Ensaio: Fazer crítica
Durante algum tempo viveu-se um mal estar entre público e crítica, que hoje parece estar se dissipando à medida que ambos aparentam encontrar seus lugares no mundo. Com a democracia da internet, o público pôde encontrar suas fontes de informações e de opiniões. O crítico vem livrando-se do academicismo (processo ainda em desenvolvimento), deixando de fazer crítica para grupos específicos que somente servem para estes mesmos grupos, escapando ao conceito inicial da crítica, mas segue mantendo a problematização das coisas e a consistência na análise. O embate passa a ser agora com a própria obra cinematográfica: ver, ouvir, sentir, tocar, para então opinar e refletir. Ainda vale ressaltar que há uma grande diferença entre comentarista de cinema e crítico. Não há mal nenhum em ser um desses, apenas deve-se saber separá-los, colocar cada função em seu devido lugar, nunca desvalorizando “esse” em virtude “daquele”. E para tentar separá-los é preciso conhecer “os públicos”. O comentarista tem um público, o crítico, outro. Uma vez que todos sabem para onde olhar, a tendência é que as coisas se tornem mais claras. E nesses tempos onde as mudanças são bruscas e constantes, de crises mundiais e tensões entre grandes potências, é necessário clarear um pouco a visão turva que se tem a respeito da função da arte e da cultura – e da arte na cultura – no processo de desenvolvimento do mundo e das pessoas.
A escrita demanda paciência, persistência e determinação. Não é fácil transmitir ideias sucintas através das palavras. A percepção do crítico não pode ser burocrática nem minimalista, atenta demais a um quesito em detrimento de outro; a crítica precisa ser equilibrada, olhar para um lado e depois para o outro, experimentar o filme e experimentar um diálogo possível com ele – relação de extrema importância em crítica, não só de cinema. Toda obra tem sua abertura e, após encontrá-la, basta saber conversar com ela. Mas todo o cuidado é sempre pouco – mesmo delicadas, palavras mordem. Quem escreve deve ser libertino, devasso, provocador, questionador e, se for necessário, polêmico. Deve apoiar-se firmemente na obra a ser analisada, confrontar as possibilidades do enunciado, encarar o texto e o subtexto, ir fundo naquilo que se analisa, fugir da superfície, livrar-se do mal estar, olhar para dentro da obra e deixar-se olhar – é importante notar que os filmes são feitos para construir esse diálogo, essa relação que, grosso modo, é o que encanta no cinema. E é por isso que crítica de cinema é difícil (delicada). Deve-se analisar a obra, o autor e a ideia. Na ausência de qualquer um destes quesitos, então não é crítica.
A crítica não precisa responder todas as questões, mas deve verificar as possibilidades de análise de cada detalhe da obra, nunca caindo na armadilha dos destaques (“destaque vai para a fotografia magnífica do Judas”), do texto empolado cheio de adjetivos tetudos e gotejantes (maravilhoso, espetacular, fantástico, magnífico etc) que, assim como a crítica acadêmica, só serve para inflar egos e retumbar letristas mortos. Os extremos se anulam. Isso só corrobora para a credibilidade do texto sabotar a si próprio. Scorsese disse que opiniões não ficam, o que ficam são reflexões, e existem poucas em curso. A obrigação de engordar essa conta é de todos os aventureiros que se permitirem analisar qualquer obra de arte. Articular as ideias de maneira a dar vida ao conteúdo da obra através das palavras, seja pela metalinguagem, pela cinefilosofia ou pelo discorrer interpretativo e opinativo.
A necessidade de um argumento que se sustente, mas que ao mesmo tempo exponha um olhar pessoal sobre a obra é uma virtude que vem com o tempo, com a experimentação (para com a própria linguagem, mas, sobretudo, consigo mesmo) – até com a necessidade: cada obra tem também seu próprio limite e saber reconhecê-lo é importante. Para isso, o crítico deve estar ciente de onde quer chegar, para onde aponta seu olhar, para aí sim “encontrar” o filme. O que brota em palavras é o reflexo do próprio crítico, e é preciso ser muito hábil com elas. Toda crítica bem escrita revela um pouco de seu autor – bem como todo filme carrega algo de seu realizador (é uma relação autor-obra e obra-autor). Isso é um fator crucial no exercício crítico: colocar-se de pé frente à obra que se analisa, observá-la, para então exprimir sua visão de mundo a partir da ideia apresentada. Crítica poluída por adjetivos de exaltação à obra sem fundamento algum é um vírus, uma espécie de infecção que tende a embrulhar as ideais de quem lê, avacalhando com a honestidade do texto. Geralmente essas críticas olham tão somente para o filme, esquecendo-se da ideia – que é o objetivo ao qual se almeja chegar. Olhar para uma obra assim é desrespeitar o leitor, mas não só: o desrespeito é com a própria obra e consigo mesmo. Entra em questão o “pensar e produzir novas formas de vida”, que, de acordo com Deleuze, é o caminho possível e necessário para fugirmos da inanição. O bom crítico aprendeu a interiorizar a obra para então compreendê-la. Expandir o universo da crítica ao propenso e humanizado universo da reflexão é uma necessidade vigente para a disseminação do debate cultural entre “os públicos”. Debate que deve ser extremamente virtuoso e aguerrido, colocando as pessoas e as obras em franco confronto, provocando, assim (e somente assim), a evolução de ideias e pensamentos a respeito de coisas que estão além da arte, como o mundo e até mesmo a vida. Para alcançar o debate é preciso encontrar os filmes e as propostas, as pessoas e seus olhares críticos. Isso é difícil e demanda esforço, mas parece o único caminho possível.
