PICICA: "O 2014
brasileiro, pelo menos quanto às suas eleições, está para seu rebelde
Junho de 2013 como as eleições francesas de 1969 estiveram para o Maio
de 1968. Para se ter uma ideia, a eleição presidencial francesa de 69 foi a mais reacionária do pós-guerra, na qual o candidato mais "à esquerda" era um stalinista que ficou em terceiro lugar.
Nada de espantoso, eu mesmo falei isso há mais de um ano, mais que isso dá [muito] a pensar, dá."
O Porvir do Brasil IV: O Que Resta das Urnas?
Siqueiros: do Porfiriato à Revolução |
O que
dizer das nossas eleições gerais? Terminados o primeiro turno das
eleições majoritárias e as eleições legislativas, temos um saldo
curioso. É inevitável pensar em como as manifestações de 2013 entram
nessa narrativa. Ou, mais ainda, como os avanços sócio-econômicos entram
na jogada. O fato é que Congresso brasileiro eleito é o mais conservador desde 1964. Enquanto isso, Aécio
Neves, o candidato presidencial mais conservador dentre os três com
chances reais de eleição, subiu assombrosamente nos últimos dias de
campanha e chegou ao segundo turno.
O 2014
brasileiro, pelo menos quanto às suas eleições, está para seu rebelde
Junho de 2013 como as eleições francesas de 1969 estiveram para o Maio
de 1968. Para se ter uma ideia, a eleição presidencial francesa de 69 foi a mais reacionária do pós-guerra, na qual o candidato mais "à esquerda" era um stalinista que ficou em terceiro lugar.
Nada de espantoso, eu mesmo falei isso há mais de um ano, mais que isso dá [muito] a pensar, dá.
Irrupções
do desejo semelhantes ao Maio de 1968, naturalmente, se explicam pela
excedência material em choque com uma estrutura política ultrapassada.
No caso brasileiro, isso é óbvio. O cobertor do sistema político local,
que já se sabia curto, se tornou insuficiente face às novas demandas
materiais trazida não só pelos avanços sócio-econômico como, sobretudo,
pela revolução desejante: os pobres foram autorizados a desejar. Tais
irrupções, no entanto, não desencadeiam processos reformistas ou
revolucionários apenas por si.
Uma
revolta contra o sistema, quando desacompanhada de uma tática e
estratégia reformista ou reformadora, tende a encontrar um termidor na
normalização -- muitas vezes "democrática", no sentido eleitoral. E
isso não torna essas ebulições "reacionárias" ou"de direita". Nem impede
que, no longuíssimo prazo, boas coisas possam acontecer em virtude
daquilo. Mas elas não trazem o paraíso de imediato, às vezes até
libertam demônios difíceis de esconjurar. É a vida.
Agora, o
fundamento de Junho de 2013, embora permaneça em disputa sobre sua
origem, repousa num fato incontestável: apesar do crescimento pequeno do
PIB, o fato é que o aumento da renda do trabalhador, o emprego, o
crédito para os consumidores e os programa sociais estavam lá,
alavancando as condições gerais de vida. A figura do brasileiro típico,
na sua origem, etnia, cor de pele, pela primeira vez ganhava [algum]
protagonismo. A composição de classe mudou, às custas de arranjos
pragmáticos dentro do mesmo sistema político e isso gerou abalos.
O problema é
justamente o discurso que o Estado assumiu para "organizar" o processo:
criar um país de classe média. A classe ascendente deveria, então, ser
classe média. E classe média não corresponde à faixa de renda, classe
social própria no sentido marxista ou nada do tipo, ela é -- sobretudo
no capitalismo cognitivo --, uma forma de pensar e, sobretudo, de
sentir. A gradual construção do ex-pobre como classe média implica em um
novo regime desejante, um controle.
No mais, a
questão central da tese dilmista do país de classe média é um só: a
classe média é, talvez, a única das classes que não deseja ser si mesma.
Ela quer ser rica, revolucionária e fazer um outro mundo, se tornar
índio qualquer coisa, menos continuar a ser classe média. Um país de
classe média é, antes de tudo, um país de insatisfeitos. As nossas
peculiaridades políticas -- a ausência da cidadania, a falta de
anticorpos para o autoritarismo de Estado -- e até urbanísticas
brasileiras -- o concentração de demográfica em certas cidades, o
trânsito, a falta de transporte público, a precariedade no campo etc --
colaboram para acirrar ainda mais isso.
O impulso
que move um Aécio, longe de ser qualquer programa nacional, é
basicamente um plano construído desde cima pelo grande capital, o qual
encontra na sociedade um respaldo no sentido da negação do que está
posto: o que não quer dizer que, no entanto, isso se transforme em
sustentação política durante um eventual governo, muito pelo contrário.
Mas é um movimento sem dúvida poderoso do ponto de vista eleitoral.
Objetivamente, o entourage aecista vê no arrocho -- o "ajuste" -- um bom caminho, afinal o "salário mínimo" estaria alto demais. O
custo da política de austeridade na Europa, na qual conquistas sociais
bem mais antigas e profundas se sobrepõem, apresenta um custo
altíssimo. No
caso brasileiro, os efeitos disso seria desastroso, sobretudo se
combinado com uma espécie de oligarquismo antigo: como na relação
negativa de Aécio com a mídia mineira e a internet, a sua posição anti-índios e pró-latifúndio ou sua proximidade com o que há de mais retrógrado no mundo do futebol.
O
trabalhismo de Dilma criou armadilhas para si mesmo, a exemplo do
trabalhismo original, quando pôs a execução de um grande projeto à
frente do método político e, sobretudo, da democratização da sociedade.
Precisará assumir um discurso que ponha os direitos -- e a nossa
esquecida cidadania -- à frente de qualquer economicismo, caso queira
vencer uma eleição que será apertadíssima. É o caminho que lhe resta.
A crise
política brasileira, transformada em política de crise, no entanto, é
problema posto para muito além de 2014. Não é a questão que, de repente,
algum ingovernável acene para a liberdade, mas que o desgoverno -- que é
governo, muito governo, mas tanto que não ocorre -- apareceu no
horizonte. É necessário luta, tática e estratégia, senão pior do que tá,
fica.
Fonte: O Descurvo
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