PICICA: "O que é propriamente
um regime ditatorial de valores? Se no sentido político tradicional, o
ditador é aquele bigodudo que possui o total controle dos poderes do
estado, na esfera dos valores o ditador é aquele que legitima de forma
absoluta os valores de uma sociedade. Dizem por aí que a ditadura
acabou, está nos livros de história. De fato, o que não parece mais
existir em nossa sociedade é o tal do bigodudo mandão, entretanto sobram
mecanismos autoritários de valorização e desvalorização dos valores
culturais. Sob este prisma, pouco importa sermos uma democracia formal, é
pouco. Pensávamos ter nos livrado da ditadura, quando na verdade só
mudaram nossos ditadores e assim permaneceremos enquanto não nos
emanciparmos de quem dita nossos costumes."
Ditadura da Beleza
O que é propriamente
um regime ditatorial de valores? Se no sentido político tradicional, o
ditador é aquele bigodudo que possui o total controle dos poderes do
estado, na esfera dos valores o ditador é aquele que legitima de forma
absoluta os valores de uma sociedade. Dizem por aí que a ditadura
acabou, está nos livros de história. De fato, o que não parece mais
existir em nossa sociedade é o tal do bigodudo mandão, entretanto sobram
mecanismos autoritários de valorização e desvalorização dos valores
culturais. Sob este prisma, pouco importa sermos uma democracia formal, é
pouco. Pensávamos ter nos livrado da ditadura, quando na verdade só
mudaram nossos ditadores e assim permaneceremos enquanto não nos
emanciparmos de quem dita nossos costumes.
Não é
necessário lembrar nosso leitor o quanto prezamos pelas individualidades
em nossos textos, o quanto nos parece irreal a crença no absoluto, nos
valores imutáveis, na percepção das formas puras, no belo objetivo (ler este, este e/ou este).
Entretanto, mais uma vez nos encontramos em face desta discussão: o
caráter inquestionável da beleza. O fato de termos de nos esforçar para
perceber que aquilo que consideramos ideal no corpo feminino/masculino é
apenas uma questão de gosto mostra o quão eficaz em empurrar
determinados desejos goela abaixo é o regime em que vivemos.
Não é difícil perceber que a beleza,
assim como qualquer valor, não é um valor imutável, mas determinada por
processos de valorização e desvalorização. O exemplo corriqueiro é o da
época do Renascimento, de como as “gordinhas” eram o padrão. Para fugir
do exemplo óbvio, basta voltar um pouco na história de nosso país. Na
época da escravidão, jamais se consideraria a pele bronzeada como algo
belo, pois este traço trazia consigo a informação de que a pessoa
trabalhava fora da casa, exposta ao sol e se assemelhava, portanto, ao
escravo. Um pouco distante da nossa atual preferência pelas “marquinhas
de biquíni”, não?
Evocar o exemplo da escravidão nos remete
a outra questão: quem estabelece o que é bonito? Numa sociedade com
estratos tão definidos quanto a escravagista, parece óbvio que a elite,
que possui todo o poder, determine o bonito e o feio. E na nossa
sociedade atual, será que o padrão de beleza continua associado a quem
tem o poder? Se entendermos esse poder como poder econômico, parece que
sim. Basta perceber que não conseguimos imaginar o dia em que o cabelo
“ruim” (repare que a palavra que usamos para nos referir a um
determinado tipo de cabelo já é um juízo de gosto! E o pior, nos
entendemos) se tornará o padrão. O mais triste é o fato de que este
padrão ditado não é aceito apenas por quem dita, mas por todos,
inclusive pelos que têm “cabelo ruim”, são “gordinhos”, “mal vestidos”…
É uma imposição vertical que atinge a
horizontalidade. Os efeitos desse poder econômico, muito menos
personificado, se torna efetivamente poder nas relações, mas não se
restringe somente a um poder social, é também biopoder, isto é,
uma relação de dominância instituída sobre os corpos. Por mais abstrato
que pareça, esta relação de dominância percebe-se por marcas corporais.
Observe, por exemplo, os traços físicos do que serve e do que é servido.
