PICICA: "Nesse artigo, falamos de eleições e representação e de nossa posição
em relação ao próximo pleito eleitoral de 5 de outubro. O que não
significa acreditar que as eleições sejam um mecanismo plenamente
democrático nem que elas possam determinar alguma mudança expressiva do
país. Votar não significa nem acreditar na democracia representativa,
nem esperar que a mudança venha do voto. Acreditamos ainda menos nos
partidos (todos), na representação e, por consequência, nos “programas”
que defendem, isso quando têm um programa, pois a maioria dos partidos
hoje sequer se dá mais ao trabalho de publicar um programa.
Mas, a descrença nos mecanismos de reprodução (eleitoral) do poder
não significa que as eleições e seus desfechos sejam secundários. Se
assim fosse, os defensores do boicote (ou não-voto) não multiplicariam
os esforços de explicar as razões e as necessidades do “não voto”. Se
assim fosse, países como a França ou os Estados Unidos, onde o “não
voto” atinge – faz tempo – patamares de mais de 50%, estariam em
situação revolucionária: o que não é o caso, pelo contrário, na França
assistimos à inquietante emergência da direita fascista e xenófoba. Nós
acreditamos que o mais importante é pensar ou olhar às eleições do ponto
de vista das lutas."
As eleições de outubro: entre o consenso e a brecha democrática
03/10/2014
Por Alexandre M. e G. Cocco
Por Alexandre F. Mendes e Giuseppe Cocco
Contra o consenso autoritário: a possibilidade Marina!
–
Voto e não-voto
Nesse artigo, falamos de eleições e representação e de nossa posição em relação ao próximo pleito eleitoral de 5 de outubro. O que não significa acreditar que as eleições sejam um mecanismo plenamente democrático nem que elas possam determinar alguma mudança expressiva do país. Votar não significa nem acreditar na democracia representativa, nem esperar que a mudança venha do voto. Acreditamos ainda menos nos partidos (todos), na representação e, por consequência, nos “programas” que defendem, isso quando têm um programa, pois a maioria dos partidos hoje sequer se dá mais ao trabalho de publicar um programa.
Mas, a descrença nos mecanismos de reprodução (eleitoral) do poder não significa que as eleições e seus desfechos sejam secundários. Se assim fosse, os defensores do boicote (ou não-voto) não multiplicariam os esforços de explicar as razões e as necessidades do “não voto”. Se assim fosse, países como a França ou os Estados Unidos, onde o “não voto” atinge – faz tempo – patamares de mais de 50%, estariam em situação revolucionária: o que não é o caso, pelo contrário, na França assistimos à inquietante emergência da direita fascista e xenófoba. Nós acreditamos que o mais importante é pensar ou olhar às eleições do ponto de vista das lutas.
No nosso caso, já passamos pela experiência de sair de um pleito eleitoral (em 2010, por exemplo) para imediatamente entrar em conflito com um poder que – em parte – tínhamos apoiado. Possivelmente, foi um erro apoiar Dilma no segundo turno de 2010. Mas achamos que, antes, o que interessa é não ficar preso em seu voto e, nesse sentido, sentimos a nossa posição como complementar daquela do não voto: compartilhamos com ele a comunidade das lutas! Mas ainda assim, temos nossa diferença e cremos importante nos posicionarmos também em relação aos espaços que o voto pode veicular.
A crise da representação não significa “fim” da representação. Significa, sim, que a efetividade da representação é, por um lado, mais nua (menos legítima) e, pelo outro, mais aberta a processos constituintes de inovação ou regressão. Não há poder que se segure sem ligar-se a alguma dimensão constituinte e, ao mesmo tempo, não há processo constituinte que não tenha que lidar com alguma forma de representação (entendida como “instituição”). Isso não significa dizer que haja equivalência – ou dialética – entre essas duas dimensões, pois a participação é primeira, ou seja, ela é constituinte: onde “constituinte” não significa a-representativo (an-árquico), mas que os mecanismos de representação estão internos (imanentes) ao momento de sua definição.
