Movimentos sociais numa gestão Dilma ou Serra
O lulismo desmontou a hegemonia política dos movimentos sociais dos anos 1980 e criou nova lógica, a partir do Estado. Esta lógica permanecerá num novo governo?
31/03/2010
Rudá Ricci
O drama dos movimentos sociais brasileiros na atualidade
Já escrevi sobre o fim da Era dos Movimentos Sociais no Brasil. Não necessariamente sobre o fim dos movimentos sociais, mas sobre a sua capacidade de forjar um projeto hegemônico ou poderoso junto à parcela organizada da sociedade civil e sua predominância no cenário das lutas sociais do país. A grande maioria dos movimentos sociais contemporâneos se transmutou em organizações, focadas em sua reprodução interna, de caráter mais privado que a cultura generosa dos anos 1980. Outra parte foi se esvaindo porque suas lideranças foram ingressando nos governos e esferas de gestão pública. E, ainda, parte das pastorais sociais e ONGs que apoiavam os movimentos sociais com cursos de formação e formulação de diagnósticos que auxiliavam na definição de estratégias políticas entraram em crise de identidade ou tomaram rumos próprios. Com efeito, as pastorais sociais vinculadas à Teologia da Libertação entraram, nos últimos dez anos, num ciclo de avaliações institucionais e busca de seu lugar numa paisagem estranha. Fincaram pés no comunitarismo cristão que pouco informa a respeito de uma nova institucionalidade pública ou mesmo auxiliam para garantir o empoderamento de populações antes absolutamente marginalizadas e que agora podem se representar em conselhos de gestão, estruturas de Estado inspiradas na Constituição Federal de 1988. O trabalho pastoral passou a ser mais de presença e denúncia, mas minguou em relação ao anúncio, a notícia da Boa Nova que forma a tríade pastoral. Minguou porque o seu papel político e social ficou em suspensão. Seria, hoje, algo próximo de uma ONG? Seria um movimento próprio, de cristãos? O impasse é o mais ácido e dramático de toda história da Teologia da Libertação brasileira. Se assumir o papel de liderança própria, muitas pastorais sociais temem abandonar seu papel de apoio, se aproximando do que sempre criticaram: a vanguarda política dos segmentos marginalizados. Mas como ser apoio e presença de segmentos sociais desorganizados e fragilizados (como populações ribeirinhas, quilombolas e agricultores descapitalizados e tradicionais)? Como ser apoio de segmentos sociais hoje organizados e com estruturas de apoio próprias (como MST, Movimento de Atingidos por Barragens e outros)?
ONGs tomaram seu rumo próprio. Lideram e organizam pautas específicas, não necessariamente vinculadas aos movimentos sociais. Muitas redes e fóruns de ONGs mobilizam, negociam, articulam politicamente, algo que, antes, era tarefa dos movimentos sociais.
Transição de governo e de atuação social
Mas todo este drama pode significar um aggiornamento, uma transição em virtude de uma nova realidade social e política do país. Neste sentido, vale refletir as tendências políticas que se abrirão com uma gestão federal sem Lula. Durante as duas gestões Lula ocorreu um enquadramento político de movimentos e organizações sociais do país a partir de uma lógica política estatal. Em outras palavras, o lulismo tutelou as organizações sociais que antes se definiam pela mobilização e resistência política permanente. Na gestão Lula, tais características tiveram uma visível inflexão. No lulismo, o diálogo institucional foi aberto, mas restrito. Lula fragmentou negociações, definiu arenas de discussão de pautas específicas (como as conferências nacionais), selecionou demandas (refluindo em todas iniciativas de participação direta na definição da peça orçamentária, como as audiências públicas para definição do Plano Plurianual, ocorridas no primeiro ano da primeira gestão e nunca mais repetidas) e, quando possível, criou fóruns mais restritos onde se impôs uma lógica absolutamente distinta dos processos de tomada de decisão da sociedade civil organizada (caso do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social).
Em muitos casos, o burocratismo oficial submeteu a lógica mobilista e assembleísta dos movimentos sociais e organizações populares. O lulismo desmontou a hegemonia política dos movimentos sociais dos anos 1980 e criou nova lógica, a partir do Estado. Enfim, o desejo de alterar a lógica estatal a partir da mobilização social foi revertido: foi a lógica estatal que subjugou o anti-institucionalismo e as práticas de democracia direta.
Esta lógica permanecerá num novo governo federal?
A pergunta tem sentido, embora as pistas para identificar tendências não são fartas. Concentro-me nos dois candidatos à sucessão de Lula que lideram, no momento, as pesquisas de intenção de voto: José Serra e Dilma Rousseff.
