PICICA: "Criador múltiplo, estudioso da Psicanálise e
Antropologia, ele enriqueceu Modernismo com eventos de rua, encontros
com tribos nativas, intervenções midiáticas, cultura popular, ciência e
rituais como Carnaval"
Em Flávio de Carvalho, arte ligada à vida
Criador múltiplo, estudioso da Psicanálise e
Antropologia, ele enriqueceu Modernismo com eventos de rua, encontros
com tribos nativas, intervenções midiáticas, cultura popular, ciência e
rituais como Carnaval
Por Rui Moreira Leite, na seção especial Oswald 60
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Este texto foi publicado originalmente na revista Leonardo Reviews [aqui]. A partir da versão em inglês, elaborada por Izabel Murat Burbridge e Eduardo Kac, foi novamente traduzido para o português por Anna Carolina Iunes.
Observamos que o presente artigo dialoga intensamente com um outro do mesmo autor, publicado em Outras Palavras [aqui], dentro da série Oswald 60.
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Este artigo tem como função apresentar o trabalho do
moderno artista brasileiro Flávio de Carvalho (1899-1973),
reinterpretando-o a partir de um ponto de vista contemporâneo. Assim
temos, no início de sua carreira como arquiteto, de 1927 a 1929, quando
defende a imprensa como um fórum de discussão de projetos, e entra em
uma competição oficial; em seguida, três instâncias subsequentes, as
quais, sob o comando de sua pesquisa, executa projetos que favorecem a
sua experimentação pessoal na criação de objetos de arte. Em sua Experiência No. 2, Carvalho
confronta os peregrinos da procissão de Corpus Christi tendo como
objetivo testar reações. Dessa maneira, veste uma provocativa vestimenta
masculina de verão, nas ruas do centro de São Paulo (1956). Além disso,
junta-se a uma expedição destinada a fazer um primeiro contato com
nativos indígenas brasileiros de tribos do alto do Rio Negro (1958). Em
todas essas instâncias, os eventos se tornaram independentes de sua
origem investigativa. Consciente da mídia como espaço de divulgação de
ações públicas, o artista solicita uma extensiva e garantida cobertura
da imprensa para suas criações. De fato, quase uma década antes do
aparecimento de vídeos de arte, a exibição de Carvalho em sua
indumentária de verão excêntrica teve cobertura ao vivo na televisão. Um
entendimento próprio desses aspectos do trabalho do artista requer uma
descrição preliminar de sua carreira e do contexto em que esta
funcionava. i
A tendência Modernista no Brasil, cujas primeiras
manifestações datam da segunda metade da década de 10, afirma-se durante
os anos 20. Esse período combativo inicial, que começa em São Paulo com
a Semana de Arte Moderna em fevereiro de 1922, termina com o Movimento
Antropofágico, em 1928, idealizado por Oswald de Andrade (1890-1954) e
Raul Bopp (1898-1984). Estes incorporam a cultura europeia ao cenário
brasileiro (fazendo uso, então, do termo “antropofagia”, sinônimo de
canibalismo) dentro de um âmbito em especial, a mitologia e tradição
indígena.
Após obter um diploma de engenheiro civil, em 1922, pela Universidade de Durham, em Newcastle upon Tyne,
Inglaterra, onde também cursou a escola de artes, Flávio de Carvalho
retomou ao Brasil na secunda metade do mesmo ano. Em São Paulo, onde se
instala, Carvalho permanece inicialmente separado do grupo de artistas e
escritores modernistas da cidade. Somente no ano de 1928, quando começa
sua carreira como arquiteto com um projeto de design do Palácio
do Governo, estreita suas relações com o círculo dos modernistas.
