterior) iniciou uma sequência de cinco anos positivos. Nesse período, o dinamismo da economia teve a maior média em mais de duas décadas, atingindo 4,8%. Considerando-se todo o governo Lula, já incluídos o ano de crise de 2009 (queda de 0,3% do PIB) e a recuperação em 2010 (7,5%), essa média fica em torno de 4,1%.
Nesses anos, é possível falar em um “modelo”, ou arranjo, virtuoso. Se a demanda externa ajuda na recuperação, é a doméstica (principalmente o consumo, mas também o investimento induzido) que puxa o crescimento de 2004 em diante. Não há como desvincular esses traços da aceleração na distribuição de renda.
O índice de Gini, em suave redução ao longo dos anos 1990, ampliou seu ritmo de queda: de 0,589 em 2002, chega a 0,543 em 2009. Mais do que isso, a parcela de famílias pobres caiu de 34% em 2002 para 21% em 2009. Ainda de acordo com dados oficiais, o crescimento da renda dos 10% mais pobres entre 2001 e 2009 foi significativamente maior do que o dos mais ricos: 7,2% ao ano contra 1,4%. Em termos de capacidade de consumo, ascenderam 25 milhões de pessoas da classe D para a C – que no final do governo Lula representava 50% da população, ou cerca de 100 milhões de brasileiros.
Essas transformações não foram resultados espontâneos, tendo respondido a diferentes determinantes. O conservadorismo inicial foi sendo gradualmente substituído por uma concepção diferente sobre o papel do Estado, o tamanho e a importância dos bancos públicos e outras empresas estatais, por mecanismos de planejamento, revalorização do investimento público etc.
Para além desse retorno modificado do “desenvolvimentismo” e do cenário externo favorável, quatro foram os motivadores específicos da “criação” de um mercado de consumo de massas no Brasil, nem todos devidamente reconhecidos no debate público: políticas de transferência de renda (com o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada à frente); o sistema de proteção social (apesar de seus problemas, a herança da Constituição de 1988 é fundamental nessa história); a política de valorização do salário mínimo (mais de 50% de aumento real até 2010); e o bom comportamento do mercado de trabalho (notadamente a criação de novos empregos e a redução da informalidade). Interagindo com esses processos, mas também respondendo a outros fatores, a expansão do crédito desempenhou ainda papel importante.
Em poucas palavras, ao contrário de outros períodos na história, a economia brasileira crescia e distribuía renda. E crescia porque distribuía. Os problemas que já se gestavam nesse “modelo” pareciam menos importantes que essa lição principal, reforçada pela exitosa reação anticíclica aos efeitos da crise internacional.
II
Algumas outras causas específicas – casos de corrupção paralisando projetos, dificuldades burocráticas etc. – podem ser consideradas, mas o fato é que a desaceleração foi fortemente influenciada pela mudança de direção na política econômica, especialmente na frente fiscal. Os efeitos contracionistas foram acentuados e perduraram: o PIB cresceu 2,7% em 2011 e, nos anos seguintes, não se conseguiu retomar o ritmo: apenas 1% em 2012; 2,5% em 2013; e não mais do que 1% projetado para 2014. Discute-se atualmente se o país caminha para a recessão, em meio a uma convenção pessimista e à contaminação nítida da conjuntura pelo calendário eleitoral.
Nem a mudança no mix macroeconômico em 2012 (com redução da taxa de juros até o piso histórico de 7,25% e um maior controle sobre a taxa de câmbio) nem os esforços de incentivo à indústria (por meio de isenções descoordenadas para setores específicos) foram capazes de reanimar a produção industrial e o conjunto da economia, que sofre outros males além do baixo dinamismo: deterioração nas contas externas, inflação rondando o teto da meta, piora nas contas fiscais em grande parte explicada pela queda na receita. A estrutura produtiva aprofunda os sinais de regressão e os problemas de infraestrutura logística têm sido enfrentados de forma lenta (que se pretende acelerar com o pacote de concessões para o setor privado).
Teria, enfim, chegado a um limite no governo Dilma a combinação virtuosa entre avanços econômicos e melhoras sociais?
Em relação às segundas, não há esgotamento. Com o aprimoramento da estratégia focalizada de combate à pobreza extrema e a continuidade dos aumentos do salário mínimo, a distribuição de renda pessoal continuou melhorando: o Gini atingiu 0,530 e a pobreza caiu para apenas 16% em 2012. Igualmente, o mercado de trabalho vem mostrando resiliência surpreendente (para a qual contribuem a política de crédito estudantil e a expansão do ensino, que retardam o ingresso no mercado de trabalho). A informalidade segue em queda e o desemprego registra mínimas históricas.
No entanto, é inegável que os efeitos positivos desses bons indicadores sobre o resto da economia são decrescentes e que a insatisfação social é uma realidade, a despeito dos avanços obtidos. Isso tudo ajuda a disseminar a ideia, justificada por diferentes caminhos, de que o modelo teria se esgotado – e precisaria ser substituído.
III
Concordando parcial ou totalmente com esses diagnósticos, algumas propostas de mudança de rumos no desenvolvimento brasileiro mostram-se cada vez mais presentes no debate público.
