PICICA: "Filme de Eugênio Puppo vasculha crescimento e falência das
prisões brasileiras fugindo à narrativa convencional — talvez para
expressar espanto diante do perverso e bruto"
Sem pena retrata a obsessão encarceradora
Filme de Eugênio Puppo vasculha crescimento e falência das prisões brasileiras fugindo à narrativa convencional — talvez para expressar espanto diante do perverso e bruto
Por José Geraldo Couto, no blog do IMS
Um documentário como Sem pena, de Eugenio Puppo, poderia se
justificar apenas pela situação paradoxal que expõe e discute: a
população carcerária brasileira, terceira maior do mundo (atrás só da
China e dos EUA), cresce vertiginosamente, e nem por isso nossa
sociedade está mais segura ou menos violenta. Numa época em que
candidatos a cargos eletivos só falam em botar mais gente na cadeia, o
filme nos mostra que é todo o sistema penal que está falido, em seus
princípios e em seu funcionamento.
Pois bem. Sem pena – que ganhou o prêmio do público no recente Festival de Cinema de Brasília – não se apoia na muleta da pertinência de seu tema, como faria um documentário burocrático, jornalístico, televisivo ou panfletário, mas o destrincha por meios especificamente cinematográficos, ou seja, por um arranjo determinado de palavra, imagem e som.
Descompasso e desconforto
Há no filme depoimentos de uma porção de gente – advogados, promotores, presidiários, padres, policiais, juízes, parentes de presos –, mas não vemos essas talking heads (a não ser na sequência dos créditos finais), pois seu discurso verbal se sobrepõe a imagens diversas do universo judicial e prisional, de celas apinhadas e cozinhas infectas de presídios ao fausto dos fóruns e tribunais, das filas de familiares de detentos aos corredores intermináveis de estantes abarrotadas de processos.
Não há redundância entre o que se diz e o que se mostra, mas sim atrito, fricção, descompasso. Frequentemente as imagens são parciais, fragmentadas, numa composição que alude ao sistema por meio da metonímia. Algemas penduradas numa barra, o fuzil de um policial fazendo ronda na muralha de um presídio, uma toga de juiz no encosto de uma poltrona, pinturas multicoloridas feitas por um preso – tudo isso enquanto se fala de outra coisa. A sensação é de estranheza: ideias e corpos fora do lugar.
Um exemplo singelo e significativo: a certa altura vemos, do joelho para baixo, uma mulher trocando de saia num cercadinho de pano que não chega até o chão. Só vários minutos depois será dado o sentido dessa imagem fragmentada, quando a mãe de um presidiário contar que as kafkianas exigências para as visitas de parentes mudam a cada semana, obrigando-os muitas vezes a comprar ou alugar roupas “permitidas” no mercado paralelo formado diante da prisão.
A ficção do real
O efeito desse tipo de procedimento, realçado pelos silêncios, pelo som ambiente e pela música (uma peça de John Cage para “piano preparado” que se aproxima muito dos ruídos secos e cortantes do universo prisional), é de desconforto e incompletude, obrigando o espectador a buscar os nexos, montar seu próprio quebra-cabeças.
Nesse contexto, duas cenas – talvez as únicas – em que as falas e as imagens se correspondem diretamente parecem até encenadas, de tão significativas. Numa delas, moradores de rua provocam verbalmente o dono de uma Ferrari vermelha no largo São Francisco, em São Paulo, e quando a câmera sobe um pouco lemos a inscrição no edifício: “Faculdade de Direito”. A outra cena é, de certo modo, a culminância dramática da narrativa, e ao mesmo tempo a demonstração prática de sua discussão, ao mostrar uma audiência em que uma senhora negra e pobre é interrogada por um juiz porque uma certa quantidade de droga foi encontrada perto da porta do seu barraco.
