PICICA: "O documentário Vivendo e Aprendendo,
estreia na direção da atriz Clara Bellar, é uma reflexão bastante
consistente sobre diferentes experiências de desescolarização em
diversas partes do mundo. A premissa do documentário é bastante simples:
Bellar, após ter seu primeiro filho, precisa decidir como iniciará o
processo de escolarização da criança. Insatisfeita com as opções mais
tradicionais, ela decide investigar e entrevistar praticantes de métodos
mais radicais de educação, aqueles que se recusam a matricular seus
filhos em escolas ou institucionais educacionais formais."
O documentário Vivendo e Aprendendo,
estreia na direção da atriz Clara Bellar, é uma reflexão bastante
consistente sobre diferentes experiências de desescolarização em
diversas partes do mundo. A premissa do documentário é bastante simples:
Bellar, após ter seu primeiro filho, precisa decidir como iniciará o
processo de escolarização da criança. Insatisfeita com as opções mais
tradicionais, ela decide investigar e entrevistar praticantes de métodos
mais radicais de educação, aqueles que se recusam a matricular seus
filhos em escolas ou institucionais educacionais formais.
Para isso, ela seleciona parentes,
crianças e alguns teóricos que vivem diretamente o processo de
desescolarização principalmente nos EUA, na França e na Inglaterra para
contar um pouco de suas práticas e experiências. Tais relatos são
bastante heterogêneos, com propostas muito variadas e concepções
educacionais bastante singulares. Há, porém, um elemento comum a todos
os relatos: o forte sentido de experimentação e descaminho. Mais do que
um método universalmente aplicável, a educação desescolarizada aparece
como um campo aberto e indeterminado, no qual as soluções são elaboradas
a partir das dificuldades e das questões que surgem a partir do próprio
processo educativo.
É essa postura de indeterminação que
coloca os relatos do filme numa posição de grande tensão diante dos
modos hegemônicos que a nossa sociedade criou para pensar a relação da
educação e do cuidado com o universo infantil. Pode-se dizer que o filme
funciona quase como um contra-discurso, um pequeno gesto de contrapoder
diante do poderoso dispositivo de governo que é a escola, talvez o
dispositivo que se manifesta com mais intensidade na vida, nos corpos e
nas subjetividades dos indivíduos no mundo contemporâneo.
A recusa em ingressar na lógica da
escolarização é, por si só, um questionamento do modo como nos
governamos e nos conduzimos e da forma como naturalizamos esse governo.
Hoje parece tão difícil pensar ou formular propostas de
desescolarização, tão entranhada em nós a ideia de que escolarizar é o
caminho natural e correto para administrar o mundo infantil. É isso que
torna as experiências registradas no filme de Bellar tão interessantes,
na medida em que elas recusam esse caminho natural e familiar que marca
nosso pensamento.
Nesse sentido, vale observar que essa
recusa se estrutura, nos relatos do filme, a partir de uma crítica
tríplice ao processo de escolarização: o currículo, a avaliação e o
controle do tempo. De maneira geral, as propostas defendidas pelos
diferentes relatos que aparecem no filme não aceitam a ideia de um
currículo único, universal e baseado em etapas de desenvolvimento, como
se todas as crianças precisassem percorrer um caminho único e
pré-determinado para atingir o conhecimento e amadurecer seus
pensamentos e comportamentos. As experiências de desescolarização
valorizam práticas de estudo e aprendizado que se iniciam a partir de
diferentes impulsos, como acontecimentos cotidianos, situações
comunitárias ou mesmo pelo gosto individual de cada criança, dissolvendo
nesse processo a possibilidade mesma de um currículo.
No mesmo movimento de recusa do
currículo, há também uma recusa do processo avaliativo em si mesmo.
Sabe-se que existe uma profunda conexão entre a ideia de currículo e a
de avaliação. É por meio da avaliação que é possível garantir a
assimilação das diretrizes e pressupostos presentes num currículo. Não é
fácil pensar em um currículo que, em última instância, não precise
recorrer a uma normatividade do pensamento, o certo e o errado, o
verdadeiro e o falso. E a avaliação é a tática que permite materializar
essa normatividade, afirmar o quanto cada sujeito se aproxima ou se
afasta da verdade do currículo e do conhecimento. Isso explica, pelo
menos em parte, a razão pela qual é tão difícil imaginar um processo de
escolarização no qual a avaliação esteja completamente ausente. E essa é
uma das preocupações que aparece com mais força nos relatos do filme:
como pensar uma educação sem certo ou errado, sem medidas, notas ou
classificações? As respostas são variadas, porém a tônica é muito mais a
de que não é possível avaliar o comportamento infantil em termos
classificatórios, mas sim a de se esforçar para criar um espaço de
aprendizagem assentado na experimentação do que na busca pelo certo e
pelo verdadeiro.
Finalmente, a terceira crítica está
também associada com a ideia de experimentação e de descaminho. A
consecução de qualquer currículo pressupõe um controle constante do
tempo de aprendizagem individual. Por isso, a escola funciona como uma
instituição de sequestro e controle do tempo. A criança ingressa nas
primeiras horas da manhã e permanece lá dentro por um número determinado
(e crescente) de horas, desempenhando atividades pré-determinadas e
seguindo uma rotina institucionalizada e mais ou menos rígida. Existem
inúmeras propostas escolares que flexibilizam as rotinas escolares, em
busca de espaços de maior autonomia para crianças e adolescentes, porém
nunca prescindem de um elemento básico: a obrigatoriedade da permanência
(e da atividade) dentro dos muros da escola. A opção de não estar lá ou
de não realizar atividades no interior da escola não está presente. O
tempo de cada um é intensamente governado desde o início da infância até
o fim do processo de escolarização, no ensino superior. Na lógica da
desescolarização, a repartição e o controle do tempo são substituídos
por um tempo fluído, instável e maleável, que segue o ritmo das
experiências, das curiosidades e interesses individuais.
A partir dessas três críticas, nos
deparamos com práticas muito distintas e particulares, que encontraram
soluções diferentes para lidar com os problemas e com as dificuldades de
pensar uma educação que escape do pensamento escolarizado que se produz
no interior desse poderoso dispositivo de governo. Por isso, muito mais
do que um programa revolucionário, as propostas de desescolarização
apresentadas no filme aparecem como uma espécie de ruído que se coloca
no interior do intenso falatório educacional em que vivemos. Um ruído
que provoca pequenos distúrbios e propõe experimentações de novas formas
de conhecer e governar a infância e a nós mesmos. Seria um erro pensar a
desescolarização como uma possibilidade de se desvencilhar de toda
tecnologia de governo (como se isso fosse possível!), mas sim como um
conjunto de experiências que questiona a forma hegemônica como nos
governamos, abrindo caminho para novas possibilidades de relação com o
mundo da infância e com a forma mesma como nos conduzimos.
Fonte: Ensaios Ababelados
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