De um lado, assiste-se a uma nova versão da agenda liberal sendo propagada por setores intelectuais e financeiros com grande exposição midiáticae unidade política. As principais propostas são uma nova rodada de abertura comercial (unilateral), a redução do tamanho e a reversão nos papéis assumidos pelo Estado, uma gestão macroeconômica bem mais rígida (especialmente na área fiscal), a redução dos custos do trabalho e uma ênfase genérica em educação e qualificação profissional. Como seria de esperar, nenhum papel está reservado à dimensão social na estratégia econômica, mas o caráter universal do sistema de proteção brasileiro é claramente criticado, e políticas mais focadas são recomendadas.
Tal visão parece basear-se em uma concepção primária de vantagens competitivas, às vezes defendendo a reespecialização produtiva, sem qualquer atenção às consequências em termos de emprego, salários, sustentabilidade das contas externas etc. Mais importante, sem os ganhos distributivos como os causados pela redução da inflação em 1994 (quando ideias similares se tornaram hegemônicas no Brasil), uma mudança de estratégia nessa direção provavelmente significaria uma reversão no caráter social do desenvolvimento insinuado na última década.
De outro lado, ganhou espaço no debate público e no interior do governo uma visão heterodoxa sobre questões macroeconômicas que se apresenta como uma estratégia de desenvolvimento.Criticando o crescimento com poupança externa e a apreciação da taxa de câmbio, e especialmente preocupados com o processo de “desindustrialização”, a receita aqui é concentrada em medidas de política macro. Uma importante desvalorização da moeda nacional (com vistas a emular a estratégia asiática de crescimento export-led), cortes nas taxas de juros e políticas de ajuste fiscal (corte de gastos) são as principais propostas.
Apesar de antiliberal e focado nos graves problemas da estrutura produtiva, esse conjunto de ideias também se mostra “neutro” a respeito do progresso social como motor econômico. Além disso, a ambição de um crescimento liderado pelas exportações no Brasil parece ignorar todas as outras vantagens dos países industrializados da Ásia (liderança tecnológica, decisões estratégicas das empresas multinacionais a respeito de sua localização, barreiras à entrada etc.) e também pode ser entendida como uma defesa de salários mais baixos como complemento ao câmbio desvalorizado, em busca da competitividade. Isso sem contar o ambiente internacional atual, pouco convidativo a novas potências exportadoras.
Assim, se o esgotamento da associação virtuosa entre crescimento e distribuição ainda é uma questão em aberto, o eventual predomínio de uma dessas duas visões resolveria a questão. A melhora nas condições de vida da população, nesse caso, voltaria a ser um subproduto complementar, quiçá desejável, do êxito econômico – que teria de ser buscado com medidas amargas. Não são poucas nem desimportantes as vozes que clamam, nos dias que correm, por uma submissão dos objetivos sociais à volta do crescimento baseado na eficiência ou na volta da “credibilidade” perdida.
IV
Tal ênfase não tem como objetivo defender o que se conquistou nem considerar os progressos suficientes. Pelo contrário, a prioridade é justificada mais pelos desafios à frente do que pelos avanços obtidos. Há várias razões para isso.
A primeira delas refere-se ao alto nível de concentração de renda que ainda existe no Brasil. Embora importante, a redução do índice de Gini para cerca de 0,5 simplesmente coloca o país entre os dez ou vinte mais desiguais do mundo. A segunda razão é o fato de os resultados positivos concentrarem-se nessa dimensão, limitada, das diferenças sociais. Muito mais difícil de medir, a concentração de riqueza no Brasil é certamente pior do que a de renda, e há razões para imaginar que tenha piorado.
A terceira motivação é a natureza individual, muito associada ao poder de compra, que marca as melhoras. Elas deveriam ser preservadas, mas outro caminho foi pouco explorado: a infraestrutura social, os chamados bens de consumo coletivo ou público, como educação, saúde, transporte e as condições de vida urbana, como o saneamento. Em várias dessas dimensões, a mercantilização progressiva foi a tendência recente. Permitiu-se uma ampliação do acesso a vários desses serviços, descuidando-se, porém, dos aspectos de qualidade e conteúdo.
Ir além da ampliação do mercado de consumo de massas, avançando na dimensão dos direitos sociais (como, aliás, é previsto na Constituição de 1988), seria, portanto, a diretriz principal de uma nova fase do desenvolvimento brasileiro. Essa orientação pode ser justificada por seu conteúdo moral e civilizatório, mas também há um grande potencial propriamente econômico.
Maiores investimentos nessa direção teriam efeitos multiplicadores importantes em termos de emprego, renda e atividades econômicas locais. Além disso, a ampliação do alcance e da qualidade dos serviços públicos elevaria a renda disponível das famílias – efeito não alcançado com a concessão de subsídios às empresas prestadoras privadas, quase sempre com baixa qualidade.
Por fim, outra frente a ser explorada é a da estrutura tributária, complexa e concentrada em impostos indiretos (com baixa incidência sobre altos rendimentos e estoques de riqueza). As dificuldades envolvidas na tarefa de torná-la mais progressiva não reduzem sua importância para a construção de uma sociedade mais justa e com maior potencial de crescimento.
V
André
Biancareli é professor assistente do Instituto de Economia e
pesquisador do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica da
Unicamp-SP.
Ilustração: Daniel Kondo
Ilustração: Daniel Kondo
1 Este artigo é uma versão reduzida e modificada de André M. Biancarelli, “A era Lula e sua questão econômica principal: crescimento, mercado interno e distribuição de renda”, Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n.58, p.263-288, 2014
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
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