As eleições são e devem ser objeto de crítica e ceticismo por essa (sem contar a corrupção) razão. Mas dizer que nunca tenhamos que “acreditar” pra valer nelas não significa que as eleições sejam sempre indiferentes. Em primeiro lugar, porque poderia ser bem pior se sequer houvesse essa formalidade. Em segundo lugar, porque essa “formalidade” é uma mediação que o poder teve que conceder sob a pressão de um sem-número de lutas e revoluções e, por isso, ela necessariamente contém (mais ou menos) contradições, brechas, aberturas. Em terceiro lugar, porque somente uma postura idealista pode pensar que as lutas por democracia podem resolver-se, de pronto, entre o inferno da “sociedade burguesa” e o paraíso de uma sociedade sem instituições e supostamente harmoniosa. Em quarto lugar, porque o “povo”, os “trabalhadores”, os “pobres” lutam de muitas maneiras, inclusive trapaceando: recusando o trabalho quando estão no trabalho; fazendo greve depois de ter aceito o emprego; votando num candidato para votar contra um outro ou não reconhecendo o resultado eleitoral de que participaram. É nessa perspectiva, ou seja, do ponto de vista das brechas constituintes ,que nas eleições se apresentam (ou não), que elaboramos estas notas sobre eleições de outubro.
O retorno do consenso autoritário
Em inúmeras oportunidades, em 2013, escrevemos sobre a emergência de um novo ciclo de lutas cujo impacto (entre outros) era romper com o consenso autoritário que se formou no Brasil, em especial no Rio de Janeiro, a partir de projetos definidos de cima para baixo, entre eles, a realização, sem qualquer diálogo, de megaeventos e grandes obras. O “rolo compressor” se confirmou em milhares de remoções e despejos, intervenções nos órgãos públicos, privatizações de espaços públicos e de bens comuns, interrupção total da reforma agrária, retrocesso no reconhecimento dos direitos indígenas, na “pacificação” autoritária nas favelas etc.
Desde então, do ponto de vista do poder constituído, houve tentativas diárias de recuperar o consenso, a partir, principalmente, de um novo alinhamento no qual a grande mídia teve um papel fundamental, conformado para realizar perseguições políticas, criminalizações, supressão do direito de reunião, opinião e manifestação. Esse alinhamento teve dois desafios urgentes: a realização da Copa do Mundo em um ambiente “pacificado”; a preparação do terreno para as eleições e a manutenção dos representantes do rolo compressor nos cargos políticos. Em médio prazo, ele vem sendo preparado para impedir qualquer forma de questionamento e contestação e interromper todos os efeitos das jornadas de 2013. O governo Dilma comemora o #naovaiterprotesto e atua nas três “camadas”.
Na outra ponta, as instituições públicas, com destaque para o Poder Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública, são irrigadas com vultosos aumentos de salários e criação de auxílios exorbitantes a autoridades já muito bem remuneradas (educação, moradia etc.) que ultrapassam, de longe, o teto definido pela constituição brasileira. A relativa autonomia dessas instituições, premissa básica para a defesa dos pobres contra o poder público e privado, para o controle social dos projetos, contratos e empreendimentos, para a investigação e julgamento das condutas abusivas, é solapada completamente pelo pacto elitista entre executivo, parlamento e sistema de justiça (Defensoria, Ministério Público, Poder Judiciário etc.).
Precisamos admitir que a governabilidade se reinventou a partir do final de 2013, conseguindo retomar o terreno perdido e alavancar novas estratégias para recompor e sobretudo impor o consenso rompido pelas jornadas de junho. A possibilidade de, nos próximos dois anos, termos o alinhamento Dilma-Pezão-Paes-Olimpíadas, enquanto ativistas são julgados na justiça criminal, demonstra que a estratégia não está longe de um provisório “sucesso”. Nesse sentido, a busca por novas aberturas democráticas é fundamental. Nenhum movimento avança como dado natural, é preciso experimentar, ensaiar, errar e tentar constituir caminhos no campo real de possibilidades existentes.
