junho 20, 2006

Loucos de rua da nossa infância

Foto: Rogelio Casado, Praça São Sebastião, 2005
Manaus-AM




















Para Lúcia Antony

Quando saia do plenário da Câmara dos Vereadores de Manaus, onde participei da Tribuna Popular em comemoração ao Dia Nacional de Luta Antimanicomial - dia 18 de Maio - como fundador da Associação Chico Inácio (ong de familiares, usuários e técnicos de saúde mental), a vereadora Lúcia Antony, do PC do B, sensibilizada com o empenho dessa entidade na construção da cidadania e na inclusão dos loucos na vida da cidade, parou para dois dedos de prosa.

Emocionada, Lucia Antony lembrou dos loucos da nossa infância, principalmente dos que escaparam da psiquiatria, da medicalização e do hospício. Chamou atenção para a importância de resgatarmos a memória dos nossos "loucos de rua", que, diferentemente dos andarilhos, têm uma forte ligação com o ambