PICICA: "Spinoza é um filósofo que, talvez como Rubens na
mesma época, vai investigar como nos inscrevemos nessas relações e como
podemos construir outras, associações que possam aumentar nossa potência
de agir e de viver, segundo tal ou tal atributo. Os modos, do lado dos
corpos, frequentemente se devoram ou, ao contrário, encontrando o estilo
que corresponde à sua liberação, elevam-se para a eternidade. Rubens
bem compreende, ele também, que na elevação da cruz os indivíduos se
juntam para erguê-la, estando o Cristo no cimo desse bando. Nada indica,
entretanto, que esse esforço comum possa elevá-los a alguma coisa
maior: eles estão como que comprimidos uns contra os outros sem
verdadeira solução, o Cristo estando já morto e não prometendo nenhuma
eternidade, oscilando sobre a madeira e tomado pela gravidade que lhe
rasga as mãos. Mas há outros quadros de Rubens onde essas composições se
desenrolam sobre um devir comum, encontrando uma velocidade de rotação
apropriada."
Por que é preciso ler a Ética de Spinoza aceleradamente?
Por Jean-Clet Martin | Trad.: Rodrigo Lucheta
Por que é preciso ler a “Ética” de Spinoza aceleradamente?
Não podemos ler a Ética com lupa,
acentuando o realismo de cada recorte, de cada seção. Isso seria como
uma fotografia, aproximada de maneira molecular e por granulações. A Ética é um livro de velocidade. Sua leitura, como na geometria, deve ser veloz, quase instantânea. Isso porque é preciso percorrer a substância, os atributos e os modos em um mesmo impulso, sobre a mesma placa ou no mesmo plano. Desacelerar essa aproximação seria como ouvir um disco arranhado. Não há razão para separar a substância dos modos,
mesmo se sua compreensão não é a mesma. Os modos não refletem toda a
natureza, sua extensão é finita, limitada e granulosa num certo sentido
que é preciso varrer pela velocidade. Pois que é preciso tomar o finito e
o infinito em conjunto, na mesma aceleração, como num disco de 78
rotações. Dirão que não se trata da mesma coisa: a natureza, na condição
de naturante, estava aí, bem antes que o modo singular que eu encarno, interrogando naquela as ondas, as modulações. Ela, efetivamente, é “aquilo cuja essência envolve a existência”, no ponto em que Spinoza dirá, começando por aí, que essa substância natural é “causa de si”. O que quer dizer que, diferentemente dos modos, a substância
não precisa de nada outro que ela mesma para existir e, neste sentido,
ela corresponde à definição clássica de Deus. De Deus não sabemos
absolutamente falar a não ser que é incriado, tal como a matéria é
eterna. Deus, essa função que nos permite nomear a natureza, não
está por isto fora da natureza, ela antes é o que nos permite dizer que a
natureza é infinita, incriada, etc.
Se por todas essas razões Spinoza inicia
pela definição da substância como natureza, nela mesma incriada, isto
não quer dizer, entretanto, que seja necessário separar a substância dos
acontecimentos que vêm variá-la. É o preço da imanência. Ela implica
que não podemos afirmar uma substância antes e modos depois. O finito se
distingue do infinito segundo um ponto de vista, de maneira lógica, mas
essas distinções não são de maneira alguma reais. As distinções lógicas
não determinam ponto, parada, falha na existência que terá, no entanto,
inumeráveis entroncamentos (atributos). Seria como se pudéssemos falar
da pelagem do tigre considerando que ele possa existir sem suas manchas.
Não existe substância sem modos, mesmo que estes últimos não existam
por si. Os modos certamente são, cada um, limitados por outros. Veja o
horrível quadro de Rubens… Você e eu fomos engendrados. Nós tivemos
necessidade de outros modos para existir e estes podem da mesma maneira
nos destruir. Isto porque toda natureza, toda substância natural não
pode ser considerada como uma existência polida, neutra, sem modos. Ela é
imediatamente percorrida por ondas, modulações, dobras que se sucedem a
uma velocidade louca. E de uma certa maneira, as únicas coisas que
existem verdadeiramente são modos, mais fortemente que os atributos que
formam as tendências, as redes. As grandes redes do real não são tomadas
em uma espécie de realismo abstrato. É a primeira armadilha que o
leitor da Ética deve evitar. É preciso ler o conjunto das definições que abrem o livro I da Ética. Então somos obrigados a partir da consideração do que existe, a saber, dos modos que vêm modular a substância, repicando e modificando incessantemente o tecido da natureza, como que para proibir todo fim, todo julgamento final.
Coloca-se agora a questão: “o que são os modos” com os quais Spinoza organiza a totalidade das relações na Ética? Os modos são modalidades ou modificações. Eles têm na filosofia de Spinoza o lugar do devir. Pode-se dizer ainda “formas”,
maneiras, como em pintura quando a tela trata, mais que de um
caractere, de uma maneira. Vocês têm por exemplo Rubens, que pinta A elevação da cruz.
