abril 09, 2010

Saúde Mental e Economia Solidária


onidbr 13 de outubro de 2008Paul Singer fala sobre os princí­pios e as perspectivas da economia solidária.

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Nota do blog: Logo mais estarei na Escola Superior de Tecnologia da Universidade do Estado do Amazonas falando de Saúde Mental e Economia Solidária num curso promovido pela Universidade Federal do Amazonas para um público do campo da saúde mental. Aproveite e leia trecho de um texto que apresentei no curso de Mestrado em Sociedade e Cultura, com o título "Trabalho Protegido em Saúde Mental", que breve estará disponível neste blog.

Trabalho protegido em Saúde Mental*

Rogelio Casado**

Resumo

O artigo aborda o trabalho protegido em Saúde Mental na cidade de Manaus, no contexto da reforma psiquiátrica brasileira, cuja origem remonta a um período anterior à decadência do projeto econômico neo-liberal, e analisa as vicissitudes do acolhimento dessa noção à luz da contribuição de Habermas com sua teoria da linguagem.

Abstract

The article approaches the work protected in Mental Health in the city of Manaus, the context of the Brazilian psychiatric reform, whose origin retraces to a previous period to the decay of the neoliberal economic project, and analyzes the vicissitudes of the shelter of this notion to the light of the contribution of Habermas with its theory of the language.

Palavras chave: Trabalho protegido, saúde mental

Nos últimos trinta anos, o Brasil passou por um intenso processo de ruptura com o marco que delimitava e que condenava a loucura ao silêncio. Uma reforma vigorosa no campo da saúde mental atingiu todas as práticas, sobretudo as da psiquiatria, a partir da radicalização do movimento social que passou, desde 1987, a empunhar a bandeira de luta por uma sociedade sem manicômios (1).

Entretanto, se a radicalização do movimento social e suas práticas abalaram o edifício epistemológico que dava sustentação à definição da loucura, as redes discursivas que reconduzem a loucura ao convívio com a cultura contemporânea ainda enfrentam os discursos humanitários que, não raro, tentam ampliar as margens da tolerância ao modelo manicomial, como se “a bondade e a generosidade” (2) fossem capazes de evitar a construção de novas exclusões simbólicas (GÓES, 1999).

Para a teatróloga e psicanalista Clara Góes (1999), o manicômio, inventado com o propósito de recolher e disciplinar, foi aprimorado com o passar dos anos. Salvo aonde os coletivos submeteram essa instituição totalitária à análise crítica, o que se observa é o surgimento de um discurso humanizador, capaz de mimetizar o vocabulário progressista e reformador (BEZERRA, 1999), e que tem como efeito a sobrevida do modelo manicomial (3). Tais ações não se dão sem conseqüências. Em causa a disputa pela hegemonia no campo da saúde mental, da passagem do modelo biomédico para a ação biopsicossocial.

Desde que Descartes colocou a consciência como lócus privilegiado do pensamento, inventado o sujeito como possibilidade garantida do pensar (GÓES, 1999), a Modernidade livrou-se do ceticismo que alimentava as referências simbólicas dos discursos vigentes, e rearticulou a verdade ao saber.

Para Clara Góes (1999), o saber da ciência moderna entregou a verdade nas mãos de Deus e ao sujeito a possibilidade de obtenção da certeza. Entretanto, a autora indaga em que medida é possível ter certeza de uma idéia? Como garantir que as representações, matéria do próprio pensamento, sejam verdadeiramente representantes das coisas a que se referem?

