dezembro 09, 2010

Meus vinte anos bem vividos, segundo Bruno Cava

PICICA: "Houve um tempo em que eu achava que 20 anos era muito e eu olhava para alguém com 30 anos e aquilo me parecia um monstro cubista."

8 de dezembro de 2010


Meus vinte anos bem vividos.



Houve um tempo em que eu rolava na cama sussurando pra lua, entre livros de Kerouac e CDs do 10.000 Maniacs, Cranberries e Pearl Jam, sabendo que atrás do muro de banalidade de minha vida haveria um jardim de delícias incomparáveis.

Houve um tempo em que eu achava que 20 anos era muito e eu olhava para alguém com 30 anos e aquilo me parecia um monstro cubista.

Houve um tempo em que eu vi como a maioria das pessoas de mais de 30 está morta e alguém ensinou que não se deve confiar em alma penada.

Houve um tempo em que eu deveria optar entre o grunge de Seattle e o marxismo de almanaque, cômodos escapes da revolta de primeira hora.

Houve um tempo em que eu concluí que ter 20 anos era, de fato, muitíssimo.

Houve um tempo em que eu jogava a Defesa IndoBenoni, idolatrava o cavalo negro de g8 e o bispo branco fisheriano de f1 e exauria meus miolos em tardes de fidalguia no clube de xadrez.

Houve um tempo em que eu chorei a morte de quem eu já não acredito mais.

Houve um tempo em que eu lia Barthes e Niezstche ao som do Joy Division, embriagado de poesia maldita.

Houve um tempo em que eu achava que ler William Gibson era atingir o nirvana nerd.

Houve um tempo em que eu interrompia apresentações de axé para pedir que tocassem Raul.

Houve um tempo em que eu me movia tão rápido que muitas pessoas me pareciam estátuas de gesso, uma coisa de louco.

Houve um tempo em que eu começava meu dia bocejando a data: Lugar Tal, 17 de outubro de 1999.

Houve um tempo em que eu nunca tinha tempo pra coisa alguma, todos me incomodavam e tudo me perturbava, mas eu passava horas olhando pro teto sem fazer nada.

Houve um tempo em que decidi fazer apenas amigos loucos de amor pela vida, no que fracassei redondamente, mas valeu a pena.

Houve um tempo em que eu me recusava a usar o verbo ser.

Houve um tempo em que eu degustava as manhãs como pequenos doces húngaros, misteriosos e picantes, como aquela menina esquisita que amei perdidamente uma vez e nunca mais vi, ainda bem.

Houve um tempo em que eu virava noites com café e guaraná torturado por hidrologia amazônica, motores assíncronos e a pilha eletrolítica.

Houve um tempo em que me virei pra falar com o colega de quarto e enxerguei uma samambaia, no mesmo dia saí de uma festa e o Titanic me forçou a parar o carro e dar passagem.

Houve um tempo em que eu não gostava de meu reflexo na janela do ônibus.

Houve um tempo em que eu participava da polêmica entre os fãs de Oasis e Blur, tomando o partido do Noel, achava-o o letrista da geração.

Houve um tempo em que eu atribuía falsamente frases a pensadores, nunca ninguém descobriu.

Houve um tempo em que eu sonhava viver misantropo como o Monstro do Pântano.

Houve um tempo em que eu maceteei a Defesa Alekhine, mas jamais cheguei a jogá-la, por covardia. 

Houve um tempo em que eu nadava 60 piscinas em todos os estilos e tomava cinco copos de abacate bem cremoso sem açúcar.

Houve um tempo em que eu jurei que não atenderia àquela pessoa, mas bem que eu queria que ela me ligasse de verdade.

Houve um tempo em que deixei de comer canapés em vernissages da esquerda ipanemense e descobri a obviedade que o comunismo não é pra dividir a pobreza, mas a riqueza.

Houve um tempo em que eu marchei qual prussiano sobre carros estacionados na avenida, imprecando diante de um céu plúmbeo de indiferença.

Houve um tempo em que eu e ela na cama se abria uma outra dimensão de claros e escuros onde nossos corpos eram mais do que nós mesmos.

Houve um tempo em que eu me revoltei contra os laboratórios de físico-química e durante 22 relatórios semanais consecutivos escrevi, no meio do ramerrão técnico, "a experiência valeu o boi", e jamais fui pego.

Houve um tempo em que eu apreciava sorrisos suaves e ternos, quase súplices mas não frágeis, e achava ainda mais bela uma mulher bela e triste.

