PICICA: "A despeito de vários estudos realizados nas
últimas décadas, a transição da escravidão para o trabalho assalariado
no Brasil é um tema que ainda precisa ser esmiuçado. Que destinos
tiveram os ex-escravos? Que novas relações de trabalho lhes foi possível
estabelecer? Que profissões exerceram? Como conviveram com a chegada
maciça de imigrantes europeus? Onde habitavam e em que condições?"
A longa transição de escrava a empregada doméstica
Novo livro lança luz sobre origem e
permanência de profissão claramente derivada do escravismo e privada por
cem anos de direitos trabalhistas
Por José Tadeu Arantes, Agência Fapesp | Imagem: J.Baptiste Debret, Um jantar brasileiro, 1927
A despeito de vários estudos realizados nas
últimas décadas, a transição da escravidão para o trabalho assalariado
no Brasil é um tema que ainda precisa ser esmiuçado. Que destinos
tiveram os ex-escravos? Que novas relações de trabalho lhes foi possível
estabelecer? Que profissões exerceram? Como conviveram com a chegada
maciça de imigrantes europeus? Onde habitavam e em que condições?
Um novo livro, recém-publicado com apoio da FAPESP, ajuda a responder a perguntas como essas. Trata-se de Libertas entre sobrados: mulheres negras e trabalho doméstico em São Paulo (1880-1920), de Lorena Féres da Silva Telles.
Graduada em História pela Universidade de São
Paulo (USP) e pela Université Paris IV-Sorbonne, Lorena é atualmente
doutoranda, com bolsa da Fapesp.
Seu livro resultou de dissertação de mestrado orientada pela
historiadora Maria Odila Leite da Silva Dias, professora titular
aposentada da USP.
“O sujeito desse estudo foi constituído por
mulheres, trabalhadoras domésticas na cidade de São Paulo, algumas
escravas, outras libertas, outras já nascidas livres”, disse Lorena à Agência Fapesp.
“Fiz o trabalho com base em documentos
policiais: um livro de inscrições e um livro de contratos de trabalho.
Esses livros foram produzidos em função de uma lei, posta em prática em
1886 em São Paulo, que obrigava os trabalhadores domésticos a se
inscreverem na polícia”, disse.
Nessa época, dois anos antes do fim da
escravidão, quase não havia mais escravos na cidade de São Paulo. A
maioria deles estava nas fazendas de café do Sudeste do país. Essa lei,
obrigando os registros, tinha o propósito de controlar os trabalhadores
livres.
“As inscrições eram fichas de polícia, com
nome, filiação, sinais característicos, profissão, nome do patrão,
estado civil etc. Enfim, uma documentação de controle, estritamente
policialesca”, explicou a historiadora.
Com base em dados tão ralos, Lorena procurou
entender quem eram essas trabalhadoras domésticas. “Eu dispunha de uma
amostragem com cerca de mil inscritos e 1,3 mil contratos. Dos
inscritos, pouco mais de 600 eram mulheres e 490 eram mulheres negras”,
contou.
O estudo exigiu uma boa dose de imaginação.
Foi preciso ler nas entrelinhas e fazer várias suposições a partir das
poucas informações disponíveis.
“Por exemplo, quando a filiação era
desconhecida, eu podia supor que provavelmente se tratava de uma
escrava. Se o pai tinha um nome como ‘José Congo’, eu podia supor que
ela era filha de um africano. Dessa forma, fui juntando os fios para
tecer histórias de vidas. E, com base nesse levantamento, busquei as
origens escravistas do trabalho doméstico”, disse.
Um dos recursos utilizados foi cruzar dados
do livro de inscrições com dados do livro de contratos. “Desse modo,
pude rastrear, a partir de contratos sucessivos, as trajetórias de
algumas daquelas mulheres”, disse.
Ao preencher os contratos, muitos patrões
simplesmente seguiam a fórmula estabelecida pela Câmara Municipal.
Outros, porém, acrescentavam informações, o que ajudou muito o trabalho
da pesquisadora.
“Encontrei, por exemplo, o caso de uma
cozinheira denominada pelo patrão de ‘Preta Felicidade’. O simples fato
de ele chamá-la de ‘Preta’ já indicava que, provavelmente, se tratava de
uma ex-escrava. Outro caso foi de uma africana, de 60 anos, que
escandalizou sua patroa ao dizer: ‘Não sou sua escrava’. Isso foi
anotado no livro. E me trouxe a imagem de uma altiva africana, destemida
e zelosa por sua liberdade”, disse.
Em 1872, por ocasião do primeiro censo
realizado no Brasil, havia no país pouco mais de 10,1 milhões de
habitantes. Destes, cerca de 1,5 milhão eram escravos. O recenseamento
de 1890 revelou que a população havia crescido para aproximadamente 14,3
milhões.
Três anos antes, em 1887, a apenas alguns
meses do dia 13 de maio de 1888, quando a princesa Isabel sancionou a
Lei Áurea, extinguindo a escravidão no Brasil, o contingente escravo
somava 723.419 pessoas, menos da metade daquele do início da década
anterior.
Essa curva descendente da população
escrava, que não mudou de inflexão desde o fechamento dos portos
africanos, em 1850, estimulou o tráfico interno, direcionando a mão de
obra cativa para as regiões de maior dinamismo econômico, como o oeste
paulista, fronteira da expansão da cafeicultura. Como consequência, na
última década do período escravista, a cidade de São Paulo tornou-se
notavelmente desprovida de escravos.
