PICICA: "Um dos pontos que tem servido de mote principal para críticas à
Marina Silva nas eleições é de que seria neoliberal. Para essas
perspectivas, Marina teria dado garantias demasiadas ao mercado e com
isso fortalecido os mecanismos monetaristas que configuram o
neoliberalismo, regredindo em relação ao desenvolvimentismo que Dilma
vem aos poucos implementando mais e mais em seu governo. Na realidade,
pelo que vem aparecendo por aí – não sou economista para julgar – parece
que o Brasil vai alcançar logo um ponto em que vai ter que decidir
entre manter a base macroeconômica seguida por FHC e Lula ou
simplesmente ir no contrafluxo e buscar uma solução keynesiana que
romperia com o “tripé”. Em outros termos, se reeleita, ou Dilma irá
recuar e colocar uma equipe econômica mais “ortodoxa”, ou vai comprar a
briga e romper definitivamente com o modelo que Lula cautelosamente
seguiu. Muitos petistas esperançosos dessa segunda via enxergam Marina
Silva como um “recuo neoliberal”, significando um retrocesso que
recolocaria o Brasil nos eixos do neoliberalismo em contraponto ao
desenvolvimentismo de Dilma. Não tenho muita certeza se boa parte dos
protestos não é hipocrisia, já que duvido muito — pela experiência dos
últimos doze anos — que pressionado pelo mercado o PT banque a ruptura,
sendo muito mais provável que esse papo todo seja apenas para captar
votos da esquerda que mais tarde vai se “decepcionar” com escolhas
conservadoras da mandatária. Em todo caso, confesso que não tenho
instrumentos para julgar quem está certo porque não conheço economia. O
que me impressiona, no entanto, é como o viés economicista dessas
análises ignora totalmente o quanto os problemas contemporâneos do
capitalismo cresceram em complexidade e escapam da discussão entre esses
dois polos."
Neoliberalismo e Aceleracionismo
A formação de boa parte das cabeças do PT é o mesmo nacional-desenvolvimentismo que a Ditadura Militar implementou (não por acaso a influência de Delfim Neto e os vários elogios de Lula à visão econômica dos militares), mas com o projeto de distribuição de renda e cidadania inclusiva. Para essas descrições, o problema central do neoliberalismo seria o desmanche da estrutura do Welfare State e a desregulação dos mercados, com a consequente hegemonia do mercado financeiro sobre a indústria e a produção. A nostalgia desenvolvimentista pensa ser possível reconstruir a indústria com as bases do século XX e aplicar políticas de crescimento via intervenção do Estado com vistas à melhoria das condições sociais em especial dos mais pobres. No final, chegaríamos a uma sociedade no modelo dos Estados de bem-estar europeus e poderíamos somente então, quem sabe, começar a pensar nas utopias ecológicas ou anarquistas. Não por acaso boa parte do ideário dessa esquerda é nacionalista, como o poderoso ministro Aldo Rebelo e suas patacoadas não cansa de nos mostrar. Um keynesianismo econômico cumulado à plataforma constitucionalista seria o suficiente para transformar a sociedade brasileira contra a “globalização dos mercados” e suas políticas de exclusão social.
O problema desse diagnóstico é que ele deixa muitas variáveis de fora e não leva em considerações boa parte das transformações sociais do que hoje em dia podemos já chamar de século XXI.
O que se chamava de “neoliberalismo” hoje não pode mais ser reduzido a uma visão monetarista da política macroeconômica e tampouco apenas à hegemonia do mercado financeiro. Hoje o que se chama com esse nome é um complexo de medidas de urbanização que envolvem a reconstrução dos espaços públicos a partir de uma nova arquitetura das cidades. É um projeto de reconfiguração que funciona a partir de conglomerados econômicos que controlam o mercado da construção civil. A rigor, como o pessoal liberal me criticou com razão no Twitter, isso nem é mais liberalismo, porque o livre mercado foi para o brejo. É outra coisa. O complexo de oligopólios que atua no mercado da construção e conta com o apoio do sistema político — convertido em plutocracia — que usa a justificativa banal da “criação de empregos” para promover a reconfiguração do espaço urbano a partir de estratégias como a gentrificação e da organização de mega-eventos. O Estado, que no caso brasileiro até pode acreditar estar “induzindo” processos de crescimento, financia essas operações ou no mínimo as respalda usando sua força policial — especialmente a militarizada — para evitar o protesto dos atingidos.
