Foto: Rogelio Casado - Rede de Amizade & Solidariedade, Manaus-AM, 1998
A partir da esq.: Sabichão, Nega Maluca, Rastafari, Canhão-poranga, Macaxeira e Bocó
Em 1997, ajudei a fundar a Rede de Amizade & Solidariedade às Pessoas com HIV/Aids. Fui seu primeiro coordenador por uma razão desconcertante: nenhum soropositivo queria mostrar o rosto e dar a cara para bater, afinal a questão era sobreviver dignamente, pois a pandemia estava em expansão há uma década no estado do Amazonas e ainda havia um clima de intolerância e preconceito. Um dos exemplos mais chocantes do início daquela década repercutiu nos corações e mentes das pessoas soropositivas em tratamento no SUS: jovem soropositiva morre e sua carteira de trabalho é incinerada. Nesse cenário, ninguém ousava se expor.
Conheci-os quando estava exilado no Instituto de Medicina Tropical entre 1993 a 1998. Havia sido excluído das minhas atividades no Centro Psiquiátrico Eduardo Ribeiro, no início dos anos 1990, por um movimento corporativista que, como tal, perdera os rumos da Reforma Psiquiátrica - reforma iniciada em 1980 a partir do único hospício público existente em Manaus. Estou certo de que a estagnação da referida reforma teve nesse movimento um fator fundamental: alienados numa falsa noção de coletivo, seus atores passaram a canibalizar os que representavam perigo aos seus interesses individuais, abrindo caminho para que administradores públicos descompromentidos com a Reforma Psiquiátrica os usassem para desmontar o espaço conquistado na cena política e social por Silvério Tundis e seus companheiros na luta por outra relação entre a sociedade e seus loucos. É bem verdade que no meio destes últimos haviam reformistas de araque que se acovardaram quando se fazia necessário enfrentar os desvios de rota que se anunciavam desde a greve de fome que fiz em 1987 no governo de Amazonino Mendes.
Inspirados no exemplo de Betinho - patrono da campanha contra a fome e o soropositivo mais atuante na cena política do Brasil dos anos 80/90 -, que recusou viver um segundo período de clandestinidade (o primeiro obrigado pela luta contra o regime militar, e o segundo pela intolerância social provocada por um vírus), eis que, em 1998, aqueles que estiveram sob meus cuidados tornaram-se meus companheiros na luta contra a intolerância e o preconceito ocupando a via pública para encenar minhas primeiras peças de teatro popular, que ensejou a criação da minha Companhia de Teatro de Repertório "Cururu de Tanga".
Mais do assumir o teatro como instrumento de mudança de mentalidade, assumiram integralmente as responsabilidades de direção da Rede de Amizade & Solidariedade. Hoje todos os cargos são ocupados por maioria de soropositivos. Ao longo da sua trajetória chegaram a representar o Brasil num encontro acontecido em Bangock, no continente asiático. É pra ficar babando de ver a cria indenpendente e autônoma, princípio que perseguimos desde sua fundação.
Orgulho maior é tê-los como parceiros na luta contra um outro preconceito, secular, que depõe contra nossa humanidade: o preconceito contra os loucos, representantes de um dos saberes mais trágicos da condição humana. Na I e II Parada do Orgulho Louco e nas manifestações pelo Dia Nacional de Luta Antimanicomial lá estão eles cumprindo suas obrigações como cidadãos: criar uma sociedade aberta ao convívio com as diferenças. Sabem tudo de quando endurecer e quando manter a ternura, sem se entregar jamais aos vícios da acomodação.
Laurinha de Souza Brelaz é sua principal liderança. Através dela homenageio todos os companheiros que nos ajudaram a celebrar o dia 18 de maio - Dia Nacional de Luta Antimanicomial. Aproveito para publicar uma fotografia de 1998, quando a Rede de Amizade & Solidariedade encenou minha peça "A Aids não é mortal, mortal somos todos nós", a partir dessa frase de autoria do imortal e saudoso companheiro Betinho.
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