Renato Borghi
3 CIGARROS E A ÚLTIMA LASANHA
Dramaturgia de Fernando Bonassi e Victor Navas.
Direção de Debora Dubois.
Com Renato Borghi.
Cenário e Figurino: Cyro Del Nero e Debora Dubois.
Sonoplastia: Cacá Machado.
Iluminação de Alessandra Domingues e Marcos Franja.
Duração: 45 minutos.
Apresentada em Manaus, no Teatro do SESC, nos dias 18 e 19 de dezembro de 2010.
SINTO QUE O TEMPO SOBRE MIM ABATE SUA MÃO PESADA*
Por Jorge Bandeira**
Permitam-me alterar meu estilo de escrita neste último lampejo de crítica teatral do ano que ora agoniza. Falarei como um narrador que teve uma ano bom no Teatro, que assistiu boas peças e excelentes interpretações, esta com o ator Renato Borghi coroou meu ano de êxito, fechei bem esta safra 2010 de Teatro aqui em Manaus. Lembro que ia assistir a palestra-espetáculo do Borghi sobre o Teatro Brasileiro, mas por uma questão de arcada dentária o Borghi não teve condições de apresentar seu trabalho no dia previsto, chegando com uma puta dor de dente em Manaus, no outro dia não pude assistir, levava minha Carolina de 5 anos para algum festejo natalino. Assisti, porém, a exibição do filme-documentário O REI DA VELA, no teatrinho do SESC, onde tenho gratas satisfações, este teatrinho deve ser mágico ou algo parecido, pois sempre nos revela surpresas tais que nem mesmo o majestoso Teatro Amazonas é páreo para estas revelações estéticas e teatrais. Uma delas foi este monólogo magistral intitulado TRÊS CIGARROS E A ÚLTIMA LASANHA.
Em cena, o ator Renato Borghi, um mestre nesta arte da ilusão, nome que está amalgamado com a própria história de nosso Teatro, um ator que não basta em si mesmo, reinventando-se a cada projeto, acho até que ele pode ser o nosso Benjamin Button, novíssimo a cada ano que passa. Deve ser um alquimista perdido em nossa ribalta, descobridor de uma pedra filosofal do teatro, e que, gentilmente, passa a fórmula deste rejuvenescimento para a gente. Ouso dizer, também, Borghi não precisa apelar para nada, tudo é feito de uma forma tão natural e bonita, arte mesmo, nada que lembre o teatro romano em sua fase de degeneração.
A peça, escrita pelo Fernando Bonassi (de outro petardo teatral, o monólogo ENTRE FERRAGENS) e pelo Victor Navas, recebeu premiação na terra onde “deus é fidel”. Com todo o merecimento, não tenho dúvidas. Do que assisti em Manaus vou ter sempre em minhas reminiscências o alto poder de sedução deste Renato Borghi, de sua precisão como ator, da força que imprime em seu trabalho, de uma voz que ele trata como uma partner, que a carrega para onde quer, e que nos leva ao ponto precioso da reflexão neste texto que é um libelo sobre a determinação do homem num mundo que teima pelo absurdo e burocratização de situações extremas, condutoras aos níveis de sufocamento dos seres humanos. Absurdo? Não creio. Por mais que o texto de Bonassi e Navas remeta a algumas situações da dramaturgia de um Ionesco (lembro de um sobre a mecânica absurda de se preparar um ovo na culinária), ele tem um charme, um propósito claro em sua dinâmica. É um texto que me impressiona pela simplicidade e clareza dentro do caos em que este personagem talvez com um transtorno obsessivo compulsivo se encontra ao perder, de forma inexplicável, sua mão, e toda situação que advém deste fato deveras caótico, e que só torna a situação existencial dele inusitada, mas plausível de acontecer com qualquer um de nós.
E por isso estamos tão próximos dele, de suas loucuras, de seus surtos, de suas alegrias e decepções com este mundo, com as pessoas que o cercam, com as autoridades médicas do corpo multidisciplinar, com os transeuntes. Eis um homem que leva agora sua “mão de Eurídice” artificial, um marionete da circunstância da vida. Essa mão que o faz refletir sobre sua vida, seus amores, e que nós, espectadores destes 45 minutos de humor e sarcasmo, nesta tragicomédia, nos alentamos e acalentamos, sentimos compaixão por este homem maneta, por este ser subtraído de sua completude corporal.
Renato Borghi nos brinda com um retrato deste personagem em 3D, sim, pois consegue nos transmitir a integridade de sua personagem, sua verbalização, o que se passa em sua mente, seu relato inverossímel que torna-se verossímel, a expressão de sua emoção, sua reflexão e suas decisões, oscilantes ou não. Tudo que o espectador precisa para pulsar junto com ele, carregar também este fardo pesado, viver com ele e por ele. Tudo isso com rigor e meticulosidade teatral, mas não um Teatro da assepsia da técnica, mas com um equilíbrio como o definido por Denis Diderot em seu conhecido artigo “O Paradoxo do Comediante”. Uma balança fiel entre a razão e a emoção.
Renato Borghi é um mestre, usa com propriedade o monólogo interior, ele, um dos mentores do Teatro Oficina, atravessa sem pressa o mar de Stanislavski, não tem receio das ondas perigosas da interpretação. Como é fascinante assistir um trabalho com um ator que sabe das nuances necessárias para fazer com que embarquemos neste jogo lúdico chamado Teatro. Borghi canaliza sua emoção com apuro, o texto é falado e nada se perde, mesmo nos sussurros eventuais do personagem.
A iluminação do espetáculo cristaliza as passagens de forma eficaz, e é feita para induzir ao espectador que algo na persona, no ânimo e na emoção do personagem alterou-se, trabalho que a direção imprimiu como marca indelével e que funciona do início ao fim da peça, incluindo aí as marcas pontuais e geométricas da movimentação do infeliz personagem que perdeu a mão. E de absurdo em absurdo este personagem também lembra um clown urbanoíde, um ser engolido pela cidade em sua loucura citadina.
A sonoplastia de extremo bom gosto é outro aperitivo para se acompanhar com esta lasanha teatral, colocar MORPHINE, do saudoso Mark Sandman é assegurar coisas agradáveis em níveis de audição. O som da cafeteira nos faz tomar o café junto com o maneta carismático, de conversar no restaurante e dizer: quando você volta pra Manaus, meu chapa, vai demorar muito? Você precisa dar uma maõzinha pra gente aqui nesta cidade encravada no meio da Floresta Amazônica. Obrigado Borghi, promíscuos e embaixada do Teatro brasileiro, terminei o ano assistindo um grande Teatro.
*Frase famosa de um poema idem de Carlos Drummond de Andrade.
** Amazonense de Manaus. Historiador, crítico de arte, músico, tradutor, dramaturgo, viciado em Teatro.
Manaus, 30 de dezembro de 2010.