setembro 05, 2014

"Eleição: sobre crentes e esquerdas", por Bruno Cava Rodrigues

PICICA: "[...] vou defender Marina Silva, sim, porque a eleição está escancarando as vísceras do que se entende como esquerda no Brasil. Suas tripas cheias de merda preconceituosa, congestionada de medos bovinamente cultivados por doze anos no pasto, confortos pequeno-burgueses e surdez epistemológica estão expostas nas redes sociais, nos jornais, na TV. Marina, como pessoa, é candidata mais aberta do que Dilma e Aécio. Tem maior capacidade de comunicação e composição, esbanja sensibilidade social, conhece de mais perto a pobreza, seu misto de privações e potências que marcam um caráter de generosidade e firmeza."

Eleição: sobre crentes e esquerdas
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Eu sou ateu. Já tentei ser panteísta e panenteísta, que seria mais “filosoficamente correto”. Mas não consigo adotar o Deus de Spinoza e Einstein. Posso apreciar sua grande beleza, o vitalismo, o rigor ao mesmo tempo matemático e ético, mas fé não rola. Talvez sejam os hormônios. Porque sou ateu desde menino. A ideia de Deus jamais se instalou em mim.

Como ateu hormonal, arrogante como muitos, tive uma adolescência difícil. Zombava dos crentes, debochava dos livros religiosos, atribuía a fonte dessas ideias ao populacho supersticioso, à irracionalidade, à fraqueza emocional. De lá pra cá, me tornei menos cretino, embora os hormônios sejam os mesmos. Se existe algo como a maturidade, é dar um salto ético para enxergar no outro não apenas a diferença, mas um universo inteiro diferente com direito próprio. Uma ética que não é apenas reconhecer as crenças dos outros ao mesmo tempo que as atribui, bondosamente, a um déficit de esclarecimento ou à pobreza. Não há nobreza de caráter em julgar os valores e ideias dos outros com menor severidade do que se julga os seus próprios.

Tal salto ético me permitiu ver com mais clareza o corte político de minha intolerância. De família católica, na infância o repúdio ao catolicismo era ambíguo: secretamente admirava a sobriedade da liturgia, a harmonia dos rituais, uma tolerância humanística em não caçar o católico no íntimo de sua consciência: a prática dos sacramentos bastava. Sobretudo, eu reconhecia o trabalho social de pastorais e franciscanos. Sentia uma atração erótica pelos jesuítas, pelas rixas teológicas, por Padre Vieira e São Tomás. A mim, o credo evangélico agredia qualquer coisa de estético. Ofendia o bom gosto mais do que a razão. Já as religiões afro, para o adolescente ateu, significava o exótico: me atraíam menos pelo que diziam, do que pelo elemento de identidade que me permitiam agregar. Hoje vejo obviamente como todas essas posturas de filho esclarecido da classe média branca embutiam preconceito de classe e, claro, racismo.

Tantos anos depois, fiz essa recapitulação por um único motivo. Para defender Marina Silva. Não faço por nenhuma campanha. Primeiro, por não acreditar que mudar o presidente conduza, por si só, a uma mudança real. Só a continuação das lutas, como as do ciclo de 2013, podem tensionar o governo à esquerda, quem quer que seja eleito. Sem a continuação da lutas, o pemedebismo de todos os partidos e os patrões de todos os setores econômicos vão ocupar a governabilidade, independente do candidato eleito. Segundo, porque não devo sequer votar nela: estou mais propenso a, pela primeira vez, anular o voto, e se decidir votar, vai ser no Eduardo Jorge, com a melhor performance à esquerda.

Mas vou defender Marina Silva, sim, porque a eleição está escancarando as vísceras do que se entende como esquerda no Brasil. Suas tripas cheias de merda preconceituosa, congestionada de medos bovinamente cultivados por doze anos no pasto, confortos pequeno-burgueses e surdez epistemológica estão expostas nas redes sociais, nos jornais, na TV. Marina, como pessoa, é candidata mais aberta do que Dilma e Aécio. Tem maior capacidade de comunicação e composição, esbanja sensibilidade social, conhece de mais perto a pobreza, seu misto de privações e potências que marcam um caráter de generosidade e firmeza.

Marina foi católica e agora é protestante. Um flanco desnudo numa sociedade em que o catolicismo está naturalizado na paisagem histórica, e onde o corte católico/protestante corresponde, grosso modo, ao corte rico/pobre. Enquanto os católicos são associados às Luzes, à convivência e à tolerância, os evangélicos são remetidos às Sombras, ao fundamentalismo e à intolerância. Como se a Igreja Católica fosse favorável à legalização do aborto, quando ela é a inimiga maior dessa ideia no mundo, incapaz sequer de reconhecer a relevância da camisinha para o controle de epidemias globais.
É preciso defender Marina Silva, ai de mim, de Jean Wyllis. Jean foi irretocável em indignar-se em termos duros contra o fato que, num dia, o programa de Marina contemplou a quase totalidade da pauta LGBT para, no seguinte, recuar em pontos importantes. Compartilhei da decepção e escrevi a respeito. Mesmo que, apesar do recuo, o programa tenha ficado menos recuado do que o de Dilma, que teve 4 anos para avançar e não avançou um centímetro. Mesmo assim, foi péssimo para Marina. Porém, a declaração de Jean merece retoque, ao dizer que, no caso da última, o recuo se deveu a um obscuro fundamentalismo pessoal.

Erro! Erro ao considerar que um evangélico está essencialmente mais à direita do que um católico ou um ateu, *pelo fato* de ser evangélico. A inversão de causa e consequência embute intolerância. Bispo Macedo, Feliciano e Malafaia não são homofóbicos porque evangélicos: eles são homofóbicos evangélicos, que seriam tão homofóbicos se fossem católicos ou ateus, embora noutros termos, com outra estética. A irracionalidade não está na religião. Uma religião é tão racional quanto qualquer outra, seja católica, protestante ou afro, e nenhuma religião menos do que o ateísmo, que também depende de inclinações, de hormônios próprios. Se alguma posição fosse mais racional do que outras, seria possível convencer racionalmente os outros e eu posso garantir ao leitor, por experiência própria, que é absolutamente impossível convencer alguém a se tornar ateu.

Tudo isso para dizer que, vença quem vencer a eleição, a esquerda precisa de uma dignidade mínima que não tem nada a ver com moral. Tem a ver com uma ética da alteridade, ética da democracia, na base de um projeto de democracia que não se resuma a multiculturalismo cínico. Campanha eleitoral não é vale tudo. Dizer que eleição é guerra e a baixaria se justifica me parece aquele argumento de humoristas racistas que se isentam de responsabilidade porque é humor. Reforçar o fascismo social é assumir uma posição à direita. Não dá pra transigir. A defesa do que se entende por esquerda não pode ser incondicional, ou eufemisticamente “estratégica”, a ponto de depor as qualidades essenciais que nos sugerem continuar adotando a esquerda por campo.

Fonte: Quadrado dos Loucos

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