Claro que esse debate não vai ser cerceado enquanto não houver filmes que se posicionem contra algo, fugindo da primariedade de “entreter”. Entretenimento por entretenimento é o sustento do canibalismo (você pode entender capitalismo reinante na indústria, aqui, dá no mesmo) que vem devorando o cinema. Entretenimento deve ser o resultado de uma experiência enriquecedora em todos os sentidos, seja intelectual ou de linguagem. O desejo pelo prazer instantâneo é problemático e empobrece. Mas é remediável, basta uma mudança drástica na visão de quem faz, de quem critica e de quem lê. Caso contrário o efeito é bastante conhecido, a lógica do desastre vigora bravamente, e com precisão lancinante: maus filmes não geram bons espectadores, que consequentemente não refletem, tampouco formam opiniões. O público de hoje vê só a superfície por que é só isso que lhe é mostrado. Aí o feroz e sagaz ciclo vicioso reina absoluto, tornando qualquer tipo de passo a frente imóvel, inapto. O crítico, resenhista e o cinéfilo precisam livrar-se de seus vícios.
O crescimento exponencial dos blogs anunciou novos rumos já há um bom tempo. Até mesmo críticos já estabelecidos migraram para aquela que é hoje a maior rede de compartilhamento de conhecimento. Claro que, com essa proliferação, surgem opiniões mais e menos relevantes. Por relevantes, entendemos serem aquelas que geram o debate, que são capazes de transcender a própria resenha, passando a uma esfera muito mais ampla, dando abertura à discussão e a troca de ideias e ideais e pensamentos. Muitos desses blogs falham nesse sentido, não conseguindo muito bem sequer articular suas propostas, retendo-se a questões de técnica. A técnica não é coisa mais importante a ser analisada num filme – até porque não somos nós que iremos ensinar um Tarantino ou um Kiarostami a “enquadrar” ou como escolher o filtro certo. Essa é uma vistoria de segunda ordem, imediatamente posta num segundo plano, mas sempre relacionando a imagem ao conteúdo (imagem-conteúdo). A consequência lógica disso tudo é a carência de debates conscientes, que produzam material reflexivo atento não só aos filmes, mas a seus conteúdos e conceitos. E existem de fato tantos blogs, tantas vozes desejando serem ouvidas, tantas letras querendo ser lidas, que não é demasiado pretencioso imaginar que esses blogs sejam responsáveis pela geração de novos cinéfilos que, hoje mais do que nunca, são fontes de leitura e referência para o grande público. Talvez resida aí o cerne do problema, voltando a questão do “encontrar seu lugar no mundo”. Talvez os blogs ainda não (re)conheçam sua importância para a cinefilia do porvir. É preciso localizá-la em meio aos escombros, em meio à poeira. Os “ciné-fils”, ou “filhos do cinema”, como cunhou Serge Daney, são então os anjos da salvação.
Para fortalecer e tonificar qualquer argumento, é necessário o embasamento teórico: apurar questões pendentes, dissecá-las até não restarem mais pontos a serem introduzidos em nossa base de conhecimento. Daí a importância de ver filmes, de exercer a cinefilia - outrora tão dançante e excitante com a proliferação dos cineclubes (herança de Henri Langlois) – de conhecer vários cinemas, de festejar a diversidade de propostas e reconhecê-las quando da análise. Entrando numa esfera ainda mais abrangente, chega-se ao ensaio, seja ele formal ou discursivo, que é uma análise literária da obra atenta a reflexão de causa e consequência, uma relação de casamento com sentidos inquebráveis proporcionados pela experimentação. Não que todo texto precise evocar Francis Bacon, mas como queria Deleuze, pensar o cinema de maneira eloquente, como faz Godard e como fez Bresson (ensaístas por excelência), através dele próprio.
