[ Amálgama ]
por Ana Al Izdihar – Esta versão livre de Macário (de Álvares de Azevedo) feita pelo cineasta Christian Saghaard não se auto-explica e é de difícil degustação. Mas ao chegar o fim da fita não consegui imaginar outra maneira de narrar o que está proposto. O tema é bem interessante e por incrível que pareça, esquecendo o conceito de fidelidade, a adaptação parece seguir um paralelo ao livro. No Macário literário, Azevedo mostra seu intelectualismo exacerbado pontuado por uma narrativa que às vezes parece teatro, às vezes monólogo, ou ainda narração tradicional. O filme de Saghaard (em cartaz em algumas cidades), utiliza as ferramentas da narrativa cinematográfica para dar o toque surreal que a essência da ideia pede. E apesar de indigesto às vezes, confesso que gostei e vislumbrei talvez um novo jeito de contar estórias de suspense ou terror que venha a ser tipicamente brasileiro (se é que existe algo “tipicamente brasileiro”). Mas quem é esse Macário do filme? Um Macário que tem em suas raízes ligação com as forças das trevas, de uma maneira atávica mesmo. Enquanto Azevedo remete ao Fausto de Goethe, em que o personagem flerta com as trevas, mas às vezes parece ingênuo, em O fim da picada o Macário já pragueja bastante e é praticante assíduo de rituais satânicos, no século 19. E o que a Exu Mulher repete várias vezes a Macário – “antigamente o Diabo procurava pelo homem; hoje é o homem que procura o Diabo” – já é suficiente para colocar o Macário do filme no novo ambiente: a São Paulo dos dias de hoje. A força cega e absurda da Natureza na voz da Exu Mulher, do Saci e todas as manifestações do mal puro, se renovam na vida moderna de São Paulo, como toda imagem arquetípica. O ato de transluciferar está na renovação da sombra do perfil brasileiro, que oscila entre o malandro simpático, adolescente e vingativo do Saci até o puro mal – Exu Mulher – encarnado no egoísmo humano. A narrativa de Saghaard soa pessimista, pois ali o mal somente se renova e ganha mais forças com o passar dos anos. Ao nos colocarmos no lugar deste Macário, o que vemos? Que nem o discurso e as atitudes das pessoas mudaram com relação à violência e a busca do prazer individual. E ele, mesmo num ambiente novo, não parece tão surpreso, só mais agoniado. As vidas que ali de encontram são tocadas por ele indiretamente, já que sua missão é trazer o mal… Ao analisar o que nossa sociedade se transformou desde o século 19, e nos perguntarmos de onde vem tanta violência nos dias de hoje, não podemos esquecer que o mal é parte de nós, desde crianças. Nós somente o transluciferamos para o contexto atual. Enquanto estivermos cegos – como a mãe burguesa que se esconde no carro, a mulher que não compartilha a comida nem com o próprio cachorro, as crianças de rua que não sabem por que têm fome – ele, o mal, estará sempre sobre nós, nos dominando. E o monolito de Macário é o mesmo de todos nós: a fumaça, ou seja, a ilusão auto-imputada. O fim da picada toca em todos esses pontos de um modo surreal, com um figurino a todo tempo lembrando o vermelho e o preto, cenários bem apropriados, diálogos quebrados e pontuados. Recursos simples de efeitos cinematográficos são usados para as mais diversas associações e metáforas e caem muito bem na narrativa. Há até uma homenagem a Kubrick que me fez rir – e foi o único momento, juro! Só achei o som não muito claro e foi uma pena. Não sei dizer se era do filme ou da sala de cinema. No mais, é sim um filme pesado, mas se você está a fim de ver algo muito diferente e feito no Brasil, vale a pena prestigiar. |
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