setembro 19, 2009

Anotações sobre A lua vem da Ásia, de Campos de Carvalho

[ Amálgama ]

Anotações sobre A lua vem da Ásia, de Campos de Carvalho

por Daniel Lopes – O narrador anônimo – ou melhor, com tantos nomes queira, quando quer – pensa estar em um hotel de luxo. Perdeu a noção do tempo e do espaço – não apenas não sabe em que cidade está, mas nem em que país (está convicto apenas, vejam só, de que se encontra em um hotel em plena zona de guerra). Porém, esteve antes por muitas paragens, pelo menos em sonho e pensamento.
No “hotel”, eis o tipo de “espetáculo” a que se permite:

(…) a noite não é tão triste assim, e eu bem posso, querendo, sentar-me à beira da cama, colocar as duas mãos na fronte como o faria qualquer sujeito de bom senso, e distrair-me assim com o espetáculo da parede sempre branca e sempre imóvel, a dois palmos do meu nariz.

São as limitações do mundo físico. Com a mente a conversa é outra. A sua, é um turbilhão. Parece que não aquieta nunca, nem mesmo quando está dormindo. Aliás, não se sabe muito bem quando ele está dormindo ou acordado. Pode ser que esteja “escrevendo” suas “memórias” enquanto dorme, quem garante que não? Mas uma coisa é certa: não entende como alguém consegue pegar fácil no sono, o que lhe parece uma verdadeira façanha:

Assombra-me (sempre me assombrou) ver a facilidade com que certas criaturas se recostam num travesseiro e caem logo num sono profundo, como se se houvessem suicidado inteiramente, sem problema nenhum a resolver no dia seguinte. (…) Em mim, o superlúcido, o sono foi sempre uma conquista muito difícil, e sua escalada através dos anos sempre me pareceu mais penosa e meritória do que a do Himalaia, ou mesmo a do monte Everest.
A maior graça do início do romance se dá – para além do relato de suas aventuras imaginárias (todas?) ao longo do planeta (entre elas, aulas de berimbau no Conservatório de Viena) – pela narração dos eventos diários como se realmente ocorressem num hotel, quando desde o começo o leitor sabe tratar-se de um hospício (confesso que por um breve instante fiquei em dúvida entre hospício e prisão, afinal o narrador poderia estar delirando após levar muita pancada, mas os “maîtres-d’hôtel” vestidos todos de branco logo me decidiram) – “Não entendo, sinceramente, como um hotel de boa reputação como este permite que os seus hóspedes se imiscuam na conversa uns dos outros sem ao menos serem apresentados, criando situações por vezes difíceis e ruidosas, que podem muito bem um dia levar até o crime.”

O narrador demonstra ser indivíduo de considerável integridade moral. Narra um evento (ocorrido apenas na sua cabeça? Ainda assim) em que deu um murro num sargento que lhe maltratara no exército – “continuei ileso e cada vez mais cioso de minha ignorância em matéria de balística e de carnificinas heróicas, como de resto espero viver até o fim dos meus dias”. Mais adiante, enquanto pensa em fugir do prédio: “(…) jamais eu me perdoaria morrer no cativeiro como um rato qualquer, sem a coragem ao menos de enfrentar de peito aberto a horda de bárbaros que aqui nos retém por motivos certamente idiotas mas com toda certeza desumanos”.

A esta altura, o narrador já “descobriu” que o hotel é na verdade um campo de concentração, “com tortura e tudo”, e, evidentemente, a graça fica de lado, até porque a tortura, ao contrário da zona de guerra, é real – e sem motivo aparente, rotineira, absurda. O “soro da juventude” que as funcionárias do “hotel” vinham-lhe aplicar todas as noites agora se transmuta no “soro da verdade” trazido por verdadeiras algozes. “ (…) os nossos carrascos decidiram que não somos homens até o dia em que finalmente resolvamos voltar ao aprisco das ideias feitas e ao cadinho de seus sentimentos desumanizados e postiços” – lemos esta e outras passagens e fazemos a pergunta clássica: quem são os loucos, os internos ou os que internam?

*

A lua vem da Ásia, livro com o qual, segundo o escritor mineiro, sua literatura começa de fato, data de 1956. Portanto, uma década após o fim da Segunda Guerra, e o campo de concentração do livro, por mais imaginário que fosse, ainda seria menos estranho e real que os campos de concentração históricos. E os campos soviéticos estavam a pleno vapor. E, por que não?, estamos há apenas pouco tempo do fim da ditadura Vargas.