Ele a fará colocando em relação um punhado de homens que sustentam o
Cristo, agrupados segundo um gesto intenso, um mesmo esforço (diz-se Conatus em latim), esforço sobre-humano que denota um maneirismo especial. Tenho vontade de dizer um Ethos, para fazer manifestar-se o título da Ética, uma escolha que Spinoza não tem o menor interesse de justificar. Esse ethos um
pintor deve sempre levar em conta quando realiza um quadro. Talvez mais
que o filósofo que navega nas definições e nos rigores da logica.
Por isso retorno a Rubens, ao seu quadro
de uma única pátina. Temos aí uma elevação da cruz. Há diversos
indivíduos agrupados por uma força comum (esforço), uma combinação que
define tal ser relacionado a outros seres por gestos, ideias, um
complexo de significações, afecções, etc. No caso de Rubens, os homens
estão extenuados, com uma cruz muito pesada a segurar. Mas às vezes,
felizmente, mais leve, como tecidos. Sem dúvida os modos
vestimentares, eles mesmos, estão também nesta forma de expressão. Mas o
que me interessa particularmente nesta palavra é a ideia plástica de
modulação que Spinoza chama de “modos”. Sou primeiramente uma
modulação da natureza, como uma dobra ou uma onda sobre o mar: um ser
muito limitado, finito, progressivamente posto em relação com outros que
se devoram, como os quadrados sobre a faixa de uma platina, que se
apagam retornando. Mas para quem sabe ver, isto é inteiramente Rubens,
que procede por grupos, por matilhas, por agenciamentos larvares.
Então, é verdade, em certos casos isso nos destrói, somos esmagados pela tempestade sem encontrar o modo, o
modo de nos furtar. Spinoza é um filósofo que, talvez como Rubens na
mesma época, vai investigar como nos inscrevemos nessas relações e como
podemos construir outras, associações que possam aumentar nossa potência
de agir e de viver, segundo tal ou tal atributo. Os modos, do lado dos
corpos, frequentemente se devoram ou, ao contrário, encontrando o estilo
que corresponde à sua liberação, elevam-se para a eternidade. Rubens
bem compreende, ele também, que na elevação da cruz os indivíduos se
juntam para erguê-la, estando o Cristo no cimo desse bando. Nada indica,
entretanto, que esse esforço comum possa elevá-los a alguma coisa
maior: eles estão como que comprimidos uns contra os outros sem
verdadeira solução, o Cristo estando já morto e não prometendo nenhuma
eternidade, oscilando sobre a madeira e tomado pela gravidade que lhe
rasga as mãos. Mas há outros quadros de Rubens onde essas composições se
desenrolam sobre um devir comum, encontrando uma velocidade de rotação
apropriada.
Por exemplo, A festa campestre dá a
Rubens a ocasião de compor, de modular os indivíduos segundo uma figura
superior, uma sarabanda que forma um grupo de alegria cada vez mais
irradiante.
Há concerto aí, concertação alcançada,
fusão com os elementos do cosmos. Também, quando olhamos esta maneira
nova de se juntar, de fazer sarabanda, esta afecção compõe um fio, um
encordoamento cuja elevação nos faz tocar uma substância mais ampla que
meu corpo, e passar no mundo de um outro modo, nômade, forte, potente,
como que gradualmente ouvindo subir um hino à eternidade. Mas aí nós já
entramos, sem perceber, no movimento mais profundo de Spinoza. E um
outro pintor vai poder levar adiante a qualificação desse gênero de
conhecimento: a transparência de Vermeer, outro contemporâneo de
Spinoza. Nos voltamos aqui para um novo plano, aos modos depurados,
quase como ideias, movimentos suavizados – uma óptica do pensamento,
uma visão calculada pela lente. Foi neste momento que eu mais me detive
no meu Breviário da eternidade, que divisa noções comuns. Elas são comuns a Vermeer e a Spinoza. A sequência Rubens eu abordei no meu Van Gogh, no
qual me permito desenvolvê-la; ela toca mais a servidão, o momento da
servidão no livro de Spinoza, quando os corpos também se devoram.
Partir dos modos finitos e procurar os
atributos segundo os quais eles podem se agrupar para formar uma
modulação na substância, uma tal análise me parece constituir o projeto
da Ética que, relembro, concerne à salvação. Nela mesma, a palavra “Ética”,
que Spinoza não se sente obrigado a justificar, nada mais faz do que
nos lembrar essa situação modal. O livro de Spinoza é bem uma Ética e
como toda ética ela parte dos modos, dos grupos larvares que Rubens
ilustra da melhor maneira possível. Essa situação não podia ser a de
Aristóteles quando ele compõe uma Ética a Nicômaco ou ainda uma Ética a Eudemo. Estamos aí diante de um caso, de um éthos ou de um lugar, para retomar o vocabulário da Física. Uma
questão de topologia e mesmo de etologia. Mas em casos isolados, que
Aristóteles considera ainda sem a velocidade, o movimento de uma leitura
hiper-acelerada, puxada por uma geometria que eleva larvas ao plano
sideral. Essa topologia dos modos de existência composta é um traço que
me parece sobressair da leitura atual de Spinoza na França, notadamente
no Deleuze de Mil Platôs.
Fonte: IntensidadeZ
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