Foto: Rogelio Casado, Hospital Psiquiátrico Eduardo Ribeiro, 1892-...
Ao ler um livro de cartuns antigos, deparei-me com um clássico no qual o personagem anuncia apocalíptico: "O Fim está próximo".
No momento em que se anuncia o desmonte progressivo da instituição psiquiátrica no estado do Amazonas, é de se perguntar: o manicômio está próximo do fim? Pelo andar da carruagem, sim.
Nesse percurso, algumas questões apontadas num artigo publicado no Jornal Amazonas em Tempo, em junho de 2005, merecem reflexão sobre o desafio que é a desinstitucionalização em saúde mental.
O fim do manicômio
Mesmo fora do manicômio, a assistência aos portadores de sofrimento psíquico ainda sofre a influência dos dispositivos manicomiais. A clínica, que campeia nos serviços, públicos e privados, baseia-se em fortes efeitos apassivadores. Não é nenhuma novidade que os conflitos vividos em sociedade estão sendo medicalizados. Há um público refém do monopólio de técnicas estandarizadas, na medida em que foram desprezadas as questões culturais, cognitivas e subjetivas que tornam o funcionamento dos serviços de saúde alvo do monopólio de um modelo obsoleto.
Quando, então, serão enfrentadas as diversas demandas da “população psiquiátrica”? Qual o papel das instituições de ensino? Qual o perfil desejável dos profissionais “psi”, diante da emergência de novos paradigmas de atenção em saúde mental?
Na academia não há quem desconheça a importância de combater o estigma social provocado pelos transtornos subjetivos. Porém, como sustentar os direitos dos portadores de sofrimento psíquico se o modelo manicomial insiste em pairar sobre nossas cabeças? Ao modelo clássico de segregação da diferença, baseado numa falsa moral, a nova discriminação aos transtornos psiquiátricos ganha suporte na suposição de que a “dor de existir” é produto de complexas interações neuro-químicas, daí o uso abusivo de psicofármacos.
Porém, há academia e academia. Na primeira há mera reprodução do saber. Mas é da última, onde há constante produção do saber, que chovem advertências: “Tratar os efeitos da 'doença mental' e impedir o estigma e a discriminação implica muito mais do que o domínio de uma técnica. Faz-se necessário a criação de dispositivos grupais e institucionais que estimulem a análise e a quebra de defesas corporativas. Faz-se necessário o confronto diário com nossas próprias dimensões subjetivas e pessoais. Faz-se necessário romper com a colonização mental a que fomos submetidos. Faz-se necessário a análise dos processos de poder e conflitos políticos, ideológicos e institucionais vividos no cotidiano dos serviços”.
Desinstitucionalização em saúde mental é um processo que requer a recuperação da complexidade e do desenvolvimento das diversas aptidões de nossas vidas e de nossas clientelas. Que cada um indague se está amadurecido para o desafio de criar um projeto teórico, político e assistencial que contemple as novas perspectivas definidas na Lei Paulo Delgado - esta, sim, fruto de experiências concretas baseadas numa clínica de efeitos desapassivadores.
Se os dispositivos institucionais ainda tardam entre nós é porque o desmonte do modelo manicomial ficou no meio do caminho da história da Reforma Psiquiátrica no Amazonas, resultante da cumplicidade conformista entre a sociedade civil e a sociedade política. Cumplicidade que perderia sua força no início deste século. Recuperar o elo perdido dessa história não é reivindicar por uma Reforma já acontecida, cujos ideais caducaram, mas apostar na sua vertente mais radical: o fim dos manicômios. A clínica antimanicomial é o seu principal instrumento.
Manaus, junho de 2005
Rogelio Casado, especialista em Saúde Mental
Coordenador do Programa Estadual de Saúde Mental
E-mail: rogeliocasado@uol.com.br
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