julho 02, 2007

Dulce Edie Pedro dos Santos: um depoimento histórico

Foto: Rogelio Casado - Dulce Edie Pedro dos Santos, Belo Horizonte-MG, jul/2006

Dulce Edie Pedro dos Santos, flagrada num momento de descontração no Encontro Nacional de Saúde Mental realizado pela Rede Nacional Internúcelos da Luta Antimanicomial em Belo Horizonte-MG. Seu depoimento, enviado por e-mail, está emocionando os(as) companheiros(as) do Grupo de Defesa da Reforma Psiquiátrica. Saiba porquê. Leia o texto escrito por ela.

UMA FAMILIAR FALANDO DE FAMÍLIA

Quando sou convidada para falar sobre o papel da família, no tratamento do paciente que sofre de transtornos mentais, confesso que, tenho grande dificuldade, já que, para mim, que tenho um filho portador de esquizofrenia, a mais grave de todas as doenças mentais, o que tive a fazer foi descartar-me da família, todos, um a um, até que, sobrássemos apenas, ele e eu.

Família... graças a ela e, em especial, à minha mãe que, devido a minha depressão pós-parto, privou-me de exercer meu instinto maternal e, tiranicamente, assumiu o papel que seria meu, o de mãe, minando, com isto, a autoconfiança em minha capacidade para cuidar de um filho, no caso, o meu primeiro filho.

Somente quando meu filho me foi devolvido, após terem percebido que ninguém mais estava obrigado a suportar aquela difícil criatura, a não ser eu, sua mãe, os problemas já haviam se avolumado de forma tal que não conseguia obter nem um mínimo progresso em seu tratamento. Em razão disso, meu filho, durante mais de vinte anos, passou de internação a internação, em todos os tipos de hospitais psiquiátricos.

Tragicamente, para ele, nada disso teve o menor resultado, porém, para mim, significou uma continuidade desse eterno aprender e desse crescimento e amadurecimento que acabou por acontecer em minha vida, não somente, junto ao meu filho, mas, também, em todos os demais aspectos.

Jamais poderia acreditar que, depois de todos aqueles tratamentos nos lugares que eu julgava apropriados para tratá-lo, conseguisse conduzi-lo a um tratamento num serviço aberto e público, como é o caso dos Caps, já que, afinal, em sua visão, ele nem se considera doente e não vê a necessidade para tomar montes de "drogas", que é como ele as considera. Sem a mínima esperança, levei-o ao CAPS Central de nossa cidade, instalado em uma casa velha, feia e com aspecto de suja, mas que, ao mesmo tempo, possui uma equipe de tão excelente qualidade, realmente extraordinária.

Mas, não pensem vocês que foi assim fácil, que ele tenha entrado no carro e dito: "Vamos mamãe". Não, não é assim que essas coisas acontecem. Igualmente como de todas as outras vezes em que tive que levá-lo à força, chamei a ambulância, e esta, o reforço policial. É desta forma que todas os pais, de filhos como o meu, têm que se comportar em relação aos seus filhos, arrancando o próprio coração e fingindo uma frieza que, na realidade, não existe. Obrigar-se, mais uma vez, a tomar essa iniciativa, depois de todas as decepções anteriores...Tudo o que minha família fez, foi atrapalhar, sabotar-me, acusando-me de crueldade e desumanidade, por mantê-lo internado num "lugar daqueles", que o tirasse de lá, minha mãe insistindo em que eu voltasse a interná-lo na clínica particular, cujo preço ela fazia questão de pagar, e na qual, conforme promessa dele por telefone, comprometia-se a fazer o tratamento, caso ela conseguisse "salvá-lo" de sua mãe. Mantive-me firme, mas a que custo... Eram críticas, ameaças, verdadeiros bombardeios sobre mim, vindos de todos os lados. Não fosse pelo apoio recebido de meu companheiro, Geraldo, não sei se teria ido até o fim. Recomendaram-me que ficasse junto dele, internada, durante todo o período da crise, de forma que ele entendesse que, não somente ele estava obrigado a permanecer ali. Foram cerca de vinte dias, entre a primeira semana, uma alta precoce, nova caçada, com ambulância e polícia, tudo novamente e, finalmente, o compromisso. Mais tarde ele viria a me acusar, tê-lo inserido no "sistema", e esta era a mais absoluta verdade. Sabíamos, tanto ele, quanto eu que, daquele dia em diante, ele não mais conseguiria escapar de seu tratamento.

Vimos mantendo esse tratamento com psicoterapia, terapia de grupo e medicamentos, desde novembro de 2004, e meu filho, hoje, é outra pessoa. Todos, inclusive minha mãe, dizem, jamais tê-lo visto tão bem. Suas irmãs, os porteiros do prédio onde mora, e até mesmo o pessoal de apoio do CAPS, falam de sua incrível mudança. Compreendo enfim que os pacientes da saúde mental necessitam, precisam e devem, imprescindivelmente, serem tratados na cidade aonde residem, o mais próximo possível de suas residências, para que quando saiam da crise possam ser amparados, acompanhados, assistidos, porém... em liberdade.

Engajei-me nesta luta, inteiramente, de corpo e alma, e nela encontrei a razão de meu viver. Eu, que sempre desprezei a política, que pouco ou nada entendia dela, após conhecer os direitos de meu filho, do filho de meu companheiro e de todos os outros filhos que acabei por adotar, faço a mais absoluta questão de defendê-los, participando de todas as formas de falas, de conquistas, de lutas, passeatas, manifestações, associações, enfim, tudo o que possa contribuir para dar a todos esses meus filhos, sem exceção, uma melhor qualidade de vida, com respeito e dignidade...

Dulce Edie Pedro dos Santos

Familiar de São Vicente e
militante do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial

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