dezembro 20, 2010

Em homenagem aos 94 anos do poeta que acredita que "cu de formiguinha é mais importante que usina nuclear"

PICICA: "Aliás, o cu de uma formiga é também muito mais importante do que uma Usina Nuclear." (Manoel de Barros)
Manoel de Barros - imagem postada em singularplural.com.br

Artigos

Manoel de Barros e o fantasiar

José Antonio Gatti
Corpo Freudiano Escola de Psicanálise –
Seção Rio de Janeiro


Resumo

Sendo o recalque a pedra angular da psicanálise, podemos apontar as pedras de Manoel de Barros como um ótimo exemplo de sublimação. Esse trabalho é uma aproximação entre a psicanálise e a literatura, através da fantasia, um tema nuclear na obra de Freud e Lacan, e da sublimação, esse enigmático e inacabado conceito do criador da psicanálise.

Palavras-chave: Fantasia; Pedra; Arte; Psicanálise; Sublimação

Abstract

Being the repression the cornerstone of the psychoanalysis, we can point the stones of Manoel de Barros as a great example of sublimation. This work is an approach between the psychoanalysis and the literature, through the fantasy, the kernel of the work of Freud and Lacan, and the sublimation, this enigmatic and unfinished concept of the father of the psychoanalysis.

Palabras clave:
Fantasy; Stone; Art; Psychoanalysis; Sublimationime.

No texto de 1907, Escritores Criativos e Devaneios, Freud enaltece a genial capacidade dos escritores criativos e compara lindamente a atividade desses escritores com o brincar das crianças, criando assim, escritores e crianças, um mundo de fantasia que é levado muito a sério.

A fantasia é um conceito nuclear na obra de Freud e Lacan. No momento desse texto, o criador da psicanálise estava debruçado sobre a fantasia e a sua estreita relação com a neurose. Freud nos diz que a criança deixa de brincar quando cresce e passa então a fantasiar, e acrescenta que o brincar infantil difere do fantasiar pelo fato de a criança distingui-lo perfeitamente da realidade. Já o adulto sente-se envergonhado de falar sobre as suas fantasias por serem infantis e proibidas. É na sua clínica que Freud escuta a fantasia singular de cada um de seus pacientes e descobre que ela é a tentativa de dar sentido ao enigma da sexualidade. A sexualidade é sempre traumática, ou seja, está na ordem do real. Com Lacan e Marco Antonio Coutinho Jorge, podemos dizer que a fantasia é a tentativa de articulação entre o inconsciente e a pulsão, entre o simbólico e o real, ou, dito de outro modo, o simbólico é a tentativa de preencher a falta real no imaginário do sujeito falante. Isso é a produção da fantasia.


Voltando ao texto de 1907, o prazer que a criação literária proporciona aos leitores seria um certo retorno às origens de cada um, esse jogo de fantasia na pena de um poeta ou escritor funcionaria como um catalisador, assim como o analista.


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Manoel de Barros, um dos nossos maiores poetas contemporâneos, nascido em 1916, em Cuiabá, no estado de Mato Grosso, sabe como poucos fazer esse congraçamento, esse arrebatamento da linguagem, essa espécie de fantasiar primevo, mas nada mais justo do que deixar que ele mesmo se apresente:


Venho de um Cuiabá garimpo e de ruelas entortadas.
Meu pai teve uma venda de bananas no Beco da Marinha, onde nasci.
Me criei no Pantanal de Corumbá, entre bichos do chão, pessoas humildes, aves, árvores e rios.
Aprecio viver em lugares decadentes por gosto de estar entre pedras e lagartos.
Fazer o desprezível ser prezado é coisa que me apraz.
Já publiquei 10 livros de poesia; ao publicá-los me sinto como que desonrado
e fujo para o Pantanal onde sou abençoado a garças.
Me procurei a vida inteira e não me achei – pelo que fui salvo.
Descobri que todos os caminhos levam à ignorância.
Não fui para a sarjeta porque herdei uma fazenda de gado. Os bois me recriam.
Agora eu sou tão ocaso!
Estou na categoria de sofrer do moral, porque só faço coisas inúteis.
No meu morrer tem uma dor de árvore.

Lacan afirmava que a poesia diz o essencial, ou seja, tem mais significação com menos elementos. Acredito que isso seja uma excelente tradução para a ética do bem dizer. Manoel de Barros, esse incrível Alquimista do Verbo, possui um afinado talento de engrandecer as palavras, de dar a elas uma dimensão muito maior do que elas realmente têm.

Carrego meus primórdios num andor.
Minha voz tem um vício de fontes.
Eu queria avançar para o começo.
Chegar ao criançamento das palavras.
Lá onde elas ainda urinam na perna.
Antes mesmo que sejam modeladas pelas mãos.

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Quando a criança garatuja o verbo para falar o que não tem.
Pegar no estame do som.
Ser a voz de um lagarto escurecido.
Abrir um descortínio para o arcano.

Freud, em A Questão da Análise Leiga de 1926, ressalta que a literatura devia fazer parte da formação de um analista. Pegando carona com Manoel de Barros, posso indagar: será que a função da análise é "chegar ao criançamento das palavras"?

