junho 28, 2006

Depoimento de Eliana Simonetti

Foto: Museu do Estado de São Paulo - MASP








O movimento antimanicomial paulistano
tem feito do MASP o local simbólico da luta
pela inlcusão social dos portadores de
sofrimento psíquico.

Nota: A paulistana Eliana Simonetti é jornalista. Seu depoimento sobre os loucos de rua lança um outro olhar sobre as relações entre eles e a comunidade da região onde vivem. Mas, é quando, generosamente, disponibiliza as memórias do seu pai, Irineu João Simonetti, advogado, 76 anos, nascido na região do Vale do Ribeira, uma das regiões mais pobres do estado de São Paulo, que se percebe uma matriz inspiradora de que uma outra relação é possível com os loucos, para por fim à violência da psiquiatria institucional. Casada com o psiquiatra Paulo Barnabé, um dos tradutores de um artigo do psiquiatra Franco Basaglia, intitulado "O Homem no Pelourinho", que está por merecer publicação por uma editora de porte nacional. Com Paulo fotografei Dirce, uma louca de rua na cidade de Diadema, onde fazíamos residência médica em psiquiatria social (a ser publicada brevemente neste blog). Leia o depoimento sobre os loucos de rua enviado por Eliana através de e-mail.

Depoimento de Eliana Simonetti

Rogelio,

Tenho algumas histórias sobre loucos de rua.
Uma, de minha infância, era de um homem que vivia na avenida Santo Amaro, em São Paulo, próximo à antiga fábrica do laboratório farmacêutico Wellcom.
Era um homem barbudo, sempre muito sujo, com folhas secas penduradas na barba, que andava o dia inteiro, e de vez em quando falava alto, coisas sem nexo.
Não conversava com ninguém. As pessoas do bairro lhe davam comida, naquele tempo em que ninguém tinha medo de sair de casa com um prato de comida na mão e oferecer a um passante, sem que ele precisasse pedir.
Viveu anos assim. Talvez dez. Depois, desapareceu, sem mais nem menos. Nunca mais foi visto.

Há um louco famoso em São Paulo que vive na avenida Pedroso de Moraes, no alto de Pinheiros. Montou uma cabana de plástico e lá dentro guarda suas coisas... sabe-se lá o que. De vez em quando, a polícia retira os mendigos de rua para realizar eventos (como maratonas e coisas do tipo), mas ninguém toca nesse homem. Ele é calígrafo. Muita gente leva coisas para que ele copie, com letra bonita. A molecada fica batendo papo com ele, mas fala sozinha, porque ele não tem disposição para responder muita coisa. Escreve o dia inteiro. E observa o movimento. Não sei de onde veio, ou porque se tornou morador de rua, mas é um homem forte, que não está ali por acaso. Escolheu viver assim, e ninguém é capaz de tirá-lo dali. Como ele se alimenta? Muita gente leva coisas para ele. Comida, agasalhos, água limpa... ele vive bem. Escova os dentes de manhã, fecha bem sua barraquinha, senta no gramado e escreve, escreve, escreve... está lá, que eu saiba, há 15 anos no mesmo lugar. Bairro de gente rica. E é gostado por todos os vizinhos.

Há uma mulher que de vez em quando aparece na praça Panamericana, em Pinheiros, São Paulo, fazendo discursos em altos brados, sem pé nem cabeça. Sempre bem arrumadinha, cabelo penteado, não deve morar na rua. Não pede nada a ninguém. Deve ter família e sai durante o dia para fazer seus discursos. À tarde desaparece.

No centro vive um morador de rua que conheço bem. Foi jornalista em Brasília durante muitos anos. É epilético, e enquanto trabalhou tomava os medicamentos direitinho. Um dia parou de se medicar, começou a ver discos voadores, veio para São Paulo e vive na rua, contando casos para quem quiser ouvir. Os bares e restaurantes do centro sempre têm alguma coisa para dar a ele quando tem fome. Antigos colegas jornalistas levam roupas e agasalhos no inverno. Ele não reconhece ninguém. Fala de seres extra-terrestres, recusa-se a ser medicado ou internado, diz que conhece seus direitos e que só sai de onde está morto. Então vai ficando, há 12 anos. Chamase Walter Marques. Seu irmão é um importante correspondente de um grande jornal paulista nos Estados Unidos.

Todos os loucos de rua que conheci eram mansos, ficavam na deles, não incomodavam ninguém. E eram bem tratados pela comunidade que vivia na região em que estavam.

São histórias curtas, não sei se te servem.
São Paulo tem muitos loucos de rua. E muitos moradores de rua que não tem nada de loucos. Além de muitos loucos que vivem bem, em casas bacanas, com bons empregos. Não acho que haja muita diferença entre essas gentes.

Mas além dessas lembranças, meio vagas, tenho aqui um depoimento bacana do meu pai. Ele tem 76 anos. Nasceu no interior de São Paulo, no Vale do Ribeira, região mais pobre do estado, em 1930. Um dia resolveu escrever suas reminiscências de infância, um livro de memórias que é um pouco da história de Pariquera-açu. Esse é um trecho.

