PICICA: "Em contraponto aos teóricos da repressão como Reich e Marcuse, Michel
Foucault defende que os discursos a respeito do sexo foram incitados e
estimulados progressivamente, constituindo o que mais tarde (a partir do
final do século XVIII) configuraria um fenômeno que o francês chama de
“explosão discursiva”. Entretanto, a importância da incitação dos
discursos não reside no mero aumento quantitativo, mas nos meios pelos
quais se fala de sexo (as formas de imposição do discurso), bem como no
conteúdo desses dizeres. Em suma, a partir do pensamento foucaultiano
nos direcionaremos à posição que a proliferação discursiva toma em meio
à sistemática das instituições, e não à simples abordagem superficial
do crescimento dos discursos. Nesta análise, remontaremos o contexto do
dispositivo da aliança, onde o casamento era o principal foco dos
regimentos sexuais, e o surgimento do dispositivo da sexualidade em meio
a essa conjectura, concentrado, principalmente, nas sexualidades
desviantes, classificadas e vistas como desvios patológicos da conduta
sexual recomendável. O dispositivo da sexualidade, desse modo, foi
extremamente favorecido pela chamada proliferação discursiva, visto que é
por meio desta que se observa uma implantação de perversões cada vez
mais variadas, especificadas e plurais, destinadas a qualificar e a
apontar comportamentos indesejáveis."
A Implantação das Perversões Sexuais
In blog on fevereiro 28, 2011
Em contraponto aos teóricos da
repressão como Reich e Marcuse, Michel Foucault defende que os discursos
a respeito do sexo foram incitados e estimulados progressivamente,
constituindo o que mais tarde (a partir do final do século XVIII)
configuraria um fenômeno que o francês chama de “explosão discursiva”.
Entretanto, a importância da incitação dos discursos não reside no mero
aumento quantitativo, mas nos meios pelos quais se fala de sexo (as
formas de imposição do discurso), bem como no conteúdo desses dizeres.
Em suma, a partir do pensamento foucaultiano nos direcionaremos à
posição que a proliferação discursiva toma em meio à sistemática das
instituições, e não à simples abordagem superficial do crescimento dos
discursos. Nesta análise, remontaremos o contexto do dispositivo da
aliança, onde o casamento era o principal foco dos regimentos sexuais, e
o surgimento do dispositivo da sexualidade em meio a essa conjectura,
concentrado, principalmente, nas sexualidades desviantes, classificadas e
vistas como desvios patológicos da conduta sexual recomendável. O
dispositivo da sexualidade, desse modo, foi extremamente favorecido pela
chamada proliferação discursiva, visto que é por meio desta que se
observa uma implantação de perversões cada vez mais variadas,
especificadas e plurais, destinadas a qualificar e a apontar
comportamentos indesejáveis.
De fato, a partir do século XIX, houve
uma multiplicação das sexualidades e suas variáveis, uma implantação
múltipla das heterogeneidades sexuais através da propagação dos
discursos. Um cenário bem distinto daquele antecedente, onde apenas três
grandes códigos explícitos concentravam as diretrizes sexuais: o
direito canônico, a pastoral cristã e a lei civil. Tais normalizações se
ocupavam, principalmente, da estipulação do lícito e do ilícito, do
permitido e do proibido. Por sua vez, esta fixação, é necessário dizer,
tinha uma área de atuação bem definida: a relação matrimonial. Definia,
dessa maneira, o dever conjugal, seu cumprimento e a capacidade de
desempenhá-lo, bem como sua fecundidade e periodicidade. O casamento
tomava para si todas as atenções das normas a respeito do prazer, sendo o
sexo do casal excessivamente regrado por essas constrições. Outras
questões, como a sodomia ou a sexualidade das crianças, eram vistas com
incerteza e certa negligência.
Outra característica peculiar a esses
códigos está na falta de distinção nítida entre as infrações às regras
da aliança. Eram igualmente condenados o desrespeito às leis do
casamento e a prática de sexualidades estranhas. Assim, o adultério e a
sodomia eram consideradas subversões, antes de qualquer coisa, ilegais, e
tratadas dentro do campo das ilegalidades. Algo que Foucault chamou de
“ilegalismo global”, sem diferenciação das condutas sexuais condenáveis,
sendo todas punidas como subversões contrárias à lei. Em outras
palavras, embora o considerado “contra-natureza” fosse marcado por uma
abominação particular, constituía apenas uma forma extremada do
“contra-a-lei”, não trazendo os agentes de tais condutas nenhuma
característica essencialista ou patológica fundamentadora. O sodomita,
por exemplo, era, antes de mais nada, um infrator, assim como o adúltero
ou qualquer outra figura que viesse a cometer uma prática contra legem.
As proibições relativas ao sexo, desse
modo, portavam uma natureza jurídica, isto é, configuravam-se como
interdições legais. Essa característica mostra-se evidente ao se estudar
que, por exemplo, durante muito tempo os hermafroditas foram
considerados criminosos, ou filhos do crime. Sua disposição anatômica e
sua própria existência, embaraçavam a lei que distinguia os sexos e
prescrevia sua conjunção.
A explosão discursiva iniciada no final
do século XVIII, e desenvolvida, principalmente, durante o século XIX,
provocou duas modificações no cenário que havia se estabelecido durante o
dispositivo da aliança. A primeira delas diz respeito a um movimento
“centrífugo” em direção à monogamia heterossexual. Com isso, embora as
relações heteromonogânicas tenham continuado como paradigma, fala-se
delas cada vez menos, e com crescente sobriedade. Elas não são
interpeladas ou acuadas para que mostrem seus segredos e
particularidades, pois o casal legítimo tem direito à discrição. A
aliança heterossexual “normal” está inserida em um contexto mais
rigoroso, porém silencioso e velado.