O consenso e a “desconstrução” da candidatura de Marina
No terreno limitado das possibilidades eleitorais, enxergamos também o problema da constituição de aberturas que deverão ser levadas a sério politicamente. Vejamos como o consenso tentou atingir Marina Silva, a partir de duas estratégias: (a) primeiro, um projeto de lei votado em regime de urgência que criava restrições e impedimentos aos novos partidos (precisou que o conservador Gilmar Mendes dissesse o óbvio: o projeto violava cláusulas pétreas e direitos políticos, em especial o pluripartidarismo); (b) o bloqueio cartorial da formação do partido de Marina, através de uma inédita rejeição de centenas de milhares de assinaturas, principalmente, no ABC paulista, em São Paulo e em Brasília. Enquanto um partido com considerável legitimidade democrática era afastado da disputa eleitoral, os partidos de aluguel, criados em 2014, não tiveram qualquer dificuldade com suas assinaturas.
Portanto, a chamada “desconstrução” da candidatura de Marina é estratégia antiga. A despeito de qualquer opinião política que se tenha sobre ela e a REDE, é preciso admitir que o rolo compressor do consenso utilizado contra as jornadas foi também acionado contra sua candidatura, com a utilização de métodos flagrantemente antidemocráticos e contrários ao (básico) pluralismo na representação política. A conclusão já sabemos: Marina não forma o seu partido e é acolhida por um partido estranho, tentando ocupar algum espaço até 2018.
A situação estava bem “controlada” quando ocorre o inesperado: a queda do avião de Campos. A tragédia abriu o pleito a um rumo imprevisto: colocando em crise o consenso forjado e a polarização entre PT – PSDB que, por sinal, é cada vez mais falsa e sem sentido. Um elemento estranho retorna e precisa ser novamente afastado…
Eis que entramos na segunda fase da “desconstrução”: o momento moral. A possibilidade de Marina da Silva ganhar as eleições presidenciais desencadeou uma série de reações furiosas no campo do consenso, que passou a contar também com diferentes partidos da oposição de esquerda. Montou-se uma cruzada moral, uma “marinafobia”, um estranho fundamentalismo (ausência de qualquer esforço argumentativo), destinado a exorcizar uma candidatura que já tinha sido “resolvida” por meio do primeiro veto. A internet é inundada com publicações preconceituosas e difamatórias, numa das campanhas mais sórdidas já vista na esquerda brasileira, e qualquer comentário desejoso de (apenas) discutir a viabilidade de Marina é imediatamente respondido com desqualificação total, dispensando qualquer argumento: “não acredito!”; “que decepção”, “até você?”; “você está arruinado na esquerda!”; “tá de sacanagem!”; “é sério?”; “tá se queimando amigo”; “virou direita?” etc.
No entanto, ultrapassado o susto com as numerosas (e sem criatividade) interjeições, fica claro que a ofensiva supostamente de “esquerda” contra Marina é improcedente. Inicialmente, por razões pontuais:
1) Todas as críticas movidas contra Marina podem ser dirigidas ao PT e ao governo, sem qualquer exagero. O que o governo tem a dizer sobre o financiamento de sua campanha, a aliança com a direita e todo o tipo de conservadorismo político, a pauta de direitos humanos, a aliança umbilical com o agronegócio, a autonomia (real e intocável) do Banco Central nos últimos 12 anos, a presença de economistas neoliberais e os recuos em temas LGBTs e legalização do aborto?
2) Aceitar as argumentações e os ataques mobilizados pelo governismo contra Marina significaria renegar as razões que nos permitiram apoiar o governo Lula, como o fizemos em 2005, 2006 e até em 2010. Apoiamos o governo Lula – escrevendo a animando vários abaixo assinados – exatamente porque não demos a menor importância aos compromissos e ambiguidades do governo. Nunca avaliamos o governo Lula com base em suas políticas macroeconômicas, mas por suas brechas democráticas (existente até hoje, inclusive, em alguns mandatos parlamentares do PT). Da mesma forma, não acreditamos que os “programas” eleitorais tenham muita importância (se tivessem, ninguém deveria votar na Dilma, pois o PT não realizou seu programa e Dilma não tem programa algum…).