Clara Góes (1999) afirma que Descartes produziu em engenhosa construção, ao identificar o sujeito ao pensamento (penso, logo, existo), tornando este último confiável porque foi o único capaz de se apresentar como substituto de Deus. É o pensamento que é evocado na construção da Representação nesse processo de substituição, diz ela. Entretanto, a loucura fica excluída como condição mesma dessa representação (4) nas palavras da autora:

Pode-se dizer que Deus não chega aos loucos. Na loucura, Deus não pode garantir nada. Se a loucura permanece no âmbito da Representação, não se pode considerar que aí se possa produzir pensamento, vale dizer, qualquer tipo de saber. E por quê? Justamente porque as representações são loucas, não se pode garantir a adequação entre idéias e aquilo que pretendem representar no pensamento. A loucura vaga no vazio de Deus, nem mesmo os demônios, em tempos de Razão, podem ser evocados como companheiros. A loucura, no paradigma da Representação, entra como uma espécie de ruído, de curto circuito.

Segundo a autora, justificada a exclusão do louco da rede simbólica de discursos, sua palavra não é escutada no âmbito da cultura, salvo como algo ininteligível. O manicômio, nesse contexto, deve ser considerado como efeito perverso de uma cultura que, antes de enclausurar, silencia o que está fora da rede simbólica que a sustenta (GÓES, 1999).

Clara Góes (1999) afirma que para esse assassinato simbólico – já que “nem mesmo Deus, garantia da verdade na representação, atravessa as marcas que delimitam e cercam a loucura” – concorre uma definição de loucura que a condena “a viver nas trevas do silêncio imposto pela brutal surdez da cultura”. Nessa definição a loucura figura como “uma dimensão onde a verdade não vige como instância de sustentação discursiva” (p. 125).

A autora indaga o que é preciso para reconduzir a loucura às redes discursivas que sustentam a cultura moderna ocidental? Pare ela, não bastam os discursos humanitários. É preciso, diz ela à p. 126:

Escutar a loucura, restituir-lhe um lugar na rede simbólica dos discursos, vale dizer, reconhecer-lhe como um lugar de produção de saber, e somente se ela, a loucura, for rearticulada à verdade. Verdade que é a instância e o substrato do saber na cultura. [...]

Para Clara Góes (1999), Freud tem um papel importante na rearticulação da loucura à verdade ao inventar o inconsciente, “lugar, por excelência da verdade, da verdade do desejo, da verdade do sujeito”. Ela nos lembra que, em sua escuta, ele não desautoriza a fala das histéricas como uma fala mentirosa. Ao contrário, reconhece no sintoma a manifestação do inconsciente, dando-lhe um estatuto de verdade.

O criador da psicanálise é quem promove a virada epistemológica, quando interpreta os sonhos “como realização de desejo, desejo que causa o sujeito e traça o leito por onde corre a vida” (5). É a partir do sonho como manifestação do inconsciente que Freud abre caminho para “a constituição de um território comum a loucos e não-loucos”.

É nesse território, onde a verdade se articula com um saber, o saber do inconsciente, saber da verdade do sujeito, que Freud funda uma nova articulação do sujeito à linguagem, segundo a autora. Ora, o estatuto da linguagem escapa à Representação. Logo, a loucura não está excluída. Ao contrário, diz a autora, ela é “evocada como testemunho da operação constitutiva da realidade psíquica que se articula à verdade” (6). A própria estrutura do delírio é a metáfora que sustenta a existência.

Clara Góes (1999) conclui seu artigo afirmando que é a partir da invenção do inconsciente freudiano que a loucura passa a ser escutada e reconduzida à rede discursiva que sustenta a cultura. Diz ela:

A loucura pode ser vista, como já fora em sociedades diferentes das nossas, como um lugar de produção de saber, de um saber que só aí pode se produzir. A loucura é reconduzida às redes simbólicas e ao mercado de circulação de valores, única instância na sociedade ocidental, de onde se pode falar e ser escutado”.

Para Clara Góes (1999), foi Freud quem suturou o abismo no qual a representação, substrato da Ciência Moderna, havia lançado a loucura. Para ela, a abjeta acusação de que a loucura era uma fala sustentada na mentira perde em convicção com a construção desse novo continente do conhecimento: a psicanálise. Ainda, segundo essa autora, Freud, ao trazer a mentira e o engano para o campo da verdade, altera o estatuto de ambas e devolve a existência aos loucos, dissolvendo o edifício dos saberes que os submetiam ao silêncio.