Carvalho ingressa no Movimento Antropofágico, em 1928, quando entra na
competição internacional de design do Memorial Farol de Colombo, na
República Dominicana. O design do artista é combinado com seu estilo
futurístico de prédios monumentais rodeados de grandes esculturas
iluminadas e decorado em seus interiores com inspiração pré-cultura e
civilização colombianas. Carvalho compareceu ao IV Congresso
Pan-Americano de Arquitetos, realizado no Rio, em 1930, representando a
delegação do Movimento Antropofágico. No evento, manteve o título da
conferência como “A Cidade do Homem Nu”, na qual propôs a Utopia urbana:
a cidade se transforma em um imenso lar onde cada autoridade
privilegiada, nomeada como um centro de pesquisa, seria caracterizada
por diretrizes individuais e de vida comunitária. O título da
conferência endossou a idéia de indivíduos se libertando de tabus
impostos pelo Cristianismo, que era um dos dogmas da Antropofagia.
A arte de Flávio de Carvalho leva ao seu
reconhecimento como pintor, com um tom expressionista, quase que
exclusivamente de retratos e nus artísticos. Além da contribuição ao
Movimento Modernista brasileiro, Flávio de Carvalho destaca-se,
sobretudo na década de 30, como o mais famoso produtor cultural em São
Paulo. Foi secretário do Clube dos Artistas Modernos, organizando
recitais, leituras e animadas exibições de debates, mantidos até 1933.
No final deste ano, ele anuncia a renovação da sua fase de atuação com a
performance de seu Teatro da Experiência. Finalmente, como organizador e
colaborador de May Salon em 1938 e 1939, esteve entre os primeiros a
mostrar obras de artistas contemporâneos europeus e norte-americanos no
Brasil.
Em 1938, a visão arquitetônica de Flávio de Carvalho
foi realizada pela primeira e última vez: um grupo de 17 casas
construídas em uma área residencial de classe média em São Paulo e na
casa de sua família na Fazenda da Capuava, chácara perto de Valinhos,
também no estado de São Paulo. Seu design de casas urbanas combinadas
com penetrantes interiores volumosos com sua própria versão de
expressionismo – em duas casas, a decoração fez suas fachadas parecerem
faces humanas. Na chácara, o salão central, de formato trapezoidal e o
teto de mais de 7 metros trazem à mente o monumental estilo das décadas
anteriores. Na casa, contudo, a decoração interior e a iluminação
desempenham um papel fundamental, criando uma atmosfera única. A arte
cinética pioneira de Abraham Palatnik traz
a memória da noite que passou na fazenda em 1951 – enquanto acontecia a
primeira Bienal de São Paulo – junto com o crítico de arte Mario
Pedrosa (1900-1981) e Flávio Carvalho. Na sala de jantar, a iluminação
sobre o tampo de cristal da mesa lançava sombras nas faces dos
convidados, deixando seus pratos na escuridão: uma verdadeira “festa
diabólica”, nas palavras de Palatnikii.
No salão central, aparatos espirravam água na cobertura de alumínio da
lareira, produzindo uma nuvem de fumaça que era colorida por luzes
especiais. Para o teto, Carvalho desenvolveu uma enorme superfície de
alumínio, colorido com lâmpadas que deveriam deslizar por debaixo da
clarabóia, permitindo ver a luz do dia ou as estrelas da noite.
Como consequência da crise econômica de 1929, a
reestruturação do governo brasileiro trazida pela Revolução de 1930 abre
espaço para a participação de políticos dissidentes. No campo da
cultura, os intelectuais de São Paulo introduziram uma série de projetos
de reforma e reorganização, incluindo a fundação da Universidade de São
Paulo (USP), em 1934, e, no ano seguinte, a criação do departamento de
Cultura da administração da cidade de São Paulo. Durante essa década,
quando questões sociais e políticas substituíram a pesquisa formal que
marcou os anos 20, Flávio de Carvalho permanece no centro das atividades
no papel de organizador. No entanto, seu trabalho foi contra a
tendência predominante no Brasil, que ganhou maior engajamento social.
Do mesmo modo, em 1950, quando várias tendências abstracionistas
chegaram ao seu ápice, o trabalho de Carvalho manteve-se numa linha
individual fundada em seus inquéritos pessoais de antropologia e
psicanálise.
No começo de 1940, Carvalho publicou uma série de
artigos em jornais de São Paulo manifestando sua visão pessoal e seus
interesses. Porém suas criações não eram restritas à escrita. Assim, a
sua investigação artística, dentro do reino das convenções da moda,
levou-o a lançar a controversa roupa masculina de verão que usou no
centro da cidade, e seu interesse por antropologia fez com que se
engajasse numa expedição para estabelecer contato com povos indígenas na
Amazônia.