Dizer que o filme não é panfletário é reconhecer que ele não simplifica de modo maniqueísta o seu assunto para defender uma bandeira, mas não significa que ele seja descomprometido ou “neutro”. Longe disso. Coproduzido pelo IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), o documentário de Eugenio Puppo, ao desnudar a lógica perversa do sistema penal, acaba por expor seus condicionamentos sociais e sua injustiça intrínseca. É o país inteiro, em toda a sua brutal iniquidade, que aparece ali. Não é um panfleto, mas talvez seja um libelo, no sentido jurídico do termo.
Fonte: OUTRAS PALAVRAS
Pois bem. Sem pena – que ganhou o prêmio do público no recente Festival de Cinema de Brasília – não se apoia na muleta da pertinência de seu tema, como faria um documentário burocrático, jornalístico, televisivo ou panfletário, mas o destrincha por meios especificamente cinematográficos, ou seja, por um arranjo determinado de palavra, imagem e som.
Descompasso e desconforto
Há no filme depoimentos de uma porção de gente – advogados, promotores, presidiários, padres, policiais, juízes, parentes de presos –, mas não vemos essas talking heads (a não ser na sequência dos créditos finais), pois seu discurso verbal se sobrepõe a imagens diversas do universo judicial e prisional, de celas apinhadas e cozinhas infectas de presídios ao fausto dos fóruns e tribunais, das filas de familiares de detentos aos corredores intermináveis de estantes abarrotadas de processos.
Não há redundância entre o que se diz e o que se mostra, mas sim atrito, fricção, descompasso. Frequentemente as imagens são parciais, fragmentadas, numa composição que alude ao sistema por meio da metonímia. Algemas penduradas numa barra, o fuzil de um policial fazendo ronda na muralha de um presídio, uma toga de juiz no encosto de uma poltrona, pinturas multicoloridas feitas por um preso – tudo isso enquanto se fala de outra coisa. A sensação é de estranheza: ideias e corpos fora do lugar.
Um exemplo singelo e significativo: a certa altura vemos, do joelho para baixo, uma mulher trocando de saia num cercadinho de pano que não chega até o chão. Só vários minutos depois será dado o sentido dessa imagem fragmentada, quando a mãe de um presidiário contar que as kafkianas exigências para as visitas de parentes mudam a cada semana, obrigando-os muitas vezes a comprar ou alugar roupas “permitidas” no mercado paralelo formado diante da prisão.
A ficção do real
O efeito desse tipo de procedimento, realçado pelos silêncios, pelo som ambiente e pela música (uma peça de John Cage para “piano preparado” que se aproxima muito dos ruídos secos e cortantes do universo prisional), é de desconforto e incompletude, obrigando o espectador a buscar os nexos, montar seu próprio quebra-cabeças.
Nesse contexto, duas cenas – talvez as únicas – em que as falas e as imagens se correspondem diretamente parecem até encenadas, de tão significativas. Numa delas, moradores de rua provocam verbalmente o dono de uma Ferrari vermelha no largo São Francisco, em São Paulo, e quando a câmera sobe um pouco lemos a inscrição no edifício: “Faculdade de Direito”. A outra cena é, de certo modo, a culminância dramática da narrativa, e ao mesmo tempo a demonstração prática de sua discussão, ao mostrar uma audiência em que uma senhora negra e pobre é interrogada por um juiz porque uma certa quantidade de droga foi encontrada perto da porta do seu barraco.
Dizer que o filme não é panfletário é reconhecer que ele não simplifica de modo maniqueísta o seu assunto para defender uma bandeira, mas não significa que ele seja descomprometido ou “neutro”. Longe disso. Coproduzido pelo IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), o documentário de Eugenio Puppo, ao desnudar a lógica perversa do sistema penal, acaba por expor seus condicionamentos sociais e sua injustiça intrínseca. É o país inteiro, em toda a sua brutal iniquidade, que aparece ali. Não é um panfleto, mas talvez seja um libelo, no sentido jurídico do termo.
Fonte: OUTRAS PALAVRAS
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