PICICA: "Não é de se estranhar que
precisamente no período eleitoral ocorra o maior esvaziamento da massa
crítica à esquerda, com a consequente adesão a alarmismos e polarizações
do campo político partidário"
Os cinco candidatos a serem derrotados nas eleições
Não é de se estranhar que
precisamente no período eleitoral ocorra o maior esvaziamento da massa
crítica à esquerda, com a consequente adesão a alarmismos e polarizações
do campo político partidário. Por Passa Palavra
O grande problema para as lutas sociais
durante os períodos eleitorais é, sem dúvida alguma, o seu esvaziamento.
Nesses períodos, os movimentos sociais saem de cena e o espaço das
disputas políticas é preenchido por outras organizações e interesses.
Pode-se considerar cinco motivos principais para esse esvaziamento: 1) a
necessidade dos militantes envolvidos em campanhas político-partidárias
levarem adiante seus projetos de disputa/conquista do Estado, o que,
diante da impossibilidade de estarem em todos os espaços ao mesmo tempo,
leva-os a optar pelos espaços que consideram mais importantes naquele
momento; 2) boa parte dos envolvidos nas lutas sociais
se vê numa situação em que sua perspectiva fica secundarizada em função
dos interesses envolvidos no pleito, ou então se vê numa situação onde
corre o risco de ter sua luta instrumentalizada, à direita ou à
esquerda, por partidos políticos; 3) o esvaziamento
operado por aqueles que, por não concordarem com a existência do
processo eleitoral, deixam os espaços dos movimentos sociais para
organizar campanhas abstencionistas ou de voto nulo; 4) no
período eleitoral, a burocracia governamental e os políticos ficam
impedidos de negociarem com os movimentos sociais, seja por motivos
legais, seja pela possibilidade de não se perpetuarem nos cargos,
paralisando aqueles que têm por estratégia principal obter ganhos
através do jogo institucional; e 5) o trabalho em
campanhas eleitorais aparece como uma possibilidade de ganhos materiais
imediatos para militantes de uma base social precarizada, mesmo para
aqueles que não assumem compromissos ideológicos com os candidatos que
os contratam.
Também seria possível considerar o
esvaziamento do ponto de vista dos posicionamentos políticos em jogo. A
adesão à lógica de um sistema político que anula a iniciativa direta dos
movimentos em benefício de um corpo dirigente tem efeitos diretos sobre
a moral e a consciência dos próprios movimentos sociais. Os movimentos
tem por base uma negação prática do sistema representativo, pois atuam
na organização e mobilização direta de determinados setores da sociedade
em torno de pautas concretas e tangíveis. Mas essa é outra discussão,
que extrapola o âmbito deste artigo. Vamos privilegiar, aqui, a
discussão em torno das condições materiais de luta, deixando a análise
da mediação entre a consciência dos lutadores e as posições ideológicas
em jogo para outra ocasião.
I. A disputa ideológica dos militantes envolvidos em campanhas político-partidárias
Os mais lúcidos e bem intencionados
enquadrados nesse ponto argumentam que o mais importante seria a disputa
ideológica viabilizada pela disputa eleitoral. Ela possibilitaria que
um maior número de pessoas tivesse contato com perspectivas mais à
esquerda e refletisse sobre as desvantagens de viver numa organização
social capitalista, algo estrategicamente interessante para a esquerda
como um todo. No entanto, essa argumentação parece desconsiderar
qualquer aporte materialista para a abordagem da questão.
Ao considerar o período eleitoral como o
momento privilegiado para a prática da disputa ideológica em detrimento
dos espaços em que se desenvolvem as lutas sociais, este grupo de
militantes se esquece do domínio ideológico exercido pelas classes
dominantes sobre os mais variados espaços sociais onde é gestada a
opinião pública. Tais espaços são concebidos e oferecidos como forma de
dar vazão a opiniões e posicionamentos políticos dissidentes. Mas são as
classes dominantes quem têm os meios necessários para contratar
contra-argumentadores e depois propagá-los o quanto for necessário para
abafar as vozes dos opositores.
Se isso já não fosse grave o bastante,
esses militantes creem implicitamente no princípio de que a disputa
meramente ideológica seria capaz de mudar a opinião de um público mais
amplo. Ora, deveria fazer parte do bê-a-bá de toda a militância de
esquerda a noção de que as opiniões mudam apenas quando há meios sociais
que permitam que opiniões divergentes se desenvolvam. Atualmente isso é
viabilizado pelos movimentos que conseguem de alguma forma organizar as
fissuras ideológicas que se verificam na consciência do público em
geral, provocadas pelo descontentamento ou desilusão com determinados
aspectos das condições de vida.