O Brasil não apenas faz parte desse modelo, como inclusive o está exportando. A aliança Sul-Sul que alguns compram com um alinhamento automático pouco crítico na verdade está consolidando uma espécie de “quase-colonialismo” sobre outros países ao viabilizar que empreendimentos relativos à extração de matéria-prima e construção civil comandados pelos oligopólios brasileiros sejam levados para mercados como a própria América do Sul e a África, atingindo sobretudo as populações vulneráveis (como os indígenas da Bolívia e Peru) e favorecendo as cleptocracias (especialmente na África). Ao lado da aliança política comemorada pelos intelectuais partidários existe uma estratégia econômica que fortalece algumas mega-empresas que não por acaso se destacam em termos de doação para a campanha majoritária. Esse fenômeno é ainda mais visível se considerarmos a ocorrência da Copa do Mundo e todas as remoções e outras medidas que ela significou. Lembrando que, antes do Brasil, essa estratégia aconteceu na África do Sul, outro dos países emergentes. Não se pode negar que a FIFA tem visão. O projeto desenvolvimentista brasileiro está embarcando forte nessa aventura. Ele se converteu em um reposicionamento do capitalismo contemporâneo não na forma decadente de neoliberalismo, explodida em 2008, mas do aceleracionismo.
Não por acaso o PT, partido majoritariamente formado nas categorias socialistas e social-democráticas, não entendeu nada dos protestos de 2013. Os protestos (encarados por Gilberto Carvalho, das cabeças mais compreensivas do governo atual, como “traição”) organizaram-se justamente a partir da pauta urbanística, em torno da questão do transporte público, mas também da gentrificação e da interferência dos oligopólios econômicos na política institucional. As ocupações de todos os estilos, inclusive das câmaras municipais, e os protestos contra a Copa protestaram sobretudo contra essa nova onda do que antes se chamava “neoliberalismo”. Essa onda não é mais anti-Estado, e por isso os libertários talvez fiquem magoados, mas precisa do Estado como indutor desses processos de reconfiguração sobretudo a partir do uso da violência “legal” exercida pela polícia. Ela também precisa do apoio dos desenvolvimentistas para driblar as proteções ambientais e fazer girar a roda da “modernização” sem respeitar os limites. Em troca, promete “aquecer” o mercado e melhorar os índices macroeconômicos gerais que contentam aos desenvolvimentistas. Devastando a paisagem e variedade das experiências urbanas, faz proliferar espaços “higienizados” com a construção de gigantescos arranha-céus, imensas autopistas e a vigilância generalizada por meio de tecnologias sempre em renovação. A multiplicidade e o colorido da diferença são absorvidos na monotonia cinza da grande megalópole. “Aquecendo” o mercado, o aceleracionismo nos conduz a lugar nenhum: a felicidade desidratada do consumidor nunca satisfeito, com seu carro e gadgets, mas cada vez mais privado de singularidade e esmagado pelo stress causado pela máquina abstrata da aceleração.
Reservo a questão ecológica e o reflexo dessas políticas na área rural para outro post. Nesse caso, o quadro é ainda muito pior, muito mais catastrófico. Mas o que podemos visualizar nisso tudo é que o projeto “progressista” está em completa sintonia com as dinâmicas aceleracionistas do capital. Analisar a questão eleitoral apenas sob o ângulo da macroeconomia sem macroecologia, por exemplo, é um anacronismo a que não temos mais direito. O neoliberalismo como descrito pelos petistas não existe mais. Não tem mais futuro. Ele ruiu com a crise de 2008. O principal rival a ser enfrentado hoje em dia é o aceleracionismo, a “modernização urbana” que é na realidade a exploração do espaço existencial da cidade no modelo “Dubai”. O futuro do capitalismo hoje é o Brasil, a África do Sul, a Índia, os “mercados emergentes”. Hora de avançamos o debate.
Fonte: O Ingovernável
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