Arquitetura de mídia
Flávio de Carvalho começou sua carreira profissional
no Brasil em 1922, quando foi trabalhar no setor de desenho estrutural
de uma empresa de engenharia paulista. Naqueles dias, as ideias que
informavam o Modernismo na literatura e artes plásticas ainda não tinham
influenciado a arquitetura. Quando da exposição dos projetos para o
Palácio do Governo de São Paulo, em janeiro de 1928, contudo, a situação
começou a mudar. A primeira casa de estilo moderno em São Paulo,
desenhada pelo russo Gregori Warchavchik (1896-1971), foi então construída. Warchavchik e seu colega descendente de italianos, Rino Levi (1901-1965), publicaram textos que defendiam o novo estilo.
Flávio de Carvalho usou a competição oficial para
apresentar à imprensa sua interpretação pessoal do movimento Modernista
em seu projeto. Várias características, tanto no projeto como em sua
apresentação, tinham a qualidade de um manifesto: Carvalho concebeu o
Palácio como uma fortaleza de concreto reforçado, equipado com pistas
aéreas, abrigo nuclear, armamento defensivo e poderosos holofotes.
Embora sua proposta única demandasse explicações mais detalhadas,
Carvalho não tinha condições de oferecer nenhuma elucidação direta,
porque tinha colocado seu projeto sob pseudônimo. Explicar significaria
expor a real identidade do projeto. Assim, na medida em que somente
parte da descrição do projeto foi publicada, ele apresentou
esclarecimentos, atribuindo-os a um engenheiro fictício. O seu projeto
figurou na primeira página do jornal Diário da Noiteiii,
acompanhado de um esboço reproduzindo a noite vista do Palácio, com
grandiosos holofotes (Fig. 1b) e um mural de descrições propostas para
os halls do prédio.
Outra competição de projetos na qual o arquiteto
apresenta o seu trabalho, sempre sob o pseudônimo “Efficácia”,
compreende a embaixada da Argentina no Rio de Janeiro, em março de 1928;
a Universidade de Minas Gerais em Belo Horizonte, em novembro de 1928; e
a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, em fevereiro de 1929.
Todos os seus projetos possuíam detalhes construtivos únicos em prédios
monumentais. Em que pese o júri ter excluído seu projeto da Embaixada da
Argentina, Flávio de Carvalho fez uma ilustração da visão de frente e
do lado de seus projetos, publicado em jornal carioca. No entanto, ele
não garantiu espaço para discutir o projeto. Para seu projeto da
Universidade de Minas Gerais, uma ilustração mostrando as visões das
partes da frente e do lado de seu desenho arquitetônico foi publicada em
O Cruzeiro sob o mesmo pseudônimo. Claramente, Carvalho fez com
que a mídia, ativamente, publicasse e disseminasse suas ideias de
arquitetura.iv
O design arquitetônico de Flávio de Carvalho bate de
frente com as tendências conservadoras existentes nos próprios concursos
públicos. Daí o caráter de manifesto do seu estilo e a tentativa do
arquiteto de manter todos os projetos sob o pseudônimo comum. No caso do
projeto do Palácio do Governo, a ideia de uma fortaleza equipada com
pesados armamentos salienta a excentricidade e ilustra a tenacidade e
senso de humor do artista.
A ideia da imprensa como o principal espaço para
publicar os projetos de Carvalho estava expressa nas placas em que
estava desenhado o projeto, as quais tinham sempre um fundo preto para
facilitar o processo de reprodução. No projeto do Palácio do Governo, o
artista produziu uma segunda placa mostrando a fachada do prédio – uma
visão noturna com holofotes – já que o original da fachada não era
adequado para reprodução em jornal (i.e. não tinha fundo preto).
Experiência #2 Arte como experiência e psicologia de massa
Em 1931, Flávio de Carvalho cuidava da Experiência
#2, na qual desafiou os participantes religiosos de uma procissão. Este
evento foi apenas o primeiro de uma série de trabalhos experimentais
afirmados em sua nova proposta de criação, que revelava a tensão entre o
individual e a sociedade.