Há qualquer coisa de distinto em seus corpos, em suas constituições,
algo que denuncia o pertencimento a uma determinada classe.
Perceba que não estamos apenas criticando
o padrão atual, estamos questionando a necessidade da existência de um
padrão, ainda mais um que seja definido por processos tão oligárquicos
como os da nossa mídia. A questão não é defender quem é gordinho, mas
defender a possibilidade de uma escolha que parte de um desejo legítimo e
não de uma aceitação submissa.
O problema fundamental aqui é o fato de
que nosso desejo não é propriamente nosso. Ele é fabricado no seio de um
sistema de produções doente, que para seu próprio sustento precisa ver a
beleza associada ao dinheiro, aos produtos e à fama. No interior da
máquina social, nosso desejo é uma pequena engrenagem que acredita
querer, quando na verdade apenas aceita o que lhe é sugerido, ou melhor,
obedece às ordens da gerência. Dentro deste sujeito, não há desejo, há
uma espécie de eco, uma repetição do que o mercado define como
necessidade e coloca na capa de suas revistas. “Quando o desejo obedece a
este ponto, constrangido, fabricado e possuído pelo mercado, ele se
torna o corpo estranho integrado e digerido pelo sujeito alienado”
(Política do rebelde, Michel Onfray, p.189)
Por que chamar de regime ditatorial?
Simplesmente porque há, de fato, algum mecanismo que dita valores e este
mecanismo, no que concerne boa parte dos indivíduos de nossa sociedade,
não parte do sujeito. Há, como diria Deleuze, uma fábrica de buracos (Ler Deleuze e o desejo). Escavadeiras
dispostas em fila, prontas para nos atacar, invadir nossas casas, nosso
transporte, nossos corpos, nossos afetos; e cavar sem parar, criar uma
série de buracos, de “faltas”. Não há ingenuidade por parte de quem
manipula essas máquinas, é muito bem sabido que só o ideal preenche o
desejo quando este é interpretado como falta. Mas como alcançar este
ideal? Existe corpo tal qual o da capa de revista? Que escavadeiras são
essas? O que é que nos faz tomar o desejo por falta? Inúmeras respostas
são possíveis, eis algumas: a publicidade, este mecanismo de persuasão
apodrecido; a ditadura da identidade, esta normatividade imposta pelo
ser; a moral, estes valores condensados em deveres; o prazer
conservador, esta fuga incessante do prazer intensivo…
Nossos poros estão entupidos. Estamos
impedidos de experimentar nossos próprios corpos. Com a desculpa do
belo, cria-se a norma e, quando há tentativa de subvertê-la, surgem
pequenas sentenças de morte: constrangimento, coação, coibição,
intimidação, restrição… O sujeito vai se convencendo de que tem que ser
como é e vai deixando de lado sua criatividade e sua disposição para a
experimentação. Aceitamos, enfim, que devemos ter um gênero X, casar com
alguém do gênero Y, não qualquer um, mas alguém perfeito. Esquecemos
completamente que nosso corpo é uma festa e que nesta festa não há
mestre de cerimônias.
Muitas questões se levantam. Difícil
abordá-las todas num pequeno texto como este. Contudo, para finalizar,
gostaríamos de destacar ainda duas destas questões. Primeiro, idealizar o
corpo gera desprezo pelos corpos. Parece paradoxal, mas é muito
simples. Estabelecer uma ideia perfeita de corpo implica em desprezar,
mesmo que parcialmente, a materialidade de todos os corpos, pois jamais o
objeto se eleva a perfeição eterna da ideia dele. Segundo, buscar o
corpo ideal, implica necessariamente um procedimento ascético (no
sentido etimológico: que necessita esforço, exercício), precisaria de
regras rigorosas para sua obtenção (pense nas dietas mirabolantes, nos
regimes e práticas físicas sacrificantes). Neste sentido, é como uma
religião, com suas práticas para obtenção de paz de espírito e vida
eterna. Seja lá qual for o fim último, não deixa de ser arbitrário,
escolhido. Que seja escolhido por cada um de nós, então! A pergunta que
cabe ser feita é: “Será que sou eu que desejo ser loira e esbelta?”
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