A escrita demanda paciência, persistência e determinação. Não é fácil transmitir ideias sucintas através das palavras. A percepção do crítico não pode ser burocrática nem minimalista, atenta demais a um quesito em detrimento de outro; a crítica precisa ser equilibrada, olhar para um lado e depois para o outro, experimentar o filme e experimentar um diálogo possível com ele – relação de extrema importância em crítica, não só de cinema. Toda obra tem sua abertura e, após encontrá-la, basta saber conversar com ela. Mas todo o cuidado é sempre pouco – mesmo delicadas, palavras mordem. Quem escreve deve ser libertino, devasso, provocador, questionador e, se for necessário, polêmico. Deve apoiar-se firmemente na obra a ser analisada, confrontar as possibilidades do enunciado, encarar o texto e o subtexto, ir fundo naquilo que se analisa, fugir da superfície, livrar-se do mal estar, olhar para dentro da obra e deixar-se olhar – é importante notar que os filmes são feitos para construir esse diálogo, essa relação que, grosso modo, é o que encanta no cinema. E é por isso que crítica de cinema é difícil (delicada). Deve-se analisar a obra, o autor e a ideia. Na ausência de qualquer um destes quesitos, então não é crítica.
A crítica não precisa responder todas as questões, mas deve verificar as possibilidades de análise de cada detalhe da obra, nunca caindo na armadilha dos destaques (“destaque vai para a fotografia magnífica do Judas”), do texto empolado cheio de adjetivos tetudos e gotejantes (maravilhoso, espetacular, fantástico, magnífico etc) que, assim como a crítica acadêmica, só serve para inflar egos e retumbar letristas mortos. Os extremos se anulam. Isso só corrobora para a credibilidade do texto sabotar a si próprio. Scorsese disse que opiniões não ficam, o que ficam são reflexões, e existem poucas em curso. A obrigação de engordar essa conta é de todos os aventureiros que se permitirem analisar qualquer obra de arte. Articular as ideias de maneira a dar vida ao conteúdo da obra através das palavras, seja pela metalinguagem, pela cinefilosofia ou pelo discorrer interpretativo e opinativo.
A necessidade de um argumento que se sustente, mas que ao mesmo tempo exponha um olhar pessoal sobre a obra é uma virtude que vem com o tempo, com a experimentação (para com a própria linguagem, mas, sobretudo, consigo mesmo) – até com a necessidade: cada obra tem também seu próprio limite e saber reconhecê-lo é importante. Para isso, o crítico deve estar ciente de onde quer chegar, para onde aponta seu olhar, para aí sim “encontrar” o filme. O que brota em palavras é o reflexo do próprio crítico, e é preciso ser muito hábil com elas. Toda crítica bem escrita revela um pouco de seu autor – bem como todo filme carrega algo de seu realizador (é uma relação autor-obra e obra-autor). Isso é um fator crucial no exercício crítico: colocar-se de pé frente à obra que se analisa, observá-la, para então exprimir sua visão de mundo a partir da ideia apresentada. Crítica poluída por adjetivos de exaltação à obra sem fundamento algum é um vírus, uma espécie de infecção que tende a embrulhar as ideais de quem lê, avacalhando com a honestidade do texto. Geralmente essas críticas olham tão somente para o filme, esquecendo-se da ideia – que é o objetivo ao qual se almeja chegar. Olhar para uma obra assim é desrespeitar o leitor, mas não só: o desrespeito é com a própria obra e consigo mesmo. Entra em questão o “pensar e produzir novas formas de vida”, que, de acordo com Deleuze, é o caminho possível e necessário para fugirmos da inanição. O bom crítico aprendeu a interiorizar a obra para então compreendê-la. Expandir o universo da crítica ao propenso e humanizado universo da reflexão é uma necessidade vigente para a disseminação do debate cultural entre “os públicos”. Debate que deve ser extremamente virtuoso e aguerrido, colocando as pessoas e as obras em franco confronto, provocando, assim (e somente assim), a evolução de ideias e pensamentos a respeito de coisas que estão além da arte, como o mundo e até mesmo a vida. Para alcançar o debate é preciso encontrar os filmes e as propostas, as pessoas e seus olhares críticos. Isso é difícil e demanda esforço, mas parece o único caminho possível.