“O censo de 1886 computou na cidade
aproximadamente 48 mil habitantes, dos quais pouco mais de 10 mil foram
classificados como negros ou mulatos. Desse segmento de ascendência
africana, mais de 95% eram constituídos por homens e mulheres livres. O
recenseamento apontou 268 escravas e 225 escravos”, disse Lorena.
A forma predominante de moradia desses
“negros” e “mulatos” livres eram as habitações coletivas de aluguel. Com
cômodos subdivididos, de forma a abrigar um número cada vez maior de
pessoas, essas habitações se multiplicavam nos bairros do Bixiga e do
Brás, bem como naquele bairro que, à época, constituía ainda uma área
periférica, com características rurais: a Penha.
“Havia escravas que negociavam com suas donas
e donos moradia em pequenos cômodos, fora da casa senhorial. Por outro
lado, no caso de muitas mulheres livres ou libertas, empregadas
domésticas, a moradia, a roupa e a alimentação eram a única forma de
pagamento. Ou, então, seus salários eram tão baixos que frequentemente
inviabilizavam o pagamento de um cômodo de aluguel, razão pela qual os
cômodos e seus custos eram compartilhados”, disse a historiadora.
O salário de uma trabalhadora doméstica
responsável por todo o serviço da casa variava de 12 mil réis a 20 mil
réis. E o aluguel de um cômodo custava, às vezes, 15 mil réis. Assim,
era praticamente impossível, para essas empregadas, morarem sozinhas.
“Se não moravam com os patrões, era muito provável que morassem com
parentes, companheiros, filhas e filhos”, conjecturou Lorena.
Um capítulo especialmente interessante do
livro é aquele que a autora dedicou às trabalhadoras que já possuíam uma
certa especialização: cozinheiras, quitandeiras, lavadeiras,
engomadeiras, amas de leite. Sua atividade profissional e sua vida
cotidiana são descritas de forma muito vívida, como neste parágrafo
dedicado às lavadeiras:
“Enfrentando a lida diária de longas
caminhadas, expostas ao frio, à chuva e ao sol a pino, equilibristas de
trouxas pesadas e prazos de entrega, as lavadeiras foram fundamentais à
sociedade da higiene, com seus lençóis e roupas brancas. Circulando nas
imediações urbanas, em direção às beiras de rios e chafarizes, à procura
de emprego, eram impelidas às ruas pela necessidade do ofício,
dependentes de si mesmas e dos parcos ganhos auferidos do exercício
desse trabalho desqualificado”, disse Lorena.
Para compor sua narrativa, uma das fontes
documentais utilizadas pela pesquisadora foram processos criminais de
mulheres presas por vadiagem. “Muitas dessas mulheres eram lavadeiras,
que tinham uma mobilidade maior pela cidade, pois iam às casas para
buscar ou entregar roupas. E foram presas por estarem desempregadas ou
bêbadas. Percebemos, assim, como havia um forte controle social e
policial sobre os negros, pobres e mendigos nas ruas”, comentou.
A introdução das redes de abastecimento de
água e dos tanques domésticos, iniciada na década de 1880, enclausurou
esse trabalho, antes exercido extramuros. Posteriormente, os próprios
rios seriam enclausurados, em dutos subterrâneos, invisíveis aos olhos
dos habitantes, cada vez mais ignorantes acerca da topografia e dos
recursos naturais de sua cidade.
Amas de leite
Outra mudança fundamental, constituída pela
entrada maciça de imigrantes europeus, foi destacada pela historiadora
no subcapítulo dedicado às amas de leite, agora tema central de seu
doutorado.
Desde 1870, com a Lei do Ventre Livre e a
perspectiva de que não nasceriam mais escravos no Brasil, a solução da
imigração começou a ser levada a sério pelas elites econômicas e
políticas. E as consequências práticas logo se fizeram notar.
“As brasileiras negras continuaram a ser
maioria entre as amas de leite, mas surgiu uma competição entre elas e
as imigrantes – portuguesas, italianas e alemãs. Isso aparece de forma
bem clara no livro de inscrições”, afirmou.
Como uma das conclusões de sua pesquisa, a
historiadora enfatizou o quanto o trabalho doméstico ficou marcado, no
país, pela herança escravista.
“A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT),
aprovada em 1943, ignorou a categoria, sob a alegação de que as
trabalhadoras domésticas desempenhavam atividades de caráter não
econômico. E a Constituição Federal de 1988 limitou o acesso delas a
somente 9 dos 34 direitos garantidos aos demais trabalhadores”, afirmou.
“Apenas em 26 de março de 2013, quase 125
anos depois do fim da escravidão, a aprovação do projeto de emenda
constitucional conhecido como ‘PEC das Domésticas’ estendeu à categoria
direitos básicos, como jornada de trabalho de 8 horas diárias e 44 horas
semanais, pagamento de horas extras e adicional noturno, fundo de
garantia por tempo de serviço e seguro-desemprego. Benefícios como
auxílio-creche, seguro para acidentes de trabalho e salário-família
carecem ainda de regulamentação”, disse.
Fonte: OUTRAS MÍDIAS
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