A MELODIA POÉTICA DE ANIBAL BEÇA
Hildeberto Barbosa Filho *
Nos seus 61 anos, portanto em fase de plena vigência e já de confirmação em termos literários, Aníbal Beça é autor de uma obra poética vasta e variada, quer no território dos procedimentos técnico-literários e estilísticos, quer nas latitudes temáticas e motivadoras, a par, não obstante, da componente mágico-regional de fundo amazonense, que lhe lastreia subterraneamente ac osmovisão lírica, acentuando-lhe, assim, para além da maestria estética, de per si já demonstrada na elaboração do verso, toda uma particularidade expressiva, antropológica e cultural.
Caleidoscópica, poliédrica, plural em suas tensões e extensões, sua poesia possibilita muitas portas de entrada a sinalizarem para muitas varandas de saída, seja pelo viés de uma leitura meramente didático-racional, onde se verificassem sobretudo o poder da técnica e a desenvoltura dos processos formais, seja por uma abordagem de cariz afetivo-imaginário, onde, a seu turno, pudéssemos indagar das mensagens abertas que se desenham na coreografia das imagens e se cadenciam na pauta rutilante do ritmo e da melodia.
Mesmo que se possa aferir notas de alguma maturação na concepção da linguagem poética dos primeiros para o último livro, percebe-se, em Aníbal Beça, aquele espírito de crítica a presidir a textura da composição (nele particularmente composição, porque o músico que é invade o poeta!), demandando o controle estético da experiência lírica, tanto nos poemas de teor minimalista, a exemplo de "Mesa fome", "Trova látex", "Trote rio", "Sino tempo" e "Trova rústica", de Convite frugal, quanto no espraiado da expressão, em textos como "Verde que se faz verde primícia", "Presságio deboas novas na várzea", "Canto a continuidade perdida" e tantos outros de Filhos da várzea.
O traço dessa atitude crítica, que se evidencia na modulação da métrica e dos ritmos, assim como na sondagem de todas as camadas da linguagem poética, a camada fônica por excelência, sem descartar, contudo, o peso das camadas semânticas, óticas e morfo-sintáticas, prossegue, enquanto medida do seu credo poético, pelo Itinerário poético da noite desmedida à mínima fratura, até se estabelecer, agora como um vetor decisivo de um poeta que sente, sente... imagina e pensa, pensa na confecção do poema enquanto qualidade e forma entre formas e qualidades outras, conforme se pode observar na Suíte para os habitantes da noite.
Sem inclinações axiológicas, diríamos que essa suíte devolve à poesia sua origem musical, na medida em que a colhe e recolhe em todas as safras do ritmo, seja o ritmo das formas (valsa, chorinho, sonata, noturno, canção, bolero, toada, balada, pavana etc..), seja o ritmo das significações, a remeter para uma dicção erótica, sensual, mágico, cósmica, atenta, assim, à essência impalpável das vivências do real.
Ainda que se projete o estranho e belo mito árabe do louco Majnum que, impedido de ver sua amada Laila (a noite), abandona as riquezas e o mundo para vagar sozinho no deserto, de acordo com a última epígrafe da suíte, como também com o seu Prólogo, queremos acreditar que a organização lírico-musical de Aníbal Beça, na sua abertura temática, sobretudo polarizada entre Apolo e Dionísio, Eros e Tanatos, a vida e a morte, tende a transcender as fronteiras da alegoria, e se fazer escritura - não simplesmente reescritura de mitos e lendas - da própria criação poética e verbalização das próprias qualidades musicais dos afetos, pulsões, idéias e fantasias, tão bem demonstrado, de modo emblemático, na metalinguagem da "Pavana para acompanhamento de flautas doces e címbalos".
Em colunas finas e firmes e sem pontuação, o eu lírico, nessa pavana, explora e expande o jogo metafórico numa conceituação de poesia que ultrapassa o lúdico para penetrar no ôntico e captar, em sua primalidade, a natureza intrínseca da palavra poética:
“A poesia é uma borbo-
leta de ions um dado de
libélulas um dedo de
sumaúma um galho de
nuvens na lã da relva
amanhecida uma trave
no aço dos músculos
.......................
(...) Que ela seja
clássica moderna com-
temporânea de vanguar-
da comportada marginal
lírica épica que ela seja
nada e tudo e nada: va-
ral chuva casa alicerce
arcabouço não importa
e nem defini-la compor-
ta se o que reporta é a
fatura do e para o homem
assim como a porta da rua
é a serventia do poema”.
Outros recortes metalinguísticos perpassam textos e mais textos como a dizer da seminilidade do motivo, numa espécie de convocação recorrente àqueles que habitam a noite, imagem fértil de tudo aquilo que se faz pura germinação: o amor, a criação, a poesia.
Adepto de todos os ritmos, íntimo de todas as formas, consciente de que a poesia é linguagem, mas de que também é mais que linguagem, Anibal Beça, ao lado de nomes como Aldisio Filgueiras, Simão Pessoa e Luiz Bacellar, entre outros, responde pela renovação e continuidade da legítima tradição poética do Amazonas.
Hildeberto Barbosa Filho, poeta e ensaísta, Professor da Universidade Federal da Paraíba, é bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, licenciado em Letras Clássicas e Vernáculas, especializado em Direito Penal e Mestre em literatura brasileira
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