Reinserção social do louco

Se o valor da escuta ainda é um processo em desdobramento na produção do conhecimento e do que fazer no campo da saúde mental, como proceder para por abaixo o edifício da dominação exercida por saberes conservadores e pela prática assistencial paternalista? Como enfrentar a psiquiatra ortodoxa e convencional, sem reproduzir o seu caráter de tutela vigilante e coercitiva? Como romper com a delegação conferida à psiquiatria de excluir aquilo que à sociedade lhe parece perigoso, sem denunciar o caráter excludente da própria ordem social e econômica, bem como a construção social dessa percepção?

Entre escutas e falas vai-se tecendo o campo da Reforma Psiquiátrica, em seus fluxos e refluxos, e nela seus projetos de reabilitação psicossocial do louco. Há urgência na criação de serviços substitutivos ao modelo manicomial. Ao tempo em que é renovada a linguagem na organização do mundo social, o mundo psíquico passa a ter novas formas de expressão. Mas, nem sempre foi assim.

No Cadernos do IPUB n.3 (1999), João Ferreira da Silva Filho, Ana Cristina Figueiredo e Maria Tavares Cavalcanti afirmam que há dois grandes movimentos da assistência psiquiátrica. No século XIX, o “doente mental” deixa a comunidade para ser internado em grandes asilos. É o período da institucionalização das práticas terapêuticas. Na segunda metade do século XX, emerge um movimento de desinstitucionalização. Os “doentes” deixam os hospitais e retornam para suas comunidades.

Desta vez, a questão que se coloca para os profissionais da saúde mental vai além das garantias de oferecimento de tratamento. É necessário ouvi-lo, como ensinou Freud. E mais do que isso, trata-se, agora, de promover a reinserção social do “doente” através de programas de reabilitação.

Foge do escopo deste artigo analisar os processos históricos de cada um desses dois movimentos – internação e desinternação –, tampouco discutir os dispositivos que sustentam a assistência psiquiátrica que vem transformando o cenário da atenção em saúde mental em todo o país, nos últimos trinta anos.

Em causa, sim, a urgência em restituir o respeito ao “doente mental” e facilitar o restabelecimento dos seus laços societários, num cenário em que a margem de excluídos não só ampliou, como os inseridos não demonstram preocupação com a porção “desinserida”, segundo os autores citados.

Na apresentação do livro “Por uma assistência psiquiátrica em transformação”, os autores indagam:

“Seria o destino do ‘doente mental’ (grifo meu), do louco, ser o excluído dos excluídos? Qual é a função da psiquiatria nesse momento?”

Segundo Serpa (1999), é familiar ao leitor de Foucault as hipóteses por ele levantadas em sua rica pesquisa sobre a “História da Loucura. Para ele, ao longo dos séculos XVII e XVIII o mundo ocidental produziu uma fissura fundamental entre a Razão e a Desrazão – reduzindo o louco à condição de objeto de um saber que passa a falar em seu nome, imobilizando-o como “doente mental”.

SERPA (1999) trás para o debate acadêmico a importante contribuição de Swain (7) com uma interpretação das formas de loucura que, não raro é, apresentada como oposta a de Foucault. Swain (apud SERPA, 1999) toma dois filósofos fundamentais do pensamento ocidental moderno para descrever a mudança de mentalidade sobre a loucura operada na virada do século XVIII para o XIX.

Swain estabelece um debate imaginário entre os filósofos Kant e Hegel. Kant “identifica uma concepção da loucura como completa e total” – loucura como um Outro da Razão, fechada em si, obedecendo regras próprias – , o que trás como conseqüência a incurabilidade do louco e a exclusão de qualquer iniciativa terapêutica.