3) Recentemente, o campo governista deixou bem claro que prefere dar sobrevida ao Aécio e ao PSDB, a enfrentar Marina, ex-senadora petista e ex-ministra do governo Lula, no segundo turno. O combate do governo à direita e ao PSDB é relativo: ele prefere perpetuar e fortalecer os tucanos para não confrontar uma alternativa real e ameaçadora à cômoda dicotomia.
O fundamentalismo do consenso e a brecha efetiva
Ultrapassando as razões pontuais, chegamos ao coração do argumento: o fundamentalismo do consenso, para se manter no poder, é capaz de atingir não apenas direitos políticos básicos, mas todos os tipos de organização política que lute para construir brechas efetivas de democracia.
Então, chegamos logo nos pontos centrais:
1) a mesma máquina política e de propaganda que “desconstrói” (legal e moralmente) a candidatura de Marina foi utilizada contra os militantes de junho e será utilizada contra qualquer pessoa, movimento ou mobilização que tente enfrentar o consenso em prol da criação de dispositivos políticos de radicalização da democracia brasileira.
2) O governo federal do PT não é mais alternativa – as brechas foram fechadas – e, ao mesmo tempo, ele tenta impedir que qualquer alternativa irrompa por fora de seus acordos e pactos. Dos “jovens hipnotizados de junho, protofascistas e coxinhas” ao “Collor de saias” (o verdadeiro Collor não compõe o governo?), a difamação generalizada é o efeito de superfície do encerramento de qualquer possibilidade democrática que se constitua sem o aval do governo. Desse ponto de vista, a candidatura de Dilma é absolutamente reacionária e antipolítica (existe política sem construção de liberdade real?).
É reacionária e antipolítica porque o consenso enxerga os pobres como “nova classe média” que consome, mas não como classe que luta radicalmente por melhores condições (urbanas) de vida; o consenso gosta dos jovens e estudantes se estiverem amarrados em suas organizações “de base” (aceitando acriticamente a pauta governista), mas não quando eles se organizam de forma potente e autônoma, passando por fora dos arranjos do “pacto de governabilidade”; o consenso tolera os índios desde que eles aceitem remoções para o Minha Casa, Minha Vida, ou sirvam de protetores temporários do estoque de “recursos estratégicos”; o consenso gosta da cultura não como multiplicação de diferentes e afirmativas formas de vida, mas como uma propriedade de grandes autores ou como “economia criativa” no interior do desenvolvimentismo; o consenso não gosta de nenhuma pauta de direitos humanos – antes de perguntar sobre a vida, pergunta sobre o PIB e as possibilidades de acumulação.
O consenso que sustenta o atual governo nada mais é que o Fundamentalismo do Objetivo – a antipolítica por excelência. Ele encontrou em junho de 2013, uma contestação efetiva:
Amarildo e os dois corpos do Rei
A primeira ruptura, a abertura potente de uma brecha democrática no poder, refere-se ao ciclo de movimento que começou em junho de 2013 com as lutas pelos 20 centavos, e se desdobrou num levante da multidão do trabalho metropolitano por democracia real já e acabou multiplicando as ocupações horizontais de Câmaras e Parlamentos. A multidão do trabalho metropolitano mostrou-se capaz de transformar sua autovalorização em momentos reais de autonomia, indicando e experimentando o horizonte constituinte da construção de novas instituições democráticas. É no Rio de Janeiro que o movimento chegou a seus mais altos níveis de propagação e é no Rio que o poder respondeu de maneira feroz, com a chacina da Maré, onde 10 a 13 moradores foram assassinados pelo BOPE, alguns deles degolados – exatamente como fazem os islamistas fascistas do Estado Islâmico (ISIS) na Síria e no Iraque, só que a PM não coloca as imagens na internet e os drones norte-americanos não são chamados a intervir – sem que o Ministério da Justiça se manifestasse e ainda menos a Secretaria de Direitos Humanos do Estado do Rio (as duas sendo pastas do PT).
