dezembro 06, 2010

"A Rede Social" - crítica de cinema por Daniel Cava

PICICA: "Se, para os beatniks, a vida ligeira era signo do nomadismo ético e estético, agora não vai além de multiplicador da fofoca, da intriga, do narcisismo. A estrada sem fim dá lugar à highway da informação. Os neo-beatniks navegam longas distâncias colados em suas cadeiras, comendo pizza e tomando cerveja. O desregramento da juventude dos 1950 é substituído pela caretice tirânica dos 2000, quando o mais prosaico deslize se converte overnight em escândalo, condenação moral e processo judicial." 

4 de dezembro de 2010


"A Rede Social", David Fincher, 2010.


Crítica: "A Rede Social" (The Social Network, EUA, 2010, David Fincher)


Nos anos 1950, os beatniks cruzaram os Estados Unidos de cabo a rabo em velozes máquinas. Cantaram as paisagens e os sonhos de uma nova sociedade, numa prosa verborrágica chacoalhada de fúria e sonoridade. Turbinados por bebidas e estimulantes, escreviam sem parar por horas e mesmo dias inteiros, dispensando parágrafos e pontos finais. O resultado foi uma escrita incontida, espontânea, honesta num nível nunca visto, sintonizada às novas velocidades do mundo pós-guerra. Assim os romances On the Road e Visões de Cody, de Jack Kerouac, assim o poema O Uivo, de Allan Ginsberg.

Abordando as intrigas ao redor da fundação e do meteórico êxito do Facebook, A Rede Social pretende exprimir as velocidades desta época: o tempo fluido online do século 21. Desde a primeira cena, o diretor David Fincher (Clube da Luta, O Curioso Caso de Benjamin Button) confere um ritmo alucinante à narrativa. As seqüências sucedem-se acompanhando os beats da trilha sonora. A ação avança e retorna cronologicamente. Percorre vários cenários, na mesma rapidez incontrolável com que o Facebook se difundiu.

Como os escritores beatniks, o protagonista Mark Zuckerberg (Jesse Eisenberg) parece possuir um dínamo no lugar do cérebro. Daí falar em fluxo, turbulento e automático, mais rápido que o  próprio pensamento, confundindo inclusive o espectador mais atento. Fala tão espontaneamente que não se importa com suscetibilidades alheias. Precisa expressar o turbilhão de idéias, doa a quem doer.

Mas se os beatniks eram vagabundos iluminados, errando pelas estradas em nome da liberdade e da arte, os criadores do século 21 não passam de nerds de Harvard. Os mestres de nosso tempo são prodígios incompreendidos e antissociais, apascentados num ambiente Harry Potter. Por isso mesmo, desprezam a sociedade "real" e seus "animais de fazenda". Se, para os beatniks, a vida ligeira era signo do nomadismo ético e estético, agora não vai além de multiplicador da fofoca, da intriga, do narcisismo. A estrada sem fim dá lugar à highway da informação. Os neo-beatniks navegam longas distâncias colados em suas cadeiras, comendo pizza e tomando cerveja. O desregramento da juventude dos 1950 é substituído pela caretice tirânica dos 2000, quando o mais prosaico deslize se converte overnight em escândalo, condenação moral e processo judicial. A América se converteu no pior pesadelo dos antigos libertários: naufragada em festas kitsch, empacada no falso glamour de fama e arrivismo. Esta, a cosmovisão de David Fincher.

Parte da crítica americana deslumbrada comparou o longa a Cidadão Kane. Um achatamento inaceitável. É verdade que o enredo discorre mediante tempos paralelos, que se trata de uma perquirição sobre a verdade íntima do protagonista, que o tema trabalha a progressiva degradação moral inerente à ascensão socioeconômica. Mas a analogia pode parar por aí. Faltam ao filme de Fincher todos os atributos que fazem de Cidadão Kane uma obra prima: a espessura do personagem principal, o inacabamento da verdade e sua moral, a narrativa fragmentária (e não meramente fragmentada), o casamento de forma e conteúdo.

Cá entre nós, Mark está mais para Ricardo III do que Charles Foster Kane. Peço a licença para ser condescendente na analogia com a peça. Eis um personagem rejeitado pelas mulheres, (socialmente) mutilado, movido pelo ressentimento, cuja vingança é subir o mais alto, provar o gênio e, uma vez lá em cima, escarnecer das criaturas inferiores. A Rede Social é a história da desforra da anomalia nerd contra a utopia loira. 

Quando Mark triunfa e chega ao topo, percebe que não sobrou ninguém para compartilhar. A velha moral do tão rico, tão pobre. Foram todos varridos face à arrogância monstruosa. Traiu e abandonou mesmo o único amigo genuíno de seu Facebook. Que adiantam 100, 200 ou 600 "amigos" na rede social, se não se tem um único sem aspas? É o bilionário mais jovem do mundo, mas o que verdadeiramente queria, como todo monstro, era saborear a beleza e o amor autênticos.

É preciso desconfiar dessa interpretação pessimista levada a cabo por A Rede Social. Semelha bastante com o preconceito da velha mídia, para a qual as redes sociais não passam de antros de fofoca e egolatria. Os tais "bloguinhos sujos". É preciso reconhecer que, além de superexposição narcísica, as redes sociais efetivamente conectam as pessoas, encurtam as distâncias e mobilizam as paixões e os desejos numa onda coletiva. Isto pode resultar em campanhas de ódio e preconceito, mas também potencializar agendas democráticas e lutas globais. De um modo ou de outro, confere voz a muitos sem-voz. Existe um valor intrínseco à circulação de conteúdos, à facilidade de cada um não só transmiti-los, como também criá-los. Nada disso aparece, o longa concentra-se em ridicularizar a internet, seus  usuários e criadores, dentro dos estereótipos. Ali desfilam o nerd antissocial (Mark), o indie bonzinho (Eduardo), o yuppie imoral (Sean, por Justin Timberlake), os WASP quadradinhos (gêmeos Winklevoss).

Por tudo isso, A Rede Social falha duas vezes: na pobreza dos personagens e situações, e na expressão do tempo da internet, ao contornar-lhe a força como partilha e liberdade.

Nenhum comentário: