SENADOR AUGUSTO BOTELHO/RR: Qual é a tua História no PT?
Pela internet estou acompanhando os encaminhamentos dos senadores de Roraima contra Raposa Serra do Sol como área indígena contínua. E na semana que passou sob tua principal responsabilidade se encaminhou um documento ao STF no qual se reclamam "as terras do município de Pacaraima e as vilas Socó, Mutum e Surumu" um total de 320 mil ha" para 500 famílias de pequenos pecuaristas e produtores que as ocupam há mais de um século e estão sendo enxotadas, excluídas à força pelo Governo Brasileiro". Segundo a informação o encaminhamento é parte da Petição 3388 de sua autoria, senador Augusto Botelho (PT/RR).
Em primeiro lugar quero lhe dizer que ou você não conhece a históriado seu Estado de Roraima e em especial da área Raposa Serra do Sol, ou você quer evitá-la intencionalmente. A um senador do Partido dos Trabalhadores nem uma coisa e nem a outra são permitidas. Veja abaixo e leia com atenção um pouco da Historia dos invasores da terra indígena Raposa Serra do Sol que registrei não "há mais de um século", mas em novembro/1976 ao fazer um levantamento demográfico na região:
"No dia 24 de novembro/1976, profundamente abatido, procurou-me o Tuxaua da aldeia Makuxi do Barro, próximo à Missão Surumu, a 200 km de Boa Vista/RR e me disse: "O fazendeiro, Dr. José Augusto Soares, está massacrando o Tuxaua do Arai. Estão acusando o tuxaua Laureano do Araide ter matado um boi do fazendeiro".
Os fatos: Em meados de junho de 1976, o tuxaua Laureano da Aldeia do Arai, distante dois dias a pé da Missão Surumu, recebeu a seguinte intimação da Policia Federal: "O Tuxaua Laureano – região do Arai, fica intimado a comparecer na Fazenda Vendaval, de José Augusto Soares, no dia 17/06/76, na parte da manhã. O escrivão de Policia Federal (ass. ilegível)"
"No dia marcado – conta-me o próprio Tuxaua Laureano – compareci na fazenda do Dr. José Augusto" (Dr. José Augusto é médico-veterinário, filho de Da. Nenê Macaggi, autora do livro "A Mulher do Garimpo" e ex-funcionária do Serviço de Proteção aos Índios – SPI, tendo sido funcionária do mesmo serviço na Reserva São Marcos, demarcada por Rondon em 1917 para os índios Makuxi e Jarikuna, conforme demonstramos marcos com placas de bronze espalhados em pontos estratégicos da área indígena, nas quais se lê: 'MINISTÉRIO DA AGRICULTURA INDUSTRIA E COMERCIO – SERVIÇO DE PROTEÇÃO AOS INDIOS INSPETORIA NO AMAZONAS E ACRE TERRAS RESERVADAS PARA DOMICILIO E APROVEITAMENTO DOS INDIOS MAKUXYS E JARICUNAS LEI ESTADOAL Nº 941 DE 16 DE OUTUBRO DE 1917'.)
A fazenda do Dr. José Augusto foi grilada dessa reserva dos índios Makuxis e Jaricunas. Próximo à maloca do Arai mora um o Sr. José Simão, casado com uma índia Makuxi, pai de 12 filhos e que possui uma pequena criação de gado – umas 20 cabeças. O vaqueiro da fazenda Peixinho, que limita com a fazenda do Dr. José Augusto e cujo dono é muito amigo do Dr. José Augusto, soube das intenções deste de eliminar da região o Sr. José Simão e, sabedor de uma rixa existente entre José Simão e os índios, levou o caso da encrenca para o Dr. José Augusto, como arma contra o Sr. José Simão. Além disso, quis eliminar o Sr. José Simão da região, pois uma eventual aliança deste com os índios representaria um grave perigo para a sua fazenda.