Vou transcrever pra você:

"Os ensandecidos, os alienados, os loucos, são aqueles que fogem, mais que nós à curva da normalidade. Não me refiro aos que perdem seu controle crítico por bebida, e depois voltam às atividades úteis e ao convívio da família. Há os alienados agressivos em relação aos outros e a si próprios e há os mansos. Destes há os macambúzios, enfezados, introvertidos e há os de uma mansitude quase alegre.

Antonio Felipe compunha o último grupo. Morava em Iguape. Dele dizia-se haver sido contador, de boa letra e muitas letras, leitor de livros, até que lhe fugiu o tino. Homem na quadra dos 40, alto, de bom porte. Quando ele chegava corria a notícia entre a molecada que logo lhe fazia cortejo, chamava seu nome, pedia-lhe que declamasse... Barítono, de timbre tonitroante, declamava Gonçalves Dias e outros. A figura era ridícula, vestido ao normal, de sapatos ou tamancos, chapéu de palha de aba estreita na cabeça e quase sempre com uma lata, dessas que vinham com querosene, de 20 litros, sobre o chapéu (sem rodilha), meiada de água. Para que a carregava? A sua loucura devia dar-lhe as razões, para que andasse a prumo, a conduzir tão incomodo objeto, a forçar-lhe o equilíbrio, a determinar-lhe o passo ritmado, corpo estável, para que não entornasse. Por vezes vinha do lado de Registro, com destino a Iguape, outras na mão contrária, sempre a pé.

Conta-se que, vezes várias, sua mãe dava-lhe dinheiro para que fosse comprar um pão ou um maço de fósforos e Antonio Felipe sumia. Vinte dias após, lá vinha ele com o item encomendado. Onde você foi? perguntava-lhe a mãe. Até Santos, sob a linha do telégrafo, andara ele longa caminhada -- de 200 quilômetros ou mais -- para comprar os produtos que havia em qualquer venda da cidade.

Alegrava-nos ver aquele homem ereto, caminhando como se tivesse de ir a algum lugar -- e tinha, e ia -- descompromissado com a vida, com a sociedade, com a sua própria subsistência. Não causava piedade, a sua figura despojada, algo alegre, algo cômico. Na porta em que parasse havia um copo de água fresca ou um prato de comida, como se cada qual expiasse, na assistência que lhe dava, as loucuras que lhe iam na alma.

Não sei quando deixou de percorrer as estradas e as picadas, nem se morreu algures, no afã de vencê-las... A loucura de Antonio Felipe tinha algo de etéreo, de sonhador...é como se ele pousasse, ao entrar nas cidades, para percorrer o casario, declamar seus versos, mitigar sua sede e depois, ao ultrapassá-los, alçasse vôo até seu próximo pouso sem nunca interromper sua jornada.

De outro feitio era Maximiano, de Pariquera. Morava num sítio atrás da caieira, na linha Senador Prado. Inteligente, sagaz, calado e oportunista. Andava de bengala, e quase sempre com um saco às costas, vazio ou com alguma coisa: banana, mandioca, mangarito, para vender. Tinha as mãos rápidas e os braços longos e, segundo se dizia, pilhava à noite. Seu sítio? Chão de terra batida, algumas bananeiras, uma toça de bambu, casa tosca de taipa, mais embaixo, por caminho batido a pé, o rio onde se abastecia. Casmurro, não tolerava visitas. Corria todas, de bengala alçada.

Ouvi, não sei se é verdade, que morreu à míngua, em seu casebre, assistido por poucos que tomaram consciência de sua ausência e se apiedaram dele.

João Euzébio, o tenente, remanescente dos tempos da colônia. Tenente do que? Não há registro. Morava numa chácara. João Euzébio, o eremita, fechado em sua casa alta do chão para não pegar as águas das cheias, assoalhada, com paredes em jissara madura rachada e amarrada com cipó, formando um telado grosso de ripas verticais e horizontais, sobre as quais fora aplicada argila batida, solta aqui e ali, coberta de telhas, sem forro, com janelas pequenas.
Papai dizia-me que ele tivera comércio e fora abastado. Sobre seu comércio, conta-se que seu comportamento iracundo dava oportunidade a situações constrangedoras. Se estava sentado, atrás do balcão, e chegava freguês que lhe pedia 100g de fumo de corda, respondia em sua linguagem sincopada que não se levantaria para vender 100g de fumo, e assim despedia o comprador.

Tomei consciência de sua presença quando, com meus seis ou sete anos, demandava o campo de futebol. Ele devia ter para mais de 60 anos. Nessa época, se nas nossas peladas deixávamos, por descuido ou imperícia, que a bola lhe atingisse a casa, saía bravo, prometendo cortar a bola e nos bater.

São três tipos diferentes. O primeiro andarilho, portador de uma bonomia que nos encantava. O segundo prestava-se às nossas folias, algazarras e provocações. O terceiro, furibundo, nos atemorizava.

As histórias são dos anos 1940. Quem conta é Irineu João Simonetti, que hoje é advogado em São Paulo".

Espero que alguma coisa possa ser útil ao seu projeto.

Beijos,

Eliana
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