PICICA: "(...) olhamos tanto para o abismo que o abismo passou a nos olhar"
nota: “O cavalo de Turim” (2011)
“O cavalo de Turim” (2011), de Béla Tarr (que também assina o roteiro junto com Agnes Hranitzky), começa narrando informalmente – tela preta – o conhecido episódio do açoitado cavalo que fez Nietzsche se sensibilizar até às lágrimas e à loucura numa rua de Turim, episódio que praticamente calou o filósofo até a sua morte. Depois vivemos seis dias numa mansarda amarga à meia luz, habitada por pai e filha, que enfrentam o silêncio dentro da casa e o vento forte e ruidoso fora dela, e também a escassez (com toda as dimensões possíveis da palavra) numa rotina dura e de ritmo muito próprio.
O vento parece mesmo simbolizar o espírito de nossos tempos: uma força atroz que aprisiona e oprime sem ser nada mais do que um vento, sem mais nem por que, sem um lugar ou uma origem – aliás, um vento eterno que tecnicamente o filme realiza com primor.
Pouquíssimas falas e gestos comedidos, estes sempre essenciais e carregados de significado. Atuações belas, impossíveis, de János Derszi e Erika Bók. Planos sequências infindáveis, sensíveis. Tudo isso constrói a densidade do filme, densidade que o justifica.
Sinto-o como um filme pessimista, mas que traz em si um alerta atento ao que nos resta de humanidade. Através de toda arte que o cinema pode comportar, a metáfora da escassez – seja a material dos recursos que vão se extinguindo ou a espiritual (vital) do cavalo e das pessoas – conduz o sentido do filme até o limite, até à própria escuridão. Assume a tarefa, essa metáfora da escassez, de mostrar artisticamente o cotidiano que nos conduz ao abismo, direto ao coração de nossas trevas. Esta escassez é de água e de luz, mas é sobretudo de consciência e de existência.
O único momento verborrágico do filme (uma conversa, aliás, um monólogo, do pai com um velho que apareceu na casa para buscar bebida) cumpre a função clara de expôr a incongruência da condição humana a partir da banalidade de seus maiores problemas frente à vida mesma, brutalizada desde todos os lados, internos e externos. Com a morte de deus e dos deuses todos, as catástrofes todas evidentes, naturais ou não, a destruição da cidade que o visitante informa… a tudo isso o pai responde: “bobagem”.
Este breve comentário, é evidente, não resume “O cavalo de Turim” nem a isso se propõe. Mas apenas manifesta a mensagem que em mim ficou de forma predominante no espírito: olhamos tanto para o abismo que o abismo passou a nos olhar – e a nos invadir.
O filme termina com o abismo, na verdade a escuridão do abismo que quisermos imaginar, impondo-se lentamente, todo o filme é um lentamente, às duas solidões mútuas das personagens, perdidas em seus serenos desesperos, quase tão inconscientes quanto o cavalo.
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Recomendo as críticas no Cinética e no Crítica (non)sense. Há outras.
“O Cavalo de Turim” (A Torinól ló), de Béla Tarr (Hungria/França/Alemanha/Suíça/EUA, 2011). 146 min.
Trailer:
Fonte: arte__documento
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