Tudo isso aconteceu em uma manhã ensolarada de junho.
Enquanto acompanhava a procissão de Corpus Christi que se movia ao
longo das ruas do centro de São Paulo, Flávio concebeu a ideia de
conduzir uma investigação no campo da psicologia de massa. Voltou para
casa, colou um boné verde, que trouxe de seus tempos de faculdade na
Inglaterra, e voltou para a procissão, a qual proibia cabeças cobertas
para homens. Imediatamente, um de seus pares o alertou sobre sua
provocação deliberada. Sem se abalar, Flávio de Carvalho adentrou o
cortejo, porém movendo-se no sentido contrário ao fluxo da procissão,
aproximou-se de mulheres jovens sem chamar atenção. Logo no início,
tímidas vozes de protestos, junto a gritos de objeção e avisos para ele
descobrir a cabeça. Gradualmente, tais reações aumentaram
insistentemente, a ponto de um menino tirar o boné de sua cabeça. Na
mesma hora, contudo, o menino devolveu o boné a Carvalho, desafiando-o a
colocá-lo de volta. Assim que o artista iniciou um desafio verbal com
as pessoas a sua volta, um clamor de linchamento começou. Nesse momento,
o artista foi forçado a sair rapidamente da cena, levado por atendentes
do evento. Finalmente, ele pegou um atalho pelo telhado de uma loja de
laticínios, da qual foi resgatado pela polícia, sob insultos de
passantes. Flávio de Carvalho foi levado à delegacia mais próxima para
um interrogatório. Foi liberado depois de explicar quem era e em que
consistia o seu experimento de psicologia de massav.
Mais tarde, em 1931, Carvalho publicou um livro, também chamado de Experiência #2,
contendo diversos episódios e suas interpretações dos resultados
baseados em concepções extraídas de textos de Freud e do etnógrafo James
Frazer. De acordo com o artista, sua atitude desafiadora o transformou
diante dos olhos dos fiéis em uma extensão do Santo Deus Pai. Portanto,
apenas seu assassinato poderia apaziguar o totemismo da multidão, assim
como os jovens de grupos primitivos, cujos instintos sexuais eram
reprimidos, matavam seus pais. A melhor parte de seu livro são as
páginas em que o autor oferece uma descrição viva de seu experimento,
ilustrada com seus desenhos originais. Embora todos os jornais de São
Paulo tenham relatado a experiência de Flávio, eles detiveram-se no
depoimento dado pelo artista na delegacia de polícia.
Experiência #3 O lançamento da roupa de verão
Em 1956, Carvalho conduziu sua Experiência #3, a qual
consistia em andar pelas ruas de São Paulo vestido em uma provocativa
roupa de verão que ele mesmo desenhou. O conjunto, apresentado como uma
roupa masculina, consistia em um shorts-saia, uma blusa e sandálias para
serem usadas ou não com meias de rede. Carvalho, que começou a estudar a
evolução do vestuário no começo dos anos 30, apresentou o conceito
inovador de design, pela primeira vez, em uma entrevista com o
jornalista e crítico de arte Luis Martins (1907-1982), em 1952vi.
Ele disse que era preciso levar em conta as necessidades do corpo que
precisava ser ventilado para prevenir o suor em excesso. Sua intenção
era promover a rápida evaporação do suor de sua pele e,
consequentemente, reduzir a sensação de calorvii.
Os estudos do artista sobre a evolução do vestuário, que ele lançou na
mídia no mesmo ano, foi um fator decisivo na sua concepção de roupa de
verãoviii.
Finalmente, Flávio anunciou o lançamento de uma
quarta vestimenta, produzida por Maria Ferreira, diretora do estúdio de
costura do Ballet do IV Centenário.
Apesar do anúncio feito no final de julho de 1956,
foi somente em 18 de outubro que Flávio de Carvalho lançou seu novo
design nas ruas do centro da cidade de São Paulo, onde seu estúdio era
localizado. Na ocasião, este grande homem de mais de 1m80cm de altura,
imperturbável, desfilava com o novo estilo e impressionava os
transeuntes. Ele discutiu as vantagens no controle da transpiração
oferecidas por sua nova roupa e as qualidades específicas de fábrica.