É com essa ferocidade que o poder reafirmava o conteúdo real de sua efetividade: no Brasil, os pobres não tem o direito de fazer política, eles não participam do jogo democrático. Os pobres não podem fazer política muito simplesmente porque são mortos, mortos com base numa guerra às drogas que passou a ser chamada de pacificação quando o Exercito foi chamado a ocupar favelas do Rio. Mas o movimento persistiu, manifestou diariamente pelas ruas da cidade, usou mascaras para resistir à repressão e conseguiu desmascarar o poder que – em nome da paz – torturou, matou e fez desaparecer o pedreiro favelado da Rocinha, Amarildo. Assim, os pobres da Rocinha desceram manifestar no Leblon, cobrando, eles também, democracia real já: ou seja o direito de planejar as prioridades de investimento na favela; não os teleféricos turísticos, mas o saneamento básico.
A brecha democrática é essa linha de fuga para fora da guerra que regula os pobres, lhe negando o direito de fazer política: se trata de uma verdadeira chance para uma verdadeira paz.
Como vimos, hoje o poder está tentando fechar a brecha. Mais uma vez, o Rio de Janeiro está na frente: 73 coletivos são ameaçados num inquérito judicial e com eles advogados e mídia independente ao passo que outros inquéritos parecem estar rolando. A hipocrisia do governo federal é escancarada: por um lado, lança um decreto onde a participação passa depender de decisões governativas; por outro, coordena ativamente a repressão que coloca sub suspeita toda forma de efetiva participação política e cultural na cidade do Rio.
Enquanto o “rei e a rainha da soja” (Eraí Maiggi e Katia Abreu) dizem ter perdido completamente o medo do governo do PT, cada vez mais, qualquer pessoa que tente lutar de forma criativa e autônoma recebe dezenas de recados e de ações intimidatórias. Na campanha eleitoral, espalha-se o medo e o assédio moral como paralisia conservadora, única fórmula encontrada para governar as revoltas, as pequenas fugas e dissidências. A novidade é que nessa tarefa entraram boa parte da oposição de esquerda ao governo e até dos ativistas de junho – o debate está interditado: Cabral morreu politicamente? Viva o Pezão ! O Rei pode até morrer, mas a monarquia (o tal do “consenso autoritário”), nunca morre!
Enquanto isso, o corpo de Amarildo nunca mais apareceu e continua desaparecendo, pois o poder do medo é organizado sobre uma guerra que só mesmo os intelectuais “progressistas” não temem. Uma guerra sem fim! Uma guerra que a política do medo propagada por esses intelectuais apenas fará persistir: já Maquiavel dizia que o medo sozinho “não é uma solução” pois o poder precisa “repeti-lo continuamente” e assim “o mal que eu faço ao outro é o mal que eu faço a mim mesmo!”. Eis o cenário de violência civil generalizada no qual vivemos, perpetuado pelos interesses de perpetuação de uma coalizão de poder.
O segundo turno e a brecha eleitoral
Além da brecha efetiva – que é preciso manter como permanente poder constituinte – o segundo turno trará (caso a dicotomia seja rompida, esperamos que sim!) a pergunta sobre as possibilidades reais de ocupação (como ação política) da candidatura de Marina. Aqui, evidentemente, partimos da premissa de que Dilma, com seu legado de “segurança” e “acumulação cega”, não é opção para quem luta e quer lutar. Pensamos, em primeiro lugar, da seguinte forma:
a) O primeiro movimento, em busca de brechas eleitorais, consiste em recolocar a possibilidade de debater Marina. Essa possibilidade foi interditada, inclusive, pelo campo de esquerda crítico ao governo. Votará, esse campo, em Dilma? Por que o voto em Dilma seria de esquerda? O que ganharemos ao olhar com mais generosidade para a campanha de Marina?
b) Num segundo movimento, provavelmente, perceberemos que muitos fantasmas serão afastados: Marina é militante reconhecida e, há pouco tempo, fazia parte do governo Lula, onde já enfrentava o fundamentalismo da objetividade. Em seus discursos e formulações políticas percebemos o desejo sólido de manter todas as conquistas e programas sociais dos últimos anos – em todos os campos – e fazer as mudanças necessárias na direção de um aprofundamento. Além disso, a campanha de Marina reconhece a importância da auto-organização político-social e defende a não criminalização dos tradicionais e dos novos movimentos sociais. Tudo isso precisa ser confirmado politicamente, mas não é exagero ou pensamento-desejante afirmar que há caminhos para a continuidade das bandeiras históricas do PT na candidatura de Marina – como prova o diálogo constante de vários bons quadros da esquerda com a candidata (agora escondidos pela disciplina partidária e pela patrulha dos militantes).
