11/12/2007
DEBATE ABERTO
O bispo de Barra quer morrer
O que pode explicar a atitude de Dom Luiz Cappio, ao fazer uma segunda greve de fome contra a transposição do Rio São Francisco? Um bispo é um quadro político, um “general da Igreja”, não age por acaso nem por impulsos repentinos.
Bernardo Kucinski
Dom Luiz vai morrer. Na primeira greve de fome contra a transposição do Rio São Francisco, ele ainda falava em negociação. Agora não propõe negociar nada. Exige que o Exército abandone o canteiro de obras e o projeto seja arquivado. Diz que, se não for assim, vai até o fim na sua greve de fome, que já dura 13 dias. O fim é a morte por inanição. É obvio que o que ele quer mesmo é morrer.
Um bispo não é um religioso qualquer, um ingênuo tomado pela crendice. É um quadro dirigente. Superou etapas formativas e seletivas, chegando ao topo da hierarquia católica. Estudou os clássicos. Sabe latim, grego e talvez até hebraico. Leu São Tomás de Aquino. Conhece filosofia; teoria política. É um general da Igreja. Seu gesto é o equivalente clerical do “pronunciamento” militar.
Dom Luiz deve saber que nenhum governo pode abandonar seu principal projeto de desenvolvimento regional. Deve saber também o que é um Estado laico. E o que é democracia. Que um governo democrático não pode ceder à chantagem, nem querendo. Se Dom Luiz sabe de tudo isso, o que busca ele com o auto-sacrifício?
Esse é o grande enigma. Um denso mistério que provavelmente irá para debaixo da terra junto com seu corpo.
Podemos apenas especular.
Será que através do martírio extremo ele busca a glória pessoal? Talvez até a beatificação? Nesse fim de semana eram esperadas mais de dez mil pessoas em romaria ao bispo. Imaginem depois de morto? Certamente vai ser erguido ali um santuário. E ele vai virar um santo. Santo Cappio. Um novo Padim Cícero do Sertão. Mas não pode ser isso. Um bispo tem estrutura mental e autodisciplina para não se deixar levar pela soberba.
Talvez Dom Luiz queira, com sua morte, dar sentido a um bispado que já não tinha vida. Hoje Barra é uma cidade morta. Já foi um florescente centro mercantil, ao qual aportavam barcos plenos de mercadorias oriundas de todo o sertão. Enfim, já foi um BISPADO de verdade, o promissor Bispado de Barra. Só que o bispado morreu, com o definhamento do próprio rio.
A decadência de Barra não tem nada a ver com o projeto de transposição de águas do São Francisco. Tem a ver com o que aconteceu antes, com os quatro séculos de depredação das margens do rio, o assoreamento e o declínio mercantil do Porto de Barra. Em todo o país, antigos portos fluviais foram abandonados. Armazéns e casarões decorados com azulejos portugueses são hoje ruínas ou centros recuperados de turismo.
Aconteceu no delta do Parnaíba, no estuário do Amazonas, em Belém do Pará, no Rio Guaíba, em Porto Alegre. Aconteceu em Barra.
A diferença é que o Rio São Francisco ganhou um projeto que, com a transposição de uma pequena fração de suas águas, poderá transformar o cenário de toda uma região, hoje miserável. E revitalizar o próprio rio, recuperando matas ancilares e canalizando esgotos de cidades ribeirinhas. Não colide com as ações pontuais e caridosas da Igreja, nem com o projeto do governo de construção de um milhão de cisternas, mas vai muito além.
A Igreja não acredita na salvação em terra, em mudar a realidade. Tudo é destino. Transformações profundas como as embutidas no projeto do São Francisco violam o desígnios de Deus. Violam o estado da natureza, o curso natural das águas. Violam o ecossistema, dizem os ambientalistas, usando outra linguagem, mas defendendo o mesmo imobilismo. O criacionismo os une. Deus criou o mundo em seis dias. Não cabe ao homem mudá-lo. Além disso, o projeto não devolverá à Barra a glória perdida. Não vai reviver o bispado. O bispado está morto e acabado. O que o projeto pode dar a Dom Luiz é a oportunidade de uma morte em Cristo. O martírio extremo, que redime os pecados ainda em vida. Não é pouca coisa.
O que o bispo busca é a expiação de suas culpas ainda em vida. Inclusive a culpa por não ter morrido na greve de fome anterior. Na culpa, está a essência da fé católica, assim como da fé judaica. Judeus e católicos já nascemos culpados. Culpados de quê? De tudo. Do pecado de Adão. Do pecado de Caim. Da venda de José aos mercadores egípcios pelos seus próprios irmãos. Da libertinagem em Sodoma e Gomorra. Da adoração do Bezerro de ouro pelos seguidores de Moisés. Da crucificação de Cristo. Todos os grandes mitos da bíblia são construídos em torno do pecado.
E tem mais. Tem a culpa por deixarmos que fosse destruído o Segundo Templo. Pelos pogroms. Pelo massacre dos Incas e Aztecas e o saque de suas riquezas. Pela Santa Inquisição, que em nome da fé perseguiu, torturou e matou nas fogueiras milhares de cristãos novos. Pela escravização dos negros. Pelo apoio de Pio XII aos nazistas, ao General Franco e aos genocidas croatas. Pela mãozinha dos bispos católicos aos torturadores militares argentinos e chilenos. Pela pedofilia. Pela ostentação da Santa Madre Igreja.
E mais ainda: a culpa por termos sobrevivido à ditadura, enquanto tantos dos nossos morreram. Por estarmos vivos. Pelo aquecimento global. Pelos crimes do estalinismo e do Khmer Rouge. Pelo massacre de Ruanda. Pela miséria e a prostituição infantil. Pelo neoliberalismo. Culpas não nos faltam, assim como não faltam ao bispo de Barra. A diferença é que Dom Luiz descobriu como as expiar ainda em vida.
Paradoxalmente, Dom Luiz cometerá um último pecado no momento exato em que seu derradeiro suspiro o redima das culpas anteriores: o pecado de tirar a própria vida.
A vida nos foi dada por Deus e só Ele pode tirá-la.
Que Deus o perdôe, assim como perdoará os emuladores de seu auto-sacrifício: o MST, a CPT, o Cimi, certos políticos e alguns jornalistas, tanto da grande imprensa quanto da alternativa. Eles não sabem o que fazem.
Bernardo Kucinski, jornalista e professor da Universidade de São Paulo, é colaborador da Carta Maior e autor, entre outros, de “A síndrome da antena parabólica: ética no jornalismo brasileiro” (1996) e “As Cartas Ácidas da campanha de Lula de 1998” (2000).
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