Para facilitar o trabalho dos jornalistas que o seguiam em sua
caminhada, Flávio de Carvalho visitou uma redação do complexo midiático
Diário Associados, onde colocou sobre uma mesa, para exibição, as
fotografias de seus projetos inovadores. Solicitado por repórteres,
voltou para a rua e consegiu até mesmo entrar num cinema, obviamente
violando o código de vestimenta do local, que requeria terno e gravata
para homensix.
As notícias sobre a roupa de verão do artista saíram em diversos
jornais brasileiros, assim como em duas revistas semanais de
distribuição nacional da época, O Cruzeiro e Manchete. Em seguida, antes do caso desaparecer da mídia, Flávio de Carvalho foi para Roma, onde mostrou suas pinturas.
Após retornar ao Brasil no início de 1957, Carvalho surgiu num talk show vespertino apresentado pelo ator Paulo Autranx. Para o programa, de transmissão ao vivo do estúdio de Carvalhoxi,
o artista usou sua roupa de verão. Na ocasião, comentou o progresso de
sua pesquisa de tal forma que mostrava seu senso de humor único. Em
1958, o artista desenhou e produziu um cartão impresso com esboços e
diagramas de sua roupa. O cartão foi desenhado para disseminar o
conceito do vestuário, que ele observou não ter sido inteiramente
compreendido. Diante da ampla repercussão de seus esforços, em 1963
Carvalho revelou a intenção de escrever um livro compilando suas
análises de provocação e reação. “Um dia pretendo escrever um livro
sobre a minha experiência com moda, incluindo o impacto emocional
causado na nação brasileira, apoiado nos recortes de jornais que tenho;
pretendo classificá-los e escrever um livro chamado Experiência #3”xii.
Experiência #4: A Expedição amazônica
Em 1958, Flávio de Carvalho juntou-se a uma expedição
à Amazônia, que pretendia estabelecer o primeiro contato com nativos
brasileiros do Alto do Rio Negro. Ao referir-se a esse evento, a mídia o
chamava de Experiência #4. O interesse do artista aumentou com a
ideia de uma futura investigação sobre a evolução humana e social,
conforme noticiado pela mídia. Mais à frente, Carvalho ficou obsessivo
com a idéia de desvendar as origens da humanidade no continente
americano, como indicou em diversos textosxiii. De fato, ele já havia participado de uma primeira expedição organizada, em 1952, para as filmagens de O Grande Desconhecido,
do produtor Mário Civelli (1923-1995). Na ocasião, a equipe esteve em
contato próximo com a tribo Karajá, na Ilha do Bananal. Quando Flávio de
Carvalho, nu, juntou-se à dança tribal, ele reclamou para um membro da
expedição, o explorador Francisco Brasileiro (1906-1989), sobre outros
membros da expedição que entraram na dança todos vestidos: “Você acha
que eu vim de tão longe assim para dançar com cristãos?”xiv.
Na época do lançamento da roupa de verão, Flávio de
Carvalho anunciou que a expedição avançava bem. A primeira referência
feita à jornada foi em entrevista que o artista concedeu depois de
retornar de uma viagem ao Norte e Nordeste do Brasil. Durante sua visita
a Manaus, Carvalho juntou-se ao Serviço de Proteção aos Índios, o SPI,
para tornar-se membro da primeira expedição de contato com a tribo
Xiriana. A jornada foi marcada para maio de 1958. Porém, sucessivos
atrasos e a época de chuvas acabaram por adiar a partida do grupo. Nesse
meio tempo, Flávio de Carvalho publicou seus planos de filmagem na
floresta. Esta produção audiovisual seria um diário de viagem
documentado e, depois, usado para um longa-metragem sobre a saga de uma
menina branca sequestrada por índios e consagrada por eles como deusa
durante 20 anos, antes de retornar à civilizaçãoxv.