Já Hegel tem uma concepção oposta, ao entender “a loucura como uma contradição no interior da razão”. As conseqüências desse ponto de vista é que “o louco[...] não se evade do pensamento comum rumo a um além, onde seu pensamento estaria de acordo consigo mesmo, para sempre inalcançável”. Neste caso, se a loucura não é completa, segundo Hegel “a razão permanece mesmo quando ela é acometida”. Daí a loucura poder ser curável.

SERPA (1999) chama atenção de que curabilidade deve ser desencarnada da visão médica e “ser entendida aqui menos como um resultado, um retorno ao estado anterior à doença, do que como um processo terapêutico a ser atravessado”.

Para esse autor, o fato é que se alguns filósofos consideraram a loucura como “ausência radical de si mesmo”, como “privação simultânea do saber de si e do poder de sobre si”, os alienistas não compartilhavam dessa concepção absoluta da loucura, pois eles pensavam que “pode haver privação da liberdade sem comprometimento da consciência de si”. Ora, se não há anulação subjetiva, mas uma contradição no interior do sujeito, nem tudo está perdido.

SERPA (1999) adverte para os riscos de tomar a interpretação de Foucault como possuída de “um caráter acusatório, culpabilizante, da ação da psiquiatria como um esmagamento da loucura em suas expressões mais livres”. Para o autor, a psiquiatria que toma a loucura como “objeto de um saber e de uma intervenção prática, é apenas uma das experiências possíveis da loucura, tornada hegemônica a partir de um determinado momento”.

Ora, o que autoriza o saber sobre o individual, sobre o singular, que tem por objeto o sujeito, segundo SERPA (1999) é a Clínica, de acordo com o próprio Foucault. E é essa que em Swain (apud SERPA, 1999) ganha nuances éticos importantes, ao propor que “a invenção da psiquiatria se dá pela admissão de um sujeito da loucura, condição de possibilidade do trabalho terapêutico”. Está colocada em questão a relação do psiquiatra e do louco, não para reduzi-la a uma relação de dominação, mas como ponto de partida de um trabalho terapêutico.

O que a reforma psiquiátrica brasileira questiona hoje é o papel do manicômio no alargamento das possibilidades de novas práticas, a expansão da autonomia dos “doentes” e a travessia para o exercício da sua cidadania. Como superar o manicômio e o estatuto hospitalar da loucura, diante das transformações e mudanças ocorridas no Estado a partir do século XX, quando a própria psiquiatria se encontra em processo de transição a respeito de suas atribuições? Em que medida as carências simbólicas do Estado podem comprometer o projeto de emancipação da loucura?

O fato é que, em trinta anos de reforma psiquiátrica, os loucos passaram a demandar direitos de cidadania, entre eles projetos de geração de renda que se servisse de estratégias até então não praticadas.

Valho-me da minha experiência na articulação cultural e política das práticas de reabilitação psicossocial no campo da saúde mental na cidade de Manaus, num tempo em que a prática antecedeu o suporte teórico, para situar, no tempo-espaço, um projeto interrompido ao fim de dez anos por força de um movimento corporativista, descomprometido com as reivindicações do movimento antimanicomial.


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* Este artigo foi elaborado a partir da disciplina “Trabalho e meio ambiente na Amazônia”, ministrada pela Profa. Dra. Iraildes Caldas Torres, do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Sociedade e Cultura da Universidade Federal do Amazonas (2007-2009)

** Médico especialista em Saúde Mental. Mestrando do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Sociedade e Cultura da Universidade Federal do Amazonas (2007-2009). E-mail: rogeliocasado@uol.com.br


Um comentário:

Anônimo disse...

Muito importante esse blog!
Gostaria de divulgar um serviço em saúde mental para os egressos dos hospitais de custódia de São Paulo, eu fiquei sabendo e vejo que muita gente não conhece, fica na Rua Francisca Miquelina, 232, no centro de São paulo, lá eles encaminham para trabalho, cursos e serviços de saúde mental. o tel de lá é 31071025. Acho importante conhecermos esses serviços.