PICICA: "O diretor Vladimir Carvalho olha ao redor sem perder as raízes"
Cultura
Cinema
A marca nordestina
O diretor Vladimir Carvalho olha ao redor sem perder as raízes
Sérgio Amaral
A luz do cerrado foi a primeira impressão a
conquistar o paraibano Vladimir Carvalho em sua chegada à capital
federal há quatro décadas e a lembrança hoje se dá a céu aberto, na
calçada de sua casa, onde instalou um poema. Apenas quem conhece o
ofício do morador identifica na fachada do sobrado janelas em forma de
rolo de película de filmes. A referência, anacrônica em tempos de modelo
digital, antecipa o tanto mais de passado que se pode apreciar no
interior da residência, onde o cineasta e professor guarda relíquias da
sua e de outras trajetórias históricas da cinematografia brasileira.
O maior legado é, no entanto, a memória
viva de quem esteve lá como testemunha privilegiada ou realizador. E
mais, de quem a pavimentou a partir de um marco chamado Aruanda, na Paraíba, experiência determinante para, ao lado de Eduardo Coutinho, engendrar o clássico Cabra Marcado Para Morrer e seguir como paradigma do documentário de vertente social em obras como O País de São Saruê e Conterrâneos Velhos de Guerra.
Perto dos 80 anos, que completa em
janeiro, Carvalho segue aguerrido. As homenagens começam, a exemplo do
DVD com seis curtas-metragens que deve lançar até dezembro, quando o
Fest Aruanda, em João Pessoa, reverenciará sua obra. E ele acaba de
prestar tributo ao organizar para o 47º Festival de Brasília um ciclo de
filmes e debates dedicados a Coutinho, morto em tragédia no início do
ano. Terminado o evento, volta a seu mais novo documentário, leitura da
pintura do pernambucano Cícero Dias, que lhe permite retomar a fase dos
engenhos de açúcar tão presentes na infância e muitas vezes tema de seu
cinema, como num filme sobre José Lins do Rego.
Para Carvalho, é
sempre a chance de arremeter a seu Nordeste, sem que na essência tenha
se separado dele. A distância é apenas física, delimitada por
decorrências profissionais como o convite do amigo Fernando Duarte,
fotógrafo de Cabra, para ensinar na Universidade de Brasília
depois da invasão da UnB em 1968. A instituição buscava recompor o
quadro de professores, a maior parte cassada pela ditadura, e Carvalho
terminou por se instalar de forma definitiva. “Descobri que aquele era
um momento especial na cidade, para onde tudo convergia. E me senti em
casa.” A certeza confirmou-se ao ouvir falar sobre o drama dos candangos
que ergueram a capital. Começou a registrar o material que ganharia
forma em 1990 no impactante Conterrâneos Velhos de Guerra, relato
inédito das mazelas e mortes dos operários da construção. A função da
cidade em sua obra seria preponderante para Carvalho pensar o episódio
da UnB em Barra 68 e da música jovem em Rock Brasília.
Elisabeth, Carvalho e Eduardo Coutinho em 1984, ano em que Cabra Marcado para Morrer foi finalizado
O que se dá ao redor é
objeto de curiosidade desde sua união ao conterrâneo Linduarte Noronha,
em 1960, para escrever e ser assistente no curta Aruanda,
sobre um quilombo no Sertão paraibano, pedra de fundação do
documentário brasileiro. Carvalho e João Ramiro Mello nunca constaram
nos créditos, episódio que tratou com revolta e hoje de modo sereno.
“Noronha era um tipo reservado, nunca soube por que fez isso.” Foi pelo
filme e seu conhecimento da política de militância na região que se
tornou o mais indicado a acompanhar Coutinho pelo Sertão pernambucano
nas filmagens de Cabra.
O jovem comunista animou-se em integrar
esse painel de mescla realista e ficcional da ação das ligas camponesas,
centrado no assassinato do líder João Pedro Teixeira e no drama da
viúva Elisabeth. As filmagens foram interrompidas pelo golpe de 1964, o
que obrigou os “barbudos de Cuba”, assim chamados pelos moradores, a se
dispersar. “Num primeiro momento achamos de modo ingênuo que era um
golpe a favor, em apoio a João Goulart.” Enquanto o copião estava a
salvo num laboratório carioca, Carvalho tratava de proteger Elisabeth,
procurada por fotos. “O jeito foi pintar seu cabelo de loiro e fazê-la
passar por prostituta até chegar à casa de um amigo militante.” Se hoje Cabra
pode ser exibido em cópia nova pelo País, deve-se à obstinação de
Coutinho em finalizá-lo em 1984 e porque as filmagens iniciais
permaneceram protegidas sob a cama de um general, pai do diretor David
Neves.
Não seria este o único embate de Carvalho com os militares. Em 1971, O País de São Saruê,
sobre colonos, foi proibido no mesmo evento de cinema de Brasília e
liberado em 1979. O filme evidenciava o som direto, relevante a partir
de então para o documentarista, que o experimentou como assistente de
Arnaldo Jabor em Opinião Pública. A essa altura, filmara os primeiros dois curtas nos anos 60, Romeiros da Guia e A Bolandeira, que integram o DVD com Vila Boa de Goyaz, Quilombo, A Pedra da Riqueza e Pankararu do Brejo dos Padres, estes da década de 1970.
Quando não consumou um filme definidor, o diretor conviveu com outros que o fizeram, como Glauber Rocha em Salvador, a quem mostrou Aruanda,
contribuição identificada com o início do Cinema Novo. Na capital
baiana integrou-se ao Centro Popular de Cultura e continuou a estudar
Filosofia, a que chegou por influência do pai. Luís Martins, o Lula,
ainda na pequena Itabaiana viu o garoto com uma faca na cintura, pronto a
se tornar um cabra de lida qualquer. Homem de letras e ideias arejadas,
tratou de abrir nova senda ao primogênito, como este fez depois com o
irmão caçula, o diretor de fotografia Walter Carvalho. A iniciativa
paterna é valor essencial ao documentarista, que pelo cinema encontrou
um modo de nunca se desvincular do homem nordestino.
Fonte: Carta Capital
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