Depois do anúncio, o artista manteve-se ocupado por atividades como
selecionar atriz para o papel principal e arrecadar equipamentos para as
filmagens e expedição.
Em seguida à ampla cobertura midiática dos
preparativos – baseada em informações fornecidas pelo próprio artista –,
finalmente a equipe partiu. Durante a fase inicial, Flávio de Carvalho
contribuiu com relatórios que eram publicados em jornais de São Paulo. O
evento acabou chamando tanta atenção que os jornais chegaram ao ponto
de noticiar que havia absoluta falta de notícias sobre o grupo. A
jornada teve fim depois de obter sucesso em manter contato com os
Xiriana. Contudo, o artista retornou sem ter feito todas as filmagens
previstasxvi [16].
Os relatórios de Flávio de Carvalho e as filmagens de
Raymond Frajmund (1927 –) permitiram a reconstrução da história do
contato com as tribos Waimiri-Atroari, Paquidare e Xiriana. Entre outras
ações, o artista manejou filmar os Waimiri-Atroari no rio Camanau e os
Paquidare no rio Demini, onde acontece o ritual de cremação. No entanto,
o mais interessante relatório é sobre a tribo Xiriana, situada perto da
fonte do rio Orinoco, na fronteira entre Brasil e Venezuela. Depois de
vários dias de viagem a pé, os membros da expedição viram -se de repente
cercados por 200 a 300 índios. Algumas horas depois, os nativos
deixaram o grupo entrar em sua tribo e deram a eles comida. A expedição
também participou de um ritual que começava com os guerreiros cheirando
um pó marrom. Quanto mais eles cheiravam, mais agitados e sem maneiras
ficavam. Finalmente eles se reuniram em pares, como relatado na
descrição feita por Carvalhoxvii.
Conclusão: “A arte prevê os feitos futuros dos seres sociais”
Em última análise, as intervenções de Flávio de
Carvalho revelam, por um lado, a promoção da experiência vivida à
elaboração da arte e, por outro, a consciência de que a mídia destaca-se
como arena de performances públicas e intervenções sociais. Daí o
interesse do artista em comunicar seu trabalho através da mídia de
massa. O esforço de Carvalho para manter um espaço seguro em que se
discutissem seus projetos arquitetônicos foi seguido de novas
reportagens sobre sua Experiência #2. O artista fez uma avaliação
sobre a importância da mídia apenas quando iniciou seus cuidadosos
preparativos para a indumentária de verão e, mais tarde , nos sucessivos
estágios da expedição amazônica. Seu interesse na expedição foi
instigado pela possibilidade de fazer contato com os Xiriana, e o filme
concebido como forma de garantir publicidade ao evento. Esta dedução foi
feita com base no fato de Carvalho não ter produzido nem um rascunho do
roteiro do filme, o que na prática evitava a conexão do real (um diário
filmado da expedição) e o imaginário (apresentação da figura de uma
deusa branca no filme de longa-metragem).
A matéria do trabalho de Flávio de Carvalho é muito
rica e merece ser estudada com maior profundidade. Vários de seus
projetos indicam possibilidades que seriam perseguidas somente mais
tarde por outros artistas. Seus pouco conhecidos selos postais, criados
em 1932, estão entre os primeiros exemplos da arte postal. Em 1951, ele
criou um vestuário cinético-luminoso que sua amiga Zilda Vergueiro usou
ao fantasiar-se de pérola no Carnaval da Bola, organizado pelo Clube dos
Artistas e Amigos das Artes em São Paulo. Como parte do aparato, um
interruptor manual fazia piscar luzes salpicadas por toda a roupa. É
também digna de nota a série de trabalhos criados com tinta fluorescente
em 1970, e exibida em São Paulo e Santos no mesmo ano.
A identificação de aspectos de seus trabalhos com as artes cênicas dos anos 60 solicitam a reinterpretação da Experiência #2 (sua confrontação com os fieis da procissão religiosa) e da sua Experiência #3 (o lançamento de seu vestuário) como um prenúncio de happenings
e performances. Atualmente, a contribuição de Flávio de Carvalho na
arte com base em mídia eletrônica pode ser vista na sua primeira série
de projetos arquitetônicos (discutidos e apresentados em espaço
jornalístico) e em suas experiências (caracterizadas pela importância
atribuída ao evento em si mesmo) com a mídia impressa e televisiva. De
relevância particular, a ênfase na experiência e no envolvimento em
situações interativas nas quais negociava o fluxo de eventos em tempo
real.