II. A pressão sobre os candidatos
O
segundo ponto é um problema grave, além de ocorrer recorrentemente. Ao
pretender utilizar o momento eleitoral para fazer pressão sobre os
futuros gestores da máquina estatal, o risco de ser associado a uma
legenda ou de ser acusado de estar fazendo o jogo dos opositores de
determinado candidato é enorme. No entanto, é inegável que esse é um
momento em que a maioria dos políticos não deseja passar a imagem de
intransigente com os dissidentes nem quer ser associado a burburinhos
que fogem ao foco que pretende dar às suas campanhas. O período de
disputa entre futuros gestores do Estado evidencia uma situação de
fragilidade desses políticos. Como o movimento social pode sair desse
impasse?
O mais adequado parece ser o caminho de
não poupar nenhum dos candidatos das pressões, procurando evidenciar que
sua preocupação é com a pauta do movimento e não com a disputa
eleitoral. Evidentemente, alguns candidatos se sairão melhor do que
outros, por conta de suas afinidades com esta ou aquela causa. Porém,
esse é um problema que não deveria dizer respeito ao movimento. Se, por
fim, a vitória seja de um candidato mais permeável às pressões do
movimento, ótimo, mais conveniente. Caso contrário, o importante é não
perder de vista o fato de que é na mobilização do seu corpo social que
reside a força reivindicativa dos movimentos, chave de mudanças sociais.
Os movimentos são, em sua estrutura, parte das forças produtivas da
sociedade que em determinado momento resolve lutar ativamente pela
mudança da situação social em que estão inseridos, deixando de ser
simples peça útil na lógica de exploração.
Por outro lado, o período de eleições
faz crescer — e com toda razão! — a desconfiança geral da população em
relação a qualquer atividade política. Porém, mesmo os movimentos
sociais autônomos encontram aí um entrave para desenvolver suas ações.
Qualquer protesto que se faz nessa época, por exemplo, é logo tachado de
ter “pretexto eleitoral”. As iniciativas de organização de luta nas
periferias são desacreditadas, e se acredita que os movimentos tem
ligação com candidatos. Propostas de mobilização são confundidas, assim,
com promessas eleitorais.
III. O esvaziamento dos espaços dos movimentos sociais
O terceiro aspecto diz respeito a
algumas modalidades de campanha pelo voto nulo que vêm ganhando relativo
espaço na militância de extrema-esquerda nos últimos tempos. Parte
desses grupos entende que o momento eleitoral é de fragilidade dos
gestores e aspirantes a gestores do Estado e passa à ofensiva contra o
próprio sistema eleitoral, denunciando-o como farsa. Farsa porque mesmo
os partidos políticos de esquerda estariam alinhados àqueles que
pretendem gerir a máquina estatal, que, por definição, organiza as
relações capitalistas de produção, seja viabilizando a exploração, seja
contendo os excessos autodestrutivos da dinâmica da mais-valia.
No entanto, alguns desses grupos acabam
por aderir à própria lógica que criticam e, ao invés de aproveitarem o
momento para o avanço das pautas concretas que fortalecem o corpo social
dos movimentos sociais, acabam por esvaziar os espaços de luta, em prol
da disputa ideológica em torno do significado do processo eleitoral.
Não é que o ponto de partida crítico esteja completamente equivocado,
tampouco que todos os que optam pelo voto nulo como estratégia cometam
esse erro, mas muitas organizações acabam por reproduzir a mesma lógica
de apassivamento das lutas sociais ao abandonarem os espaços de luta,
isolando esses espaços do restante do campo político.
IV. Preparação para o momento pós-eleitoral
O
quarto motivo afeta com maior força os movimentos em estágio mais
avançado de burocratização, geralmente aqueles que já não têm mais base
social e se resumem a um capital simbólico acumulado por lutas passadas,
porém em franca depreciação. Sem outras estratégias de pressão contra
os gestores e geralmente já totalmente inseridos no jogo partidário, o
período eleitoral se resume a apostas em futuros vencedores e
renegociações preparando o momento pós-eleitoral. Diferentemente dos
três primeiros motivos, não há verniz ideológico em jogo, somente
fisiologismo. Entretanto é o momento do tudo ou nada, pois, pertencentes
a movimentos em decadência, os seus dirigentes têm nessa janela de
oportunidade a chance de se embricarem de vez na burocracia estatal.
Suas habilidades gestoriais desenvolvidas no período de ascensão das
lutas são postas no currículo e, se não for agora, nada garante que em
momentos futuros haja alguém interessado em usar da sigla novamente.
V. Eleições e a exploração da mais-valia
Por fim, não podemos deixar de
considerar que boa parte das lutas sociais são organizadas e
disseminadas por um setor mais precarizado dos trabalhadores. Um setor
que se caracteriza pela instabilidade e incerteza das fontes de renda,
mesmo em períodos de baixa taxa de desemprego, como atualmente. O
processo eleitoral, por outro lado, exige a cada ano um volume maior de
recursos para garantir a eleição ou reeleição dos candidatos da ordem.