Estiveram presentes na reunião além do tuxaua Laureano o Dr. José Augusto, Sr. Jose Simão e dois elementos da Polícia Federal, um dos quais ostensivamente armado. Dando inicio à reunião, a Policia Federal deu ordem sumária ao Sr. José Simão de se retirar da região no prazo de 5 meses, alegando a encrenca com os índios. O tuxaua Laureano não concordou com a injustiça contra o Sr. José Simão, mas a trama foi tão bem articulada pelo Dr. José Augusto, que com ela, além de conseguir os seus intentos contra o Sr. José Simão, se apresentaria como benfeitor dos índios, para assim poder melhor desarmá-los e consequentemente massacrá-los mais facilmente, tirando-lhes o último chão e utilizando—os como mão-de-obra barata, sobretudo na construção de uma estrada que deseja abrir com a colaboração da sub-prefeitura de Surumu e por meio da qual mais facilmente poderá continuar a grilagem das terras indígenas.
Tomada essa decisão contra o Sr. José Simão, que não teve a mínima chance de se defender, conforme denunciam os próprios índios, o Dr. José Augusto se dirigiu ao tuxaua Laureano: "Agora tem um problema para resolver entre mim e você. Você flechou um boi meu e o moqueou! Você vai ter que pagar ele!" "Isto é menos verdade!" – respondi, conta o Tuxaua. "Tenho prova!" – respondeu o fazendeiro. "Qual a prova?" –perguntei. " Aí ele chamou um curumim (menino) de 9 anos (filho de um índio Makuxi da aldeia Cumanã e cujos pais trabalhavam na fazenda) e o mandou ajoelhar no meio. Aí disse: 'Aqui o testemunho, este menino'. "Aí então o menino chorou e falou que eu tinha flechado o boi do Dr. José Augusto e o tinha moqueado e comido. Depois saiu para a cozinha e chorou.
O Dr. José Augusto disse então: "Você vai pagar o meu boi que você matou. Que o Sr diz disso?" "Eu sou inocente!" Então a Policia Federal (PF) falou: "Você vai pagar esse boi com o seu pessoal. Você matou, você flechou, você vai pagar!" Aí eu disse: "Só vou pagar se o menino me mostrar o lugar onde eu matei, flechei e moqueei o boi". Aí então o fazendeiro deu o preço de um garrotinho de Cr$ 1.000,00 para eu pagar – ou o dinheiro ou um outro garrote no seu lugar. "Você junta mais 4 homens e vão pagando pouco a pouco. Eu vou abrir um serviço para você pagar". Eu disse que não ia pagar sem ver o lugar onde tinha moqueado o boi. Ali então a PF tomou a frente e falou duro: "Aqui não tem muita conversa, você paga o boi"! aí eu fiquei com medo e nãofalei mais nada. Aí ninguém mais falou, tudo armado, o que ia eu dizer? (Foi a primeira vez que Laureano se defrontou com a PF).Terminou a reunião. O menino ficou retido dois meses na fazenda. Afinal, o seu pai, José, da aldeia Cumanã, o exigiu de volta à força. O menino confessou que o vaqueiro do Dr. Jose Augusto, de acordo com este, pegou-o e não o deixou mais ir embora, prometendo uma vaca gorda de cria, se ele descobrisse o roubo das malocas. O pai do menino disse que o fazendeiro, "prometeu muitas coisas além da vaca".
O Dr. Jose Augusto passou então aos detalhes do pagamento do boi: "o pagamento devia ser feito com dez homens dando todos cinco dias de serviço ou por cinco homens em dez dias de serviço."
"O tuxaua voltou triste para a sua maloca. Ali os seus companheiros se revoltaram contra ele e de maneira alguma aceitaram o resultado da reunião, dizendo que aquilo era um absurdo, uma vez que ninguém na maloca tinha roubado o boi. Pressionado por todos os lados, o tuxaua, aflito, procurou seu colega tuxaua da aldeia do Barro e a missão de Surumu."
"Dias depois, inícios de julho, o doutor José Augusto me mandou recado urgente por radio para o tuxaua do Araí e o tuxaua do Barro ir à Divisão (limites da fazenda no caminho do Arai) para se encontrar com ele. Mas eu não ouvi o aviso e por isso não fui. Só veio o tuxaua do Barro com mais dois índios Makuxi da mesma aldeia, seu Chico e seu Vitalino."