Por outro lado, é preciso garantir muito mais. Os sentidos da campanha de Marina não estão dados. Nesse sentido, algumas questões devem ser colocadas:
1) Sobre o caráter da produção de direitos. A campanha de Marina deve ser muito mais clara com relação às pautas de aprofundamento democrático (aquelas que Dilma nem se preocupou em apresentar). No campo da moradia, por exemplo, além de garantir que a construção das unidades habitacionais ocorra em áreas com infraestrutura, é fundamental retomar o pacto contra as remoções forçadas (multiplicadas pelo governo PT de forma direta). O caso emblemático aqui é o Horto: uma visão avançada de meio ambiente urbano (muito diferente da visão “ecológica”) deve garantir a permanência dos moradores no local como forma de produção social do urbano para além dos sempre compromissados “higienismos”.
2) Sobre o caráter da transição. Marina não afirma que é a “nova política”, e sim que quer permitir uma “transição”. Aceitando o terreno das metáforas por ela colocadas, é preciso qualificar essa transição. E ela não consiste em esperar decretos do soberano de mudança no tal “tripé econômico” (a base material do capitalismo contemporâneo) – aquele mantido por Lula e Dilma. A transição consiste, em primeiro lugar, na recusa do futuro governo em qualquer tipo de desmobilização das lutas políticas, sociais e culturais de disputa em torno do valor. Essa é a única chance de confrontarmos o neoliberalismo de baixo para cima, e não a partir de crenças, que resultam logo em desilusão, sobre uma possível mão forte de esquerda que irá mudar tudo. Marina não representa e nem representará junho de 2013, mas ela não poderia abrir algumas portas para que o movimento continue como processo constituinte? Com efeito, trata-se de estabelecer com essas mobilizações uma relação virtuosa e potente – aquela que, em vários momentos, Lula soube manter para avançar nas brechas democráticas (e depois soube fechá-las).
3) Ocupação da candidatura. Um boa parte da direita está confortavelmente acomodada e alimentada pelo governo Dilma (é só ver o cabo eleitoral Eduardo Paes), mas outra parte vai realizar uma estratégia de ocupação em razão da derrota de Aécio. Aqui será preciso garantir que a pauta de aprofundamento democrático, presente na campanha de Marina, não sofra ainda mais bloqueios derivados do anti-petismo de direita. Cabe à esquerda se perguntar seriamente se quer disputar esse terreno em aberto ou consolidar (pela interdição de Marina e pelo voto em Dilma) o consenso do rolo compressor pelos próximos 04 anos. A votação confortável (aquela que se pode ostentar com orgulho moral no facebook) estará encerrada. O idealismo (tão nobre como ineficaz) mostrará os seus limites.
Pontos levantados, fica claro que a nossa tentativa é caminhar na direção contrária da campanha realizada por Dilma e seus apoiadores/as. O objetivo não é “fechar” o debate com adjetivos simplórios e estímulo à confusão e proliferação de fantasmas. Acreditamos que o terreno aberto pela súbita candidatura de Marina deve ser levado a sério como possível alternativa no interior do quadro eleitoral e como campo de constituição de brechas reais e democráticas para as lutas do próximos quatro anos (inclusive, tendo em vista a proximidade de Aécio, com o voto no primeiro turno para afastar a dicotomia). Nunca fomos idealistas, sempre desconfiamos das zonas de conforto que alimentam a alma e deixam as coisas como estão, tão indenes quanto intoleráveis. Não fazemos nossas opções com base no medo e na intimidação. O nomadismo é maneira de viver e de fazer política, então façamos o êxodo.
–
Alexandre Fabiano Mendes, doutor em direito pela UERJ, é professor adjunto na mesma universidade
Giuseppe Cocco, cientista político, autor de MundoBraz, O trabalho dos direitos e, com Toni Negri, Glob(AL), é professor titular da UFRJ.
Fonte: Universidade Nômade Brasil
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