Há ainda uma segunda modificação, no
campo das práticas sexuais: o que se interroga a partir do século XIX
são as sexualidades desviantes do padrão. A sexualidade das crianças,
dos loucos, dos criminosos, dos homossexuais, bem como as obsessões e
pequenas taras, tornam-se os principais alvos do discurso. Todas essas
figuras, anteriormente apenas entrevistas, passam agora de avançar para
tomar a palavra e fazer a difícil confissão daquilo que são. Sem dúvida
não são menos condenadas, mas passam a ser escutadas. A partir dessas
sexualidades periféricas que a sexualidade regular será constituída.
Esta definição da sexualidade regular a
partir das sexualidades desviantes configura um movimento de “refluxo”.
Portanto, essas duas imagens (a centrífuga e o refluxo) demonstram a
transformação da sistemática discursiva a respeito do prazer, observada a
partir do final do século XVIII. Desse modo, houve, no campo da
sexualidade, a consagração de uma dimensão específica do
“contra-natureza”, tomada como mais grave. Antes, como já foi dito, não
existia diferenciação entre esse grupo de práticas consideradas
anti-naturais e os outros tipos de subversão à aliança matrimonial. A
sodomia, assim, torna-se algo mais grave do que se casar com um parente
próximo, por exemplo. Como resultado, as sexualidades desviantes ganham
autonomia em relação às demais ilegalidades do prazer. Torna-se bastante
evidente a nova ordem das condutas sexuais: de um lado, há as infrações
à legislação do casamento, da família e da moral; de outro, existem os
danos à regularidade de um funcionamento natural (que a lei, inclusive,
pode muito bem sancionar).
Com isso, passa a existir, no âmbito do
prazer, condutas originárias de uma natureza desviada, perversões
patológicas essenciais ao agente. Leis naturais do casamento passam a
ocupar um registro distinto das regras imanentes da sexualidade. Cria-se
um “mundo das perversões”, que é secante ao da infração moral ou legal,
mas que é totalmente autônomo em relação a ele. Há, com isso, uma
mudança de pensamento. Os “pervertidos”, embora também tenham sido
perseguidos pelos códigos e regimentos, passam a ser tratados como
vítimas de um mal inerente à própria pessoa, ou seja, anseiam por
tratamento, normalização, correção de um caráter essencial que lhes
pertence necessariamente. Podem, inclusive, incidir dentro do âmbito da
lei, porém enquadram-se dentro de outra seara: a dos viciados, isto é,
das vítimas escandalosas dos vícios contra a natureza.
“Crianças demasiado espertas, meninas
precoces, colegiais ambíguos, serviçais e educadores duvidosos, maridos
cruéis ou maníacos, colecionadores solitários, transeuntes com
estranhos impulsos: eles povoam os conselhos de disciplina, as casas de
correção, as colônias penitenciárias, os tribunais e asilos; levam aos
médicos suas infâmias e aos juízes suas doenças. Incontável família dos
perversos que se avizinha dos delinqüentes e se aparenta com os loucos.
No decorrer do século, eles carregaram o estigma sucessivamente da
‘loucura moral’, da ‘neurose genital’, da ‘aberração no sentido
genésico’, da ‘degenerescência’ ou do ‘desequilíbrio psíquico’ “¹
Assim, aquilo que se desvia das relações
matrimoniais torna-se o centro do discurso e não mais o casamento e as
regras da aliança. O contra a natureza, antes abarcado pelo domínio das
infrações conjugais, ganha agora um destaque e uma condenação maior.
Passa a ser classificado, precipuamente, como patologia, ultrapassando
assim a condição de mera subversão normativa.
Dessa forma, as sexualidades periféricas
estiveram, a partir do séc. XIX, no posto de objeto principal de um
ardil suplementar à severidade dos códigos. Foram transformadas em sede
principal de atuação de instâncias de controle e mecanismos de
vigilância instituídos pela pedagogia e pela medicina. A justiça, em
muitas situações, cede lugar às diretrizes médicas de normalização (ou é
aplicada de acordo com elas). Os “desviados” passam a ser taxados
exaustivamente pelos regimentos institucionais terapêuticos. O interesse
maior das redes de poder recai sobre as anormalidades sexuais e suas
incontáveis variedades. Prevê-las e listá-las, determinando o tratamento
adequado aos doentes, torna-se a fulcral preocupação das forças
políticas. Por isso, campos como a medicina são tão importantes: eles
estipulam o limite entre o normal e o patológico, substituindo a
dicotomia legal/ilegal.
Aliás, é perceptível que a medicina
começou a desempenhar também, a função da Igreja de intervir na
sexualidade conjugal: inventou toda uma patologia orgânica, funcional ou
mental, originada nas práticas sexuais “incompletas”; classificou com
desvelo todas as formas de prazeres anexos, integrou-os ao
“desenvolvimento” e às “perturbações” do instinto, empreendeu a gestão
de todos eles. Apresentam-se aqui, como as práticas disciplinares
dialogam com práticas discursivas: o anormal passa a ser interrogado
para que seja, assim, tratado de acordo com determinações
paradigmáticas. Ele não é, de forma alguma, forçado a se calar, mas pelo
contrário, é coagido a dizer tudo sobre si e sua natureza “decaída”.
Percebe-se, então, que a proibição não
foi o principal mecanismo de propagação, de controle e de normalização
das sexualidades desviantes. A censura e a interdição funcionaram,
principalmente, inseridas dentro de uma complexa sistemática de
exercício de poder, muito mais direcionada à incitação do discurso que
no combate dele.
NOTAS
1- Trecho de “A História da Sexualidade, Volume 1: A vontade de saber ” de Michel Foucault
Fonte: [Conjunto Vazio]
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