Os experimentos de Flávio de Carvalho eram nutridos
por seu interesse em psicanálise e etnologia, dado que estas ciências
representam, de acordo com Foucault “um princípio perpétuo de
inquietação, dúvida e interrogação”xviii
em relação ao conhecimento adquirido. Elas são o que o artista chamou
de “uma fonte da turbulência mental”, que Flávio de Carvalho reconheceu
como sendo crucial à criação artística. Para ele, a renovação artística,
que supostamente desenvolve-se em ciclos, depende de como o artista
apreende as forças criativas primordiais. Como ele afirmou (em
entrevista intitulada “A arte prevê os feitos futuros dos seres
sociais”), “Temos de recuperar nossa plasticidade primitiva para compor
um mundo novo”.xix
Carvalho rejeitou manifestações artísticas que
permaneceram estagnadas em suas formas repetitivas e estereotipadas.
Encontrou soluções em eventos de rua, encontros com tribos nativas,
intervenções na mídia, cultura popular, ciência, rituais não-religiosos
como o Carnaval e muitas outras abordagens não-convencionais. A
trajetória de Carvalho revela uma vida inteira comprometida com a
integração entre a arte e a vida.
____
Reconhecimentos
Editor do projeto Eduardo Kac agradece a Carlos Fadon e Niura Ribeiro por sua assistência em produzir as fotos para este artigo.
Referências e Notas
i Para artista e seu trabalho, ver artigo “Flávio de Carvalho: Modernismo e a Vanguarda em São Paulo, 1927-1939”, A Vanguarda Literária no Brasi, uma
bibliografia e antologia crítica editada por K. David Jackson
[Frankfurt, Germany, and Madrid: Vervuert/Iberoamericana, 1998] pp.
309–322). O catálogo do trabalho de Flávio de Carvalho e a compreensiva
bibliografia pode ser encontrada no segundo volume da minha tese de
Ph.D, Flávio de Carvalho entre a experiencia e a experimentação (São
Paulo: Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, 1994).
Para a biografia do artista com biliografia extensive, ver J. Toledo, Flávio de Carvalho, o comedor de emoções
(São Paulo: Fundação Bienal, 1983), o catálogo de uma exibição
restrospectiva feita sob minha curadoria e de Walter Zanini, com o apoio
dos textos de Newton Freitas, Sérgio Millet, Nicanor Miranda e
Sangrirardi Jr.
ii Abraham Palatnik, declaração ao autor, 10 de junho de 1997.
iii “O Futuro Palácio do Governo Paulista”, Diário da Noite, 30 January 1928; “O Novo Palácio do Governo e o Projecto Modernista”, Diário da Noite, São Paulo, 4 February 1928; “Ainda o Atordoante Projecto ‘Efficácia’”, Diário da Noite, São Paulo, 6 February 1928.
iv Nota
do editor: a implacável busca de carvalho por um espaço na mídia para
promulgar no mundo a força de suas idéias deve, da perspectiva da arte
midiática contemporânea, ser diferenciada das coberturas jornalísticas
usuais. A chave da diferença está no fato de, enquanto a cobertura
representa uma iniciativa de repórteres que interpretam os
acontecimentos segundo sua linha de noticiário, o trabalho de carvalho é
de autoria, intervenção midiática artística designada para disseminar
sua visão vanguardista da arte e da não-arte como na audiência. O
trabalho midiático de Carvalho não reportou fatos externos; era, por si
só, de fato, um significado original. – Eduardo Kac
v Narrativa
baseada na descrição dada por Flávio de Carvalho em seu livro
Experiência #2, realizada sobre uma procissão de Corpus Christi (São
Paulo: Irmãos Ferraz, 1931).