"Nessa reunião – conta o tuxaua do Barro – o Dr. Augusto falou que o tuxaua Laureano 'tá fazendo ele de menino. – Eu acerto com aquele índio sem vergonha!' E gritava alto. Para o vaqueiro disse: "De hoje em diante quando os índios do Cumanã e do Arai passarem pela fazenda, solte os cachorros neles e dê um pontapé e nem que estiverem com as tripas de fora, é proibido de dar até um pouco de água e também é proibido caçar e pescar no Miang." E acrescentou: "Eu sou muito bom para os índios, mas assim matando gado, não!" Aí disse que eu me retirasse e deixasse ele só. Disse que ia fazer uma terceira reunião."
"Alguns dias depois, ainda em julho, mandou outro aviso para Laureano novamente comparecer na fazenda. "Andei um dia inteiro para ir até a Divisão. Vim cansado. Ele veio de avião. Falou muito duro comigo. Me maltratou muito, porque não cheguei no dia, na hora. E não quis conversa comigo e me mandou com os índios do Barro, com quem já tinha combinado o que deveria fazer. Aí eu pedi ao vaqueiro agasalho para dormir porque já era quase noite. Mas o doutor tinha dado ordens para o vaqueiro não dar mais hospedagem para os caboclo do Arai. Aí fui dormir com os meus patrícios na aldeia do Barro. Cheguei tarde da noite. Para os índios do Barro ele falou que eu deveria pagar o boi de todo jeito, ou então ele tomaria o meu único boi, um boi manso que eu tenho. É o único transporte que tenho para trazer fardo do Arai para Surumu.
"Depois desta reunião, ele foi embora. Diz que ia ao Rio. Então eu fui para Boa Vista para falar com a Funai." (Dois dias a pé e mais duzentos quilômetros de carona. Quando se apresentou ao Delegado estava ali também o fazendeiro José Augusto.) "Falaram muitas coisas, mas não entendi nada, porque branco fala muito difícil." – disse otuxaua. No fim da conversa em que, segundo o tuxaua, participaram somente o delegado, o fazendeiro e ele. O Delegado da Funai lhe pediu para voltar no dia seguinte para receber uma carta antes de voltar à aldeia. Enquanto saia da Delegacia da Funai o tuxaua ainda viu que o Delegado se reuniu com outras pessoas, mas não reconheceu ninguém afora o Dr. José Augusto.
Na manhã seguinte, o tuxaua recebeu das mãos do Delegado da Funai, Sr. José Carlos Alves, um envelope com a recomendação: "Aqui uma carta para o seu povo. Mantenha-a fechada até chegar à aldeia. Ali você reúne o seu pessoal e então você pode abrir a carta e a lê para o pessoal."
Chegando à aldeia, o tuxaua, esperançoso, reuniu logo seu povo e abriram a carta, defrontando-se com a triste realidade abaixo:
"MINISTERIO DO INTERIOR
FUNDAÇÃO NACIONAL DO INDIO-FUNAI
10ª DELEGACIA REGIONAL
À Maloca do Arai
Prezados Índios
Ficou acertado aqui entre eu, Delegado da Funai, Tuchaua Laureano, Dr. José Augusto e Dr. Miguel da Policia Federal, uma ajuda para vocês aí, porém o caso do boi, deve ser acertado. O tuchaua é elemento representativo de vocês perante a Funai e como tal deve ser ajudado. Hoje ele vai levando pregos para mudar a cobertura da Escola, logo que estiver pronta, já combinamos com a Secretaria de Educação, será mandado Professor.
No fim do mês de agosto e início de setembro vou aí junto com Dr. José Augusto, vê se a escola está pronta e combinar um término de estrada até a maloca, quando a Funai dará umas ferramentas para trabalhar na estrada e um pouco de rancho e o José e Peixinho darão uma vaca para comer nos trabalhos.
Com isso, peço a vocês ajudarem para nós pagar esse boi do Zé Augusto, se reúnam com o tuchaua e combinem como será o serviço e quando eu chegar combinaremos o dia de começar o trabalho para também pagar o boi. Vocês com isso ganharão ferramentas, estrada e uma vaca para comer no serviço. No serviço do Zé Augusto ele dará comida também e desde já ele autorizou novamente o vaqueiro dele a deixar os índios do Arai parar no casa dele, dormir e comer alguma coisa.