Claro que esse debate não vai ser cerceado enquanto não houver filmes que se posicionem contra algo, fugindo da primariedade de “entreter”. Entretenimento por entretenimento é o sustento do canibalismo (você pode entender capitalismo reinante na indústria, aqui, dá no mesmo) que vem devorando o cinema. Entretenimento deve ser o resultado de uma experiência enriquecedora em todos os sentidos, seja intelectual ou de linguagem. O desejo pelo prazer instantâneo é problemático e empobrece. Mas é remediável, basta uma mudança drástica na visão de quem faz, de quem critica e de quem lê. Caso contrário o efeito é bastante conhecido, a lógica do desastre vigora bravamente, e com precisão lancinante: maus filmes não geram bons espectadores, que consequentemente não refletem, tampouco formam opiniões. O público de hoje vê só a superfície por que é só isso que lhe é mostrado. Aí o feroz e sagaz ciclo vicioso reina absoluto, tornando qualquer tipo de passo a frente imóvel, inapto. O crítico, resenhista e o cinéfilo precisam livrar-se de seus vícios.
O crescimento exponencial dos blogs anunciou novos rumos já há um bom tempo. Até mesmo críticos já estabelecidos migraram para aquela que é hoje a maior rede de compartilhamento de conhecimento. Claro que, com essa proliferação, surgem opiniões mais e menos relevantes. Por relevantes, entendemos serem aquelas que geram o debate, que são capazes de transcender a própria resenha, passando a uma esfera muito mais ampla, dando abertura à discussão e a troca de ideias e ideais e pensamentos. Muitos desses blogs falham nesse sentido, não conseguindo muito bem sequer articular suas propostas, retendo-se a questões de técnica. A técnica não é coisa mais importante a ser analisada num filme – até porque não somos nós que iremos ensinar um Tarantino ou um Kiarostami a “enquadrar” ou como escolher o filtro certo. Essa é uma vistoria de segunda ordem, imediatamente posta num segundo plano, mas sempre relacionando a imagem ao conteúdo (imagem-conteúdo). A consequência lógica disso tudo é a carência de debates conscientes, que produzam material reflexivo atento não só aos filmes, mas a seus conteúdos e conceitos. E existem de fato tantos blogs, tantas vozes desejando serem ouvidas, tantas letras querendo ser lidas, que não é demasiado pretencioso imaginar que esses blogs sejam responsáveis pela geração de novos cinéfilos que, hoje mais do que nunca, são fontes de leitura e referência para o grande público. Talvez resida aí o cerne do problema, voltando a questão do “encontrar seu lugar no mundo”. Talvez os blogs ainda não (re)conheçam sua importância para a cinefilia do porvir. É preciso localizá-la em meio aos escombros, em meio à poeira. Os “ciné-fils”, ou “filhos do cinema”, como cunhou Serge Daney, são então os anjos da salvação.
Para fortalecer e tonificar qualquer argumento, é necessário o embasamento teórico: apurar questões pendentes, dissecá-las até não restarem mais pontos a serem introduzidos em nossa base de conhecimento. Daí a importância de ver filmes, de exercer a cinefilia - outrora tão dançante e excitante com a proliferação dos cineclubes (herança de Henri Langlois) – de conhecer vários cinemas, de festejar a diversidade de propostas e reconhecê-las quando da análise. Entrando numa esfera ainda mais abrangente, chega-se ao ensaio, seja ele formal ou discursivo, que é uma análise literária da obra atenta a reflexão de causa e consequência, uma relação de casamento com sentidos inquebráveis proporcionados pela experimentação. Não que todo texto precise evocar Francis Bacon, mas como queria Deleuze, pensar o cinema de maneira eloquente, como faz Godard e como fez Bresson (ensaístas por excelência), através dele próprio.
Para leitura e acompanhamento (links ao lado):
Cahiers du Cinéma (em francês)
Film Comment (em inglês)
Sense of Cinema (em inglês)
Contracampo
Cinética
Filmes Polvo
Cinequanon
Zingu
Filmologia
Filme Cultura
Revista de Cinema
Textos recomendados acerca da crítica:
Forma e conteúdo. (Esquemas): http://quadradodosloucos.blogspot.com/2010/07/forma-e-conteudo-esquemas.html por Bruno Cava
Os blogs estão matando a crítica de cinema: http://sombras-eletricas.blogspot.com/2010/08/os-blogs-fazem-mal-critica-de-cinema.html por André Renato
O cinema de autor: o papel do crítico de cinema na concepção dos diferentes olhares: http://websmed.portoalegre.rs.gov.br/escolas/revistavirtualagora/materiais/O_Cinema_de_Autor_Fernando.pdf por Fernando Telles de Paula
The Critical Function: http://home.earthlink.net/~steevee/function.html por Serge Daney
Fonte: TUDO [é] Crítica
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