Em As Pulsões e suas Vicissitudes de 1915,Freud enumera os quatro destinos pulsionais, desenvolve bem os dois primeiros (reversão a seu oposto e retorno em direção ao próprio eu do indivíduo), deixa o recalque para ser melhor explanado no texto imediatamente posterior (O Recalque, 1915) e cita a sublimação, esse inacabado e enigmático conceito de sua obra. Se o recalque é a pedra angular da psicanálise, podemos apontar as pedras de Manoel de Barros como um bom exemplo de sublimação:


Nasci para administrar o à-toa
o em vão
o inútil.
Pertenço de fazer imagens.
Opero por semelhanças.
Retiro semelhanças de pessoas com árvores
de pessoas com rãs
de pessoas com pedras
etc etc.
Retiro semelhanças de árvores comigo.
Não tenho habilidade pra clarezas.
Preciso de obter sabedoria vegetal.
(Sabedoria vegetal é receber com naturalidade uma rã no talo.)
E quando esteja apropriado para pedra, terei também sabedoria mineral.

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Em O Mal-estar na Civilização de 1930, Freud cita a atividade artística, junto com a religião e a ciência como sendo os três termos da sublimação. Jacques Lacan desenvolve mais o conceito de sublimação, sobretudo no seminário 7, A Ética da Psicanálise, quando, voltando ao texto acima citado, faz uma diferença entre esses três termos: para ele, a religião seria um modo de elidir o real; a ciência tenta rejeitar a todo custo a presença do real, na crença do ideal do saber total, na vã tentativa de se apoderar do imponderável; a arte, ao contrário, põe o real em cena, é um modo de organização em torno do vazio. Manoel de Barros nesses três próximos poemas nos mostra divinamente essa diferença:

A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá
Mas não pode medir seus encantos.
A ciência não pode calcular quantos cavalos de força existem
nos encantos de um sabiá.
Quem acumula muita informação perde o condão de adivinhar: divinare
Os sabiás divinam.

Mosca dependurada na beira de um ralo-
Acho mais importante do que uma jóia pendente.
Os pequenos invólucros para múmias de passarinhos
que os antigos egípcios faziam
Acho mais importante do que o sarcófago de Tutancâmon.
O homem que deixou a vida por se sentir um esgoto-
Acho mais importante do que uma Usina Nuclear.
Aliás, o cu de uma formiga é também muito mais importante
do que uma Usina Nuclear.
As coisas que não têm dimensões são muito importantes.
Assim, o pássaro tu-you-you é mais importante por seus pronomes
do que por seu tamanho de crescer.
É no ínfimo que eu vejo a exuberância

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Prefiro as máquinas que servem para não funcionar:
quando cheias de areia de formiga e musgo- elas podem
um dia milagrar de flores.
(Os objetos sem função têm muito apego pelo abandono)
Também as latrinas desprezadas que servem para ter
grilos dentro – elas podem um dia milagrar violetas.
(Eu sou beato em violetas)
Todas as coisas apropriadas ao abandono me religam a Deus.
Senhor, eu tenho orgulho do imprestável!
(O abandono me protege.)
E se, em toda a forma de sublimação o vazio será determinante, voltemos ao nosso poeta:
Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.
Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do ocaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu destino.
Essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas.

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Nós aprendemos psicanálise com Lacan e Freud, Sófocles, Shakespeare, Goethe, Dostoievski, entre outros. Nós aprendemos psicanálise com Manoel de Barros. Muito provavelmente ele não sabe disso, talvez não queira nem saber. Porque Manoel de Barros não sabe o que diz, mas diz sempre antes da gente:

Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.

Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria.

Melhor jeito que achei para me conhecer foi fazendo o contrário.

Sou muito preparado de conflitos.

Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada
do ser que a revelou.

Para ter mais certezas tenho que me saber de imperfeições.

As palavras me escondem sem cuidado.

Aonde eu não estou as palavras me acham.

Tem mais presença em mim o que falta.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BARROS, Manoel de. O Livro Sobre NadaRio de Janeiro: Record, 1997.
FREUD, Sigmund. A Gradiva de Jensen e outros trabalhos – Volume XI Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969.
______. A História do Movimento Psicanalítico. Artigos Sobre Metapsicologia e Outros Trabalhos – Volume XIV Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969.
______. Um Estudo Auto-Biográfico, Inibições, Sintomas e Angústia. A Questão da Análise Leiga e Outros Trabalhos– Volume XX Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969.
______. O Futuro de uma Ilusão. O Mal-Estar na Civilização e outros trabalhos - Volume XXI Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969.
JORGE, Marco Antonio Coutinho. Fundamentos da Psicanálise – De Freud a Lacan Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro, 2002
LACAN, Jacques. Seminário 7 – A Ética da PsicanáliseRio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
RIVERA, Tania. Arte e Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.
José Antonio Gatti
zsgatti@terra.com.br

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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
www.omarrare.uerj.br/numero7/jose_antonio.htm

Número 7 (2006) - ISSN 1981-870X

Fonte: O Marrare

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