vi Nesta
entrevista, Flávio de Carvalho sugeriu três roupas que poderiam se
encaixar no clima de São Paulo; roupas para o outono ou primavera, e
inverno. Ver Luis Martins, “Flávio de Carvalho homem telúrico: O
agricultor é o trouxa da nação!” Comício , 22 de maio de 1952.
vii Flávio de R. Carvalho, “Nova moda para o novo homem – moda de verão para a cidade”, Diário de S. Paulo, 24 de junho de 1956.
viii “A Moda e o Novo Homem I–XXXIX”, Diário de S. Paulo, 4 March–21 October 1956.
ix “Experiência Social número 3: Flávio de Carvalho surpreende a cidade ao apresentar a indumentária do futuro” Diário de S. Paulo, 19
de outubro de 1956. O artigo anunciou que o artista estava para
apresentar uma prévia de sua roupa para a televisão no mesmo dia.
x Paulo
Autran declarou para o autor, Setembro 1977. É possível que Flávio de
carvalhotenha apresentado sua criação na televisão 1 ano antes. Na
época, ele anunciou a chegada de sua nova roupa no centro de São Paulo, a
mídia reportou uma prévia na TV agendada para o décimo nono dia de
outubro de 1956. Consultar [9] para a transmissão anterior.
xi Nota
do Editor: a intervenção de Carvalho no espaço eletrônico da Televisão é
uma primeira tentativa, marcando uma das primeiras manifestações da
vanguarda artística no contexto televisivo e audiovisual. Vendo de uma
perspectiva histórica, sua performance eletrônica é precedida somente
pela trasmissão espacialista de Lucio Fontana em 1952, realizada em
Milão. Porém, a fita de vídeo só veio a ser comercializada em 1956 e foi
somente em 1959 que foi usada pela primeira vez no Brasil (na TV
Continental, no Rio de Janeiro). Não há nenhum registro em vídeo da
performance de Carvalho. – Eduardo Kac
xii “Flávio de Carvalho por ele mesmo VIII”, Folha de S. Paulo, 21 de Setembro de 1975.
xiii A
primeira referência de peso feita no artigo de Carvalho “Rumo ao
Paraguai III”, Diário de S. Paulo, 15 de Setembro de 1943. Sua
investigação na evolução humana e social continuou durante a comprida
série “Notas para a Reconstrução de um Mundo Perdido I–LXV”, Diário de
S. Paulo, 6 de Janeiro de 1957 – 21 de Setembro de 1958.
xiv Francisco Brasileiro, declaração para J. Toledo [1] p. 462.
xv Não está claro se a história é baseada em fatos reais, mesmo em parte ou integral. Checar Norberto
Esteves, “Esta é a Deusa Branca autêntica que Flávio Carvalho não
encontrou”, Última Hora, 19 Dezembro de 1958. Em seu artigo, o fotógrafo
Norberto Esteves pediu para achar a verdadeira Umbelina Valéria, mas,
de novo, não foi possível atender a seu pedido.
xvi A
reconstrução de eventos da expedição tem base no depoimento de três
diferentes fontes: Flávio de Carvalho; o fotógrafo Norberto Esteves do
jornal Última Hora e Raymond Frajmond, que se juntou ao artista como
cameraman. Todos depoimentos registram uma inimizade entre Flávio de
Carvalho e Tuval Viana, quem encabeçou a expedição SPI. No estágio final
da mesma, depois de diversas discussões, o artista disse que ia buscar
abrigo em um barco e desafiou Viana a um duelo de pistola. Um relato da
expedição foi publicado narevista Time: “Playboy no trabalho”, Time,
Latino Americana edição 72, No. 14 (22 Dezembro 1958) p. 17.
xvii Flávio de Carvalho, A Origem Animal de Deus e o Bailado do Deus Morto (São Paulo: Difel, 1973) p. 55.
xviii Michel Foucault, Les mots et les choses, une archeologie des sciences humaines (Paris: Gallimard, 1966) p. 385.
xix Ver
a entrevista do artista com Daniel de “A arte prevê aquilo que o homem
social faz, Para Todos No. 12 (1–15 Novembro de 1956) p. 5.
Fonte: OUTRAS PALAVRAS
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