Vejam bem, se unindo a nós e ao tuxaua, ganharemos mais conceito e consideração, a Funai ajuda, combina, mas também pune. Quando for levarei remédio também.
CARTÓRIO COELHO B. Vista, 29/7/76
TAB. DEUSDETE COELHO
FUNDAÇÃO NACIONAL DO INDIO
BOA Vista – RORAIMA
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Certifico que a presente (a) José Carlos Alves
"A carta completou a desmoralização do tuxaua diante de sua comunidade. Como era de esperar, os índios se revoltaram contra o indefeso tuxaua e continuavam a negar a sua participação no pagamento de um boi queeles não haviam matado.
Completamente desarmado diante de sua comunidade e sem testemunhas a seu favor, o velho tuxaua Laureano procurou novamente a Missão Católica de Surumu trazendo consigo o documento da Funai.
A Missão escreveu uma carta ao Delegado pedindo uma explicação do documento, não obteve resposta. Laureano, humilhado, voltou à sua maloca, onde continuou seu trabalho na lavoura.
"Agora, no começo de novembro - concluiu Laureano - vinha eu do Arai tocando o meu único boizinho, carregado de farinha de mandioca para ir comprar sal e fósforo em Surumu. O Dr. me viu passar na fazenda dele e me veio cercar com o seu carro. Ele estava armado. Ele falou assim: 'Ô caboclo vagabundo, você não vai pagar o meu boi?" Aí então me provocou para trocar bala com ele. Aí eu fiquei com medo. Ele disse que se vestiria de saia e iria até a minha maloca do Arai para tirar o meu boi. Depois das eleições eu vou trazer a Funai para você falar direito com eles".
Laureano procurou uma terceira vez a Missão. Desta vez chorando, dizia: "o branco vai matar os índios".
No dia 26 de novembro, encontrei o tuxaua Laureano que me disse:
"Agora o Dr. José Augusto quer abrir uma fazenda perto da maloca do Arai. Mas nós não queremos este homem aqui." O tuxaua está convencido que o Dr. José Augusto trabalha com a Funai, "pois o Delegado me disse: 'o Dr. José Augusto trabalha comigo'.
Egydio Schwade" (Extraído de um relatório meu de novembro/1976)
Foram muitas histórias dessas, de índios, de lavradoras e lavradores, de operários, de quilombolas... que motivaram a sociedade civil, durante a ditadura militar, a criar uma rede de apoio aos oprimidos: OPAN, CIMI, CPT, CPO, CEDI, CP-I/SP, CP-I/AC, CPPY, ANAI, CTI, GRUPO KUKURO, MST e outros, além dos Sindicatos sem conta. E foi deste movimento popular que nasceu o Partido dos Trabalhadores. Participei da fundação do PT no Amazonas e em especial em Itacoatiara e no Mun. de Presidente Figueiredo. Jamais podíamos imaginar que o Partido dos Trabalhadores um dia acolheria pessoas que lutariam contra tudo que motivou a sua criação. Algo está errado entre as origens do PT e voce, senador Botelho. Como pode ver pelo relato acima de 1976, voce está na contramão dos princípios do partido, inclusive, daquelas esquecidas agricultoras e agricultores da Perimetral/sul de RR que criaram nos anos 80 o partido em RR. De forma sofisticada voce exerce hoje o papel desses invasores citados na história acima: do pecuarista, Dr. José Augusto Soares, do Delegado da FUNAI, José Carlos Alves ou Dr. Miguel da Polícia Federal. No teu caso voce deve multiplicar a sua responsabilidade ao quadrado. Pois a crueldade de um indivíduo investido no poder de senador da república, 32 anos depois, ajudando a roubar a melhor parte do que restou aos índios de Raposa Serra do Sol, como intruso no PT, merece a "execração pública", na expressão do Gal. Alipio Bandeira referindo-se a ação de bandoleiros civis e militares em terras indígenas do Sul de Roraima. (veja "Jauapery"/1926).
Casa da Cultura do Urubuí/Presidente Figueiredo.
Egydio Schwade
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