José Serra é um economista filiado ao que no passado se denominava de estruturalismo, se opondo á corrente monetarista. É estatal-desenvolvimentista, rígido no controle técnico sobre arroubos sociais e de mercado. E é um espécime ilustrativo do paulistano, aquele brasileiro tenso, que raramente sorri ou dá gargalhadas, workaholic contumaz, que pouco disfarça da arrogância aprendida desde a infância, de extrema racionalidade. É o que Weber denominou de liderança focada na competência e na disputa pública da lógica racional-legal. A competição técnica é a marca deste tipo de liderança. Perde um voto, mas não perde o tom professoral, de demonstração de competência. E Serra é filiado ao PSDB. Este partido tentou forjar uma relação com movimentos sociais. Com Mario Covas, aproximou-se da CNBB. Criou uma central sindical. Mas havia chegado tarde. O PT, a CUT e as pastorais sociais já haviam se transformado em força hegemônica desta expressão social. Por este motivo, tucanos sempre tiveram uma espécie de ressentimento ou precaução exagerada contra qualquer lógica de mobilização social que tivesse nas reivindicações sociais (as políticas eram melhor digeridas pelos líderes do PSDB) seu modus operandi. Algo que cheirava à turba descontrolada, que não casava com a racionalidade e impessoalidade da burocracia, da tecnocracia, do Estado. E, assim, criou-se o que uma linha da psicologia denomina de auto-sabotagem. Serra é o representante desta auto-sabotagem política e todos já sabemos o que será a relação entre seu governo e uma mobilização social mais apaixonada. O que poderá ser uma solução para a encruzilhada pela qual passam movimentos sociais, organizações populares e pastorais sociais. Haverá um adversário comum a ser enfrentado. Mas será, no máximo, uma rima, não uma solução.
Com o PT, os movimentos sociais e organizações populares tiveram, inicialmente, uma relação de mando contido. Os núcleos de base do partido imitavam as comunidades eclesiais de base ou mesmo as células de organizações de esquerda. Mas o poder que estas estruturas de base tinham era muito superior que as de suas inspirações. A base partidária desautorizou parlamentares que desejavam apoiar a eleição indireta de Tancredo Neves. O programa de governo do candidato Lula, em 1989, foi construído a partir de seminários e consultas presenciais a movimentos, organizações sociais e entidades que se localizavam em cada região do país, o que exigia um esforço descomunal e, não raro, gerava uma peça que era acusada de “colcha de retalhos”. Isto porque a filosofia de construção política era o “consenso progressivo”. Mas esta lógica foi se alterando nos anos 1990. E se alterou de vez a partir do advento do lulismo. De mando, passaram a ser consulta. E, de consulta, passaram a ser tutelados e enquadrados.
Mas Lula é a liderança histórica do mobilismo dos anos 1980. E, como tal, tem autoridade e capacidade de negociação, o que instituiu a tutela estatal sem muitos traumas.
Dilma Rousseff, contudo, não tem origem partidária no PT, nunca foi liderança de massas ou expoente do mobilismo da década de 1980. É técnica e adota um estilo tipicamente gaúcho, duro, direto. Como Serra, ri com dificuldade e está sempre tensa. É uma gerente clássica, controladora, racional. Não parece ter traquejo político, flexibilidade e carisma. Portanto, é algo muito distinto do lulismo. Tem, entre seus apoiadores diretos, José Dirceu e Fernando Pimentel, que levam a mesma marca: racionalidade, objetividade, força, controle, impessoalidade.
Com Dilma Rousseff, os dilemas dos movimentos sociais e organizações populares serão agravados ou o ideário de décadas passadas será efetivamente superado. Como tendência a partir do que ocorreu durante o lulismo (e tendo Lula como sombra permanente numa possível gestão petista) é provável que a segunda opção seja a vitoriosa. O realismo político e o pragmatismo deverão se espraiar sobre as organizações populares. Aquelas que permanecerem fiéis ao ideário de trinta anos atrás se transformarão, no caso desta hipótese se confirmar, em minoria raivosa, com pouca expressão pública, mas com forte autoridade moral. Esta minoria obrigará negociações permanentes, ajustes, mas sem força para alterar a lógica estatal-desenvolvimentista, o pragmatismo político, a tutela ou estatalização da sociedade civil. Enfim, não alterarão a lógica, mas terão influência sobre pautas e negociações específicas. Porque estarão isolados, mas não sem significado. Terão força simbólica, mas não material e organizativa.
Na política, previsões são sempre temerárias. Mas uma das funções das leituras sociológicas é a de identificar e aprofundar tendências. Tendências são indícios, possuem uma lógica que pode ser interrompida por inovações e acontecimentos não previstos. O que faz das análises algo próximo das interpretações das táticas que se confrontam em jogos coletivos. Garrincha já havia explicado para Zezé Moreira que táticas muito bem montadas dependem da “cooperação” do adversário. Mesmo assim, os técnicos continuam valorizados. As tendências e análises sobre elas vislumbram uma lógica e dão alento á razão. Mas não substituem nunca o conselho de Garrincha.
Rudá Ricci é sociólogo, doutor em Ciências Sociais, do Fórum Brasil de Orçamento, e diretor do Instituto Cultiva (www.cultiva.org.br). Mantém o blog www.rudaricci.blogspot.com
Fonte: BRASIL DE FATO.com.br
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