Esses candidatos atuam em várias frentes para angariar os votos
necessários, sendo que a maior parte dos eleitores se encontra — e não
poderia ser diferente — nos extratos sociais dos militantes do circuito
da mais-valia absoluta. Esses militantes, por dominarem as tecnologias
de mobilização nos seus bairros e locais de trabalho, por terem
desenvolvido o poder da argumentação e da disputa política, por
conhecerem o território onde se localizam e por terem uma vasta rede de
contatos, se convertem em trabalhadores cobiçados pelos comitês
políticos. Assim, deixam de ser trabalhadores sub-qualificados e,
somente neste período e somente para esta atividade laboral, passam para
o circuito da mais-valia relativa. O período eleitoral dura entre 2 e 3
meses, exigindo uma carga de trabalho intensa e extensa, que em geral
impede que esses militantes — agora atuando como trabalhadores da
política partidária — sigam com seus compromissos de luta. Contudo, não
só os militantes mais qualificados são contratados. Há trabalho para as
mais diversas tarefas: panfletar, distribuir cavaletes, segurar faixas,
deflagrar bandeiras, trabalhos de motoristas e outros tantos. Assim o
trabalho eleitoral acaba por também empregar outro tipo de pessoas
ligadas às lutas sociais.
Aqui não estamos falando das lideranças
comunitárias já cooptadas. Essas lideranças estão o tempo todo, seja
eleições ou não, negociando sua capacidade de mobilização. Alguns
políticos chegam a tabelar o valor para lideranças desse tipo e aqueles
que oferecem mais acabam levando o apoio. Independentemente de estes
fazerem lutas ou não em períodos não eleitorais, eles já mercantilizaram
por completo sua atuação política e transformam em dinheiro os votos
que conseguem somar. Precisam monopolizar o território ou
oligopolizá-lo, através de hierarquias relativamente estáveis criadas
com outras lideranças do mesmo tipo. É nesse aspecto que mais se
diferenciam daqueles que animam as lutas sociais. Apesar do limite tênue
que separa esse tipo de liderança do militante comprometido com as
lutas, e da passagem para o outro lado ser frequente, o militante
comprometido é, de fato, um trabalhador submetido a uma relação de
trabalho que não lhe permite controle sobre o processo produtivo,
tornando-se descartável assim que é entregue a mercadoria. Enquanto a
eleição o desmobiliza, retirando-o de seu trabalho de base cotidiano,
para a liderança cooptada a eleição é o clímax da sua atividade.
***
Por
todos esses motivos, não é de se estranhar que precisamente no período
eleitoral ocorra o maior esvaziamento da massa crítica à esquerda, com a
consequente adesão a alarmismos e polarizações do campo político
partidário. E não é raro que, nessa tomada de posição na arena
eleitoral, abandone-se qualquer tipo de coerência em relação ao período
anterior, aderindo ao “jogo sujo” dos insultos e das críticas
moralistas. Se fôssemos ser consequentes, esse seria o momento de botar
todas as redes de solidariedade e capacidade material em prol do avanço
das lutas sociais. No entanto, é o avesso disso que ocorre e aqueles que
insistem em lutar nesse período são relegados a uma situação de maior
vulnerabilidade, já que ficam abandonados à direita pelos companheiros e
apoiadores. A consequência óbvia é que o processo eleitoral e sua
fisiologia própria terminam ocupando todos os espaços sociais onde se
faz política. Essa situação, porém, não é mera consequência da
disposição da sociedade nos períodos eleitorais, mas algo alimentado e
reforçado mesmo por aqueles que se pretendem seus críticos, uma situação
que deveria forçar a reflexão de todos os que acreditam estar alinhados
com as lutas sociais.
Por outro lado, se há um esvaziamento no
período eleitoral, nesse vazio há uma oportunidade. Conforme as
organizações burocráticas voltam seus esforços ao jogo eleitoral, deixam
um possível terreno para a construção de lutas autônomas. Se forem
habilidosos, os movimentos podem reverter o cenário de desmobilização a
seu favor. Se a eleição aflora entre grande parte da população uma
rejeição ao sistema político, está aí uma brecha para os movimentos de
base não só desenvolverem suas lutas, como também aprofundarem seu
debate. Criticando abertamente a lógica eleitoral e a democracia
burguesa, podem envolver em lutas concretas trabalhadores desconfiados
da política, passando do desânimo à ação. Aliás, não estaria aí — muito
mais do que nos shows eleitorais — uma estratégia capaz de
criar laços de solidariedade entre os trabalhadores mais precarizados e,
assim, solapar a base material do tão alardeado conservadorismo?
Imagens do pugilista Muhammad Ali
Fonte: Passa Palavra
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