PICICA: Os participantes do II Seminário da FMDDH "Desconstruindo a proibição:
por uma política de drogas singular e cidadã", realizado em BH, nos dias
9 e 10 de outubro/2014, aprovaram a Carta que se segue:
CARTA DE BELO HORIZONTE
II Seminário da Frente Mineira sobre
Drogas e Direitos Humanos.
Desconstruir a proibição para fundar uma
política singular e cidadã: nosso percurso de trabalho.
Ao se inserir no debate e inventar-se como ator e
interlocutor político, o coletivo que compõe a Frente Mineira sobre Drogas e
Direitos Humanos assumiu, entre outras responsabilidades, a tarefa de provocar
o pensamento, de questionar o paradigma proibicionista por reconhecer no mesmo
a sede de danos colaterais, de conseqüências letais e custos sociais. Muito
mais prejudicial que o consumo, a guerra às drogas é responsável por um
alarmante número de mortes de jovens pobres e negros, sendo ainda, a causa do
vertiginoso e vergonhoso encarceramento, também de jovens pobres e negros.
Desde então, continuamos a testemunhar e a denunciar os efeitos
perversos desta política, evidenciando que sua opção bélica se opõe à
civilização e produz mais sofrimento. Daí, a inadiável necessidade de
superá-la, também como condição para o avanço da democracia.
O trabalho militante deste coletivo, contudo, não se
restringiu à importante e necessária constituição de um espaço de debate, capaz
de abrir fissuras no discurso totalitário da proibição. Nosso compromisso cidadão nos levou à atuação em
outras frentes que continuam a produzir desdobramentos e ressonâncias,
demonstrando que, se por um lado o empuxo à exclusão se mantém, por outro, a
luta em defesa da vida não se arrefeceu!
Lembraremos aqui algumas intervenções empreendidas pela
Frente em parceria com outros movimentos sociais, na sustentação do compromisso
de incluir a todos, de construir modos de fazer caber as diferenças no espaço
da cidadania.
Tomamos posição e denunciamos por meses e a diferentes órgãos públicos e
à imprensa, as arbitrárias e violentas ações de recolhimento de pertences dos
que vivem nas ruas, solução higienista, levada a cabo pelo poder público
municipal.
E nos colocamos como parceiros, assumindo com outras
entidades a denúncia sobre o fechamento do Miguilim, espaço criado em 1993 para
acolhimento dos meninos e meninas em situação de rua, que encontrou na
burocracia o limite para a continuidade de seu trabalho. Desde o início deste ano, o Miguilim fechou suas
portas e esse público foi exposto, pelo poder público, a situações de maiores
vulnerabilidades. O último desdobramento desta ação
alcançou a Câmara de Vereadores, implicando, portanto, o legislativo municipal
que por não poder olvidar esta realidade, torna-se, também, responsável pela
necessária superação dessa indigna e violenta condição ou por sua indesejável
manutenção.
E, onde a droga surgia como álibi para o seqüestro de
direitos, na prática das internações compulsórias e involuntárias, adotadas
como solução mágica para o mal-estar e o risco, a Frente soube tomar posição e
convocar outros a assumirem suas
decisões. A audiência pública na Comissão de Direitos
Humanos da Assembléia Legislativa ressoou além dos limites do parlamento, e
a Procuradoria Estadual e o Ministério Público tornaram-se destinatários destas
denúncias e aos mesmos compete uma tomada de posição. Apesar das conversas
iniciadas e com bons augúrios, ainda não conseguimos concretizar ações com
essas entidades.
E da aliança universidade
e gestão municipal eis que surge outro obstáculo. Num
gesto autoritário o poder público de Belo Horizonte impõe uma formação aos
profissionais, absolutamente contrária aos princípios e à prática da rede.
Quando trabalhadores buscam recursos para construir uma clínica solidária ao
sofrimento, gestores e acadêmicos, alheios ao
cuidado, inexperientes, com discursos
vaidosos e onipotentes, reapresentam a exclusão, o
preconceito e o simplismo como inovações tecnológicas. Lamentável e repudiável
decisão!
Neste seminário registramos nosso repúdio a outra ação de violação de direitos: a
Recomendação 26/2014 da 23ª Promotoria Cível da Infância e Juventude de Belo
Horizonte que, ao introduzir notificações compulsórias dos casos de gestantes
usuárias de drogas enseja a adoção de práticas de violação de direitos humanos
e endossa o seqüestro do direito à maternagem.
Nacionalmente, a Frente também tem atuado, pressionando a Câmara Federal
e Senado, posicionando-se contrário ao Projeto de Lei do deputado Osmar Terra,
através de manifestos, articulações com as entidades antiproibicionistas e
antimanicomiais, reuniões com os gestores federais, culminando, até o momento,
no adiamento da sua votação nas Comissões do Senado.
Outra ação de âmbito nacional foi o posicionamento firme e claro da Frente,
enviado ao Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas – CONAD, contrário à
proposta de regulamentação das Comunidades Terapêuticas, em especial, no que
diz respeito ao financiamento público das mesmas.
Continuamos a testemunhar, a denunciar e a intervir sobre
processos que reeditam a obsoleta fórmula da exclusão para questões sociais, no entanto, nem tudo, foi só
resistência. Também assistimos e comemoramos
conquistas.
Do debate sobre as aplicações terapêuticas da maconha,
diálogo que desfaz brumas e monstros, ainda que não esgote nem conclua a
questão, sinaliza um avanço. É preciso, contudo, manter a disposição para a
subversão de todo o paradigma, rompendo, enfim, com a demonização de todas as
drogas, para assim inscrever a relação droga-sujeito e droga-sociedade nos
limites dados pelo laço social e pela cultura. É isto o que aponta o Uruguai e
sua corajosa decisão; também é o que nos apontam os estados do Colorado e Washington que legalizaram
o uso da maconha e os outros 23 estados estadunidenses que regulamentaram o uso
terapêutico da mesma.
Apostando no avanço deste debate e na conquista de outra
inscrição jurídica e regulamentação para o uso da maconha, declaramos nosso
apoio à Emenda Sub 8 que propõe a legalização do uso da maconha no Brasil.
Registramos, ainda e com orgulho, a articulação entre luta
antimanicomial e antiproibicionista que, na última edição da Marcha da Maconha em Belo Horizonte,
assumiram sua parceria e ocuparam as ruas da cidade para sustentar a
inadequação de duas ditaduras: a da razão e a da moral.
Avancemos! Adiante, rumo à desconstrução do proibicionismo.
Para que nossa futura Carta do próximo seminário não tenha
que reeditar as mesmas propostas, esperamos e apostamos que o novo governo
estadual eleito saiba fazer a diferença na política de drogas, subvertendo
o modelo e a prática do governo que se encerra e que tanto trabalhou e
contribuiu para ampliar a intolerância, o estigma e o preconceito contra os
usuários de drogas; que tantos recursos investiu e
destinou às instituições e práticas segregativas e violadoras de direitos;
que na política de drogas, sempre se comprometeu com
a privatização dos serviços e recursos públicos.
O que esperamos e desejamos do governo estadual que se
iniciará é que o mesmo saiba sustentar e fazer valer o direito à cidadania para
todos, ousando romper com as políticas de exclusão e segregação para instaurar em Minas Gerais e dar
exemplo ao país, de uma política que, verdadeiramente, se oriente e se
comprometa com a liberdade e com os direitos humanos para os que usam e abusam
de drogas. Uma política de paz e não de guerra!
Uma política para os homens e suas dores e prazeres. Uma política
cidadã, singular e solidária.
Belo Horizonte, 10 de outubro de 2014.
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