setembro 13, 2010

A crise dos vínculos de confiança (III)


A crise dos vínculos de confiança (III)

         Nos artigos anteriores, partimos da afirmação do psicanalista Joel Birman, em “Arquivos do mal estar e da resistência”, para quem se somos servos e assujeitados, o somos por deliberação própria. Neste, abordaremos a questão da disciplina e da servidão no regime democrático.

         O autor constata que ao olharmos para o século XIX, nos damos conta de que as coisas não funcionavam de modo linear na construção da democracia, e nos convida a examinar criticamente os projetos utópicos dos filósofos e a assunção das liberdades pelos cidadãos no espaço social. Decididamente, eles se davam de maneira desigual. 

         De acordo com Birman, é forçoso reconhecer que a servidão voluntária continuou seu galope triunfante sobre o mundo. Além de ocupar novos territórios reais e imaginários, conquistaria os corações e mentes da multidão. A expressão de La Boétie – servidão voluntária – voltaria a inscrever-se no mundo de forma mordaz, desafiando a temporalidade e a história.

         Contudo, diz ele, não se trata, aqui, de atribuir aos totalitarismos que marcaram o século XX, como o nazismo, o fascismo, o stalinismo, o determinante na produção da servidão voluntária. O intrigante é que ela continuava incólume no interior da própria democracia. E esta vem funcionando permeada pelas novas formas de servidão, sobretudo pela exclusão de vários grupos e segmentos sociais. Basta olhar o mundo ao redor.

         Nos anos 1970, Gilles Deleuze retomou as indagações do “Tratado Teológico Político”, de Espinosa, sobre a seguinte questão: “Por que o povo é tão profundamente irracional? Por que ele se honra da sua própria escravidão?” Se o Mundo é produzido por nós, que elementos contribuem para fazer da posição subalterna o estatuto da relação entre opressores e oprimidos? 

         Por ora, fiquemos com Foucault. É ele quem descreve esse período recente da “democracia” ocidental com o conceito de sociedade disciplinar. Sua descrição da constituição da sociedade democrática na segunda modernidade é exemplar. Para ele, em oposição à sociedade soberana, os jogos de poder passaram a se realizar sobre os corpos, tornando-os dóceis e obedientes, assujeitados no confronto das forças. Por isso, segundo Joel Birman, não surpreende que a servidão volte a se produzir em todas as dimensões, nos eixos voluntário e involuntário.

         Mas, há ainda algo sobre o qual vale a pena se deter. Foucault, em seus estudos, adverte que, no contexto das relações de servidão, a discursividade é fundamental para a implementação dos jogos de poder. Ou seja, na democracia a retórica da persuasão é crucial, pois, conforme Joel Birman, a individualidade dos agentes sociais é considerada um valor.

         O autor dos “Arquivos do mal estar e da resistência”, nos adverte sobre a importância de reconhecer que a discursividade se funda num saber que sustenta aquela com critério de verdade. Daí porque o exercício do poder implica o saber. São as ciências humanas que irão legitimar as práticas de poder.
         O problema é que temos o péssimo hábito de confundir os saberes com as verdades. Os discursos jurídicos e religiosos estão cheios delas. Ora, teorias, idéias, religiões são produções possíveis entre outras, no campo do Ser.

         Mas essa é outra história. Por ora, importa reconhecer que esses saberes como discursividade e jogos de fala, pela mediação da vontade dos homens, irão articular-se com as estratégias de poder. A partir deles serão tecidas novas modalidades de servidão.

Manaus, Agosto de 2010.

Rogelio Casado, especialista em Saúde Mental

Nota do blog: Artigo publicado no jornal Amazonas em Tempo, caderno Saúde & Bem Estar.

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