Houve um tempo que eu inquirido sobre a religião, respondia sagrando-me o anticristo.

Houve um tempo em que eu dançava como um jegue e escrevia como um jegue.

Houve um tempo em que eu preferia Isaac Asimov a Aldous Huxley, mas isso não durou muito.

Houve um tempo em que eu não gostava de sorvete de chocolate ou creme, mas comia sanduíche com mostarda e geléia de morango.

Houve um tempo em que eu via os dias repetirem-se sem nada acontecer, como uma caravela holandesa numa calmaria insistente do Pacífico Sul, e Camões ali no canto sonetando.

Houve um tempo em que eu surpreendi a pena dançando pela primeira vez e me vi escrevendo algo de mininamente real nesta vida, esse foi o dia mais radiante.

Houve um tempo em que eu inseria sarcasmo gratuito nas entrelinhas de conversas amenas, e alguns desconfiavam.

Houve um tempo em que senti a ternura de um corpo feminino banhado pela lua numa praia caiçara.

Houve um tempo em que eu me sentia o filho do vaudeville com o monólogo.

Houve um tempo em que eu saí de casa de mala e cuia, e fui ao encontro do destino.

Houve um tempo em que eu mantinha aranhas de estimação, peludas, antipáticas.

Houve um tempo em que eu agucei minha aptidão inata de irritar as pessoas.

Houve um tempo em que aprendi a saborear as ressacas, quanto maior, maior o prazer.

Houve um tempo em que eu achava cool palavrear com putsch, ersatz, cul-de-sac, weltanshaung, tutti quanti e leitmotiv.

Houve um tempo em que eu auferia erudição na banca de jornal e em intermináveis tardes-noites-manhãs de VHS.

Houve um tempo em que eu dançava como um asno e escrevia como um derviche.

Houve um tempo em que eu não sabia mais se não tinha mesmo fé em alguma coisa.

Houve um tempo em que eu me entreguei todinho à sensualidade praiana e seu meio-dia de sal, sol e mar.

Houve um tempo em que tudo fez sentidos: não havia Sentido.

Houve um tempo em que eu chamava Henry Miller de meu irmão e Dostoievski de meu imperador.

Houve um tempo em que eu cruzava estradas sem fim atrás de miragens.

Houve um tempo em que eu dilacerei minha juba de leão por causa de um rabo de foguete.

Houve um tempo em que eu havia decorado 50 variantes e subvariantes do Gambito Evans e 80 aforismos de Wittgenstein, saltitava cabeça-a-cabeça com Shakespeare em inglês arcaico iâmbico pentameral, sabia calcular a derivada de arco-tangente de xis, já esboçava ler Joyce no original (!!), mas falhava nas coisas mais banais que tenho vergonha de agora contar.

Houve um tempo em que me convenci de que tudo é santo, tudo é santo, tudo é santo.

Houve um tempo em que eu assisti a Terra em Transe cinco vezes seguidas, saí para a boemia que nem um demônio, encarei um segurança de boate e convoquei um exército de mendigos para destruir o shopping.

Houve um tempo em que eu prometi jamais fazer um mestrado mingau, porque não queria mais enrolar ilustres mortos com infindáveis papiros acadêmicos, mumificando-os.

Houve um tempo em que eu deixei de ler a Folha de São Paulo.

Houve um tempo em que eu deitava as pessoas em minha cama de Procusto e fazia a idéia errada de todas elas.

Houve um tempo em que eu sorvi da solidão num nível ontológico, quando percebi que os corpos, na verdade incortonável do rosto e da carne, poderiam se combinar como no jogo tetris.

Houve um tempo em que eu ganhei uma prova dos nove.

Houve um tempo em que eu tinha a certeza que as palavras glamourosas, românticas, sentimentais, foram inventadas para ocultar a realidade bruta do assalto sexual.

Houve um tempo em que eu queria ver o oco.

Houve um tempo em que eu troava de canções libertárias e meus olhos chamejavam do fogo do juízo, mas era incapaz de subjugar medos bobos.

Houve um tempo em que eu passei a ver as coisas do mesmo jeito que elas são, foram e sempre serão, só que passei a vê-las um pouquinho diferente, e esse pouquinho desde então vem fazendo toda a diferença.

Um comentário:

Bruno Cava disse...

Valeu, Rogelio, muito agradecido. Tomei a liberdade de reproduzir a colagem, com autoria, em http://quadradodosloucos.blogspot.com/2010/12/glossario-e-colagem-sobre-ultimo-post.html
Abraço, tamus juntos e misturados.