Nas páginas dessa estória que uns consideraram surreal (doce ilusão…), o termo “cidadão do mundo” ganha um significado bem particular, pois é por não ser bem vindo em lugar nenhum que o narrador vive (ou viveu; ou não viveu, mas poderia ter vivido) em perpétuo exílio. O livro é do período entre-ditaduras no Brasil. Assim, Campos de Carvalho foi ao mesmo tempo memorialista (que “intentona pseudobolchevista” é mesmo aquela que o protagonista presencia?) e profeta (ei!, o que dizer dessas linhas? – “já imaginou o romance sensacional que poderemos escrever um dia sobre esta experiência bélica a que estamos sendo submetidos em pleno tempo de paz, se é que se pode chamar de paz a este estado de angústia permanente e de ódios gratuitos que marca todos os nossos passos … ”).

*

Há enfim a fuga (imaginária?) do “campo de concentração”. E, agora que o mundo fora do hospício passa a ter papel mais decisivo na trama, o questionamento sobre quem são mesmo os loucos martela cada vez mais forte na cabeça do leitor.

O personagem fujão se deixa jogar de um lado para o outro em meio aos mais absurdos acontecimentos, entre os quais uma proto-revolução que empolga as massas e logo em seguida fracassa, empolgando as massas na defesa do campo oposto. Não obstante os capítulos “letrados” dessa segunda parte (indo de A a Z), em oposição à nomeação e numeração anárquica da primeira parte, o narrador continua num mundo estilhaçado, confuso. Ao invadir um apartamento, identifica um quadro de Picasso na parede, mas depois reconhece que era na verdade “um espelho sem brilho e quase surrealista, no qual eu me vira refletido sem poder reconhecer-me”.

O livro passa a ter um teor mais filosófico. É uma filosofia, no entanto, tomada de bílis, de invectivas contra todos, de um irremediável pessimismo:

Se não consigo ser otimista é porque igualmente não consigo ser menos calvo, ou menos baixo de estatura, ou ainda menos feio do que pareço diante do espelho. O resto é psicologia de ginásio e receita de milagreiros que nem sequer sabem do que é feita a alma do homem, confundindo-a com o ar dos seus pulmões ou dos seus intestinos, invisível aos raios X.
Há espaço também para crença sem religião – “o verdadeiro misticismo não depende de pequeninas bolas de osso enfiadas num pedaço de barbante”.

O narrador continua sem noção de tempo ou espaço, mas não há dúvida quanto à sua preferência. Ao pegar um relógio de ouro no bolso de um enforcado que encontrou ainda balançando num galho de árvore, decide que seria melhor ter encontrado uma bússola, para que enfim pudesse ter um Norte (tanto literal quanto metafórico).

*

Em suas últimas páginas, o romance toma um tom poético. Poucas vezes li algo que, em tão poucas páginas, mudasse tanto e radicalmente de tom, sem contudo perder em intensidade – pelo contrário, ganha. A trilha comédia-tragédia-filosofia-poesia vai se completando, o que não quer dizer que em cada etapa as outras estejam completamente ausentes. Isso não existe.

Tal como sua filosofia, a poesia do narrador é sombria. De fato, são nesses dois âmbitos que tomamos conhecimento do que sem dúvida é um indício da causa da loucura desse personagem: a incapacidade de se situar adequadamente (quer dizer, de uma maneira que garanta pelo menos a sanidade mental) em um mundo com tanto sofrimento, hipocrisia e nonsense. “O meu riso”, confessa, nos remetendo ao início do relato, “que a muitos parecia louco, era em verdade e apenas um pranto disfarçado”. Sua resposta a essa “dura e feia realidade de todos os dias, inclusive feriados e dias santos”, é mais um exemplo de sua integridade e não-conformismo:

Se não posso mudar o mundo, tampouco permitirei que o mundo me mude a mim, arrancando-me esse câncer de mistérios e heresias que é toda a minha riqueza e que faz com que minha voz não seja apenas o grunhido de um porco, nem meu olhar apenas o olhar de um peixe dentro do aquário. Aos mil professores que tentaram deseducar-me respondo-lhes com um piparote no cocuruto, exatamente como fiz ao médico que não soube descobrir a causa do meu pranto, e a toda a sua ciência oficial e cheirando a naftalina eu oponho a onisciência do meu instinto indomável e sem máscara, mesmo porque não existe (que eu saiba) nenhuma máscara de mil faces.
Mesmo que a custo de uma mente mais “saudável”. Antes louco.

::: A lua vem da Ásia ::: Campos de Carvalho :::
::: José Olympio, 2008, 192 páginas ::: encontre pelo melhor preço :::

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