dezembro 05, 2010

O primeiro Claude Chabrol, por Bruno Cava

PICICA: "Nas Garras do Vício (Le Beau Serge), de 1958, foi o seu primeiro longa-metragem. Embora mais lembrados como deflagradores do movimento sejam Os Incompreendidos (Truffaut, 1959) e Acossado (Godard, 1960), ou mesmo O Signo do Leão (Rohmer, 1959), foi Chabrol o autor do primeiro filme a introduzir a nouvelle vague."

G1KDO | 1 de outubro de 2010 
1er succès de Claude Chabrol
"Nouvelle Vague" cinématographique des années 60

O primeiro Claude Chabrol.


Crítica: Nas Garras do Vício (Claude Chabrol, França, 1958)


O cineasta francês Claude Chabrol morreu em setembro deste ano, aos 80 anos. Educou-se nas selvagens noites cinéfilas da Cinemateca Francesa, em Paris, onde se apaixonou por Fritz Lang, Jean Renoir, Howard Hawks, Robert Aldrich, Nicholas Ray e sobretudo Alfred Hitchcock. Sobre a poética cinematográfica do último, escreveu influente livro que já nasceu clássico. Participou dos Cadernos de Cinema originários, a lendária revista de crítica fundada, em 1951, por André Bazin e Jacques Doniol-Valcroze, cerzindo o grupo de diretores que, na década seguinte, seria conhecido por nouvelle vague: Jean Luc Godard (1930- ), Jacques Rivette (1928- ), François Truffaut (1932-1984) e Eric Rohmer (1920-2010).

Nas Garras do Vício (Le Beau Serge), de 1958, foi o seu primeiro longa-metragem. Embora mais lembrados como deflagradores do movimento sejam Os Incompreendidos (Truffaut, 1959) e Acossado (Godard, 1960), ou mesmo O Signo do Leão (Rohmer, 1959), foi Chabrol o autor do primeiro filme a introduzir a nouvelle vague. O longa ganhou o prêmio Jean Vigo e um panegírico nos Cadernos: "Que importa se não conseguimos abrir todas as portas? o importante é nos deixarmos conduzir por ele pelos caminhos do sonho".

Nas Garras do Vício é um filme de mise-en-scène, bem ao gosto da patota nuvelevaguesca. Isso quer dizer que o núcleo da composição está no trabalho do diretor. É só ele --- e não o roteirista ou o produtor --- quem assegura o caráter autoral do cinema. Num filme de mise-en-scène, se esforça conscientemente para afirmar um estilo, para impregnar a narrativa de escolhas, filiações e sutilezas que marcam a sua singularidade na história do cinema. Trata-se de um como filmar, de um certo olhar, de uma determinada maneira de escrever com a câmera.

Essa caracterização do estilo não depende propriamente da seleção de uma temática ou gênero, porque, para a nouvelle vague, o cinema enquanto arte adere a qualquer assunto e a qualquer gênero. Pode-se perfeitamente fazer um filme magistral sobre assuntos frívolos e temas banais. Para comprovar a tese, é isso que será feito por essa escola de cineastas --- veja-se Acossado, por exemplo, e seu enredo pulp policialesco.

Nas Garras do Vício toma por assunto o reencontro de dois amigos de infância, François e Serge, depois de muitos anos, quando um deles retorna à cidade natal para se recuperar de uma tuberculose. A amizade se tensiona, à medida que não são mais os mesmos, que trilharam diferentes caminhos, num conflito crescente ao redor de uma adolescente local, Marie. O roteiro é simples, o drama marcha sem maneirismos, e a fotografia se consome nas locações plácidas da cidadezinha, tomando os nativos por figurantes. Um dos protagonistas, Serge (Gérard Blain) é sacado direto do panteão de Nicholas Ray, numa atitude à James Dean. Toda essa economia de elementos para permitir que o trabalho de direção ocupe o primeiro plano.

Chabrol pontua a ação com temas musicais do cinemão clássico. Chama a atenção a pouca naturalidade das músicas em relação ao filmado, o que, aos poucos, se mostra deliberado. A estranheza dá lugar à percepção de um jogo com regras próprias, em que significados musicais auferem novos sentidos diante das imagens.

A movimentação de câmera é tão obsessivamente artesanal, que parece ter sido pensada toda de antemão, de ponta à ponta. Daí os enquadramentos precisos, os travellings elegantes, os golpes oportunos de câmera, tudo para inervar planos-seqüências com o máximo de semântica. Chabrol aproveita cada detalhe da paisagem, a posição do horizonte, a existência de um espelho ou uma janela, a luz ambiente, e tira disso tudo uma sintaxe cinematográfica que é e será seu estilo mesmo.

Repare-se, por exemplo, na seqüência que começa com François (Jean-Claude Brialy) sentado, tomando café-da-manhã no refeitório da pousada. A dona da pousada chega, serve o pão e o café, volta para dentro da casa. Então François percebe que faltou o açúcar, e pede em voz alta para ela retornar e completar o serviço. Mas a dona não volta e, estranhamente para alguém tão solícito a história toda, manda ele mesmo ir buscar no balcão. François se levanta e aí entendemos o porquê disso: Chabrol quer filmá-lo pelo espelho, otimizando o espaço cênico. Pensamos que é exibicionismo, mas não. Quando François efetivamente pega o pote de açúcar, depara-se de supetão com a diabólica Marie (Bernardette Lafont), que o diretor colocara no fora-do-plano e que aparece quando a câmera vai buscar a trajetória de François. O balé de enquadramentos e lances é absolutamente singular e mostra a forma tão pessoal de Chabrol contar esses pequenos acontecimentos.

Impressiona o fato de Nas Garras do Vício ser o filme de estréia. Denso e conciso, Claude Chabrol formula uma poética realista sem renunciar à beleza, numa utopia cuja concretização só pode dar-se no âmago do real mesmo, de sua simplicidade e sua agudeza.

Nas Garras do Vício, 1958, França, Claude Chabrol, 35mm, 87 min.
Em DVD pela Lume Filmes (lançamento em novembro de 2010).

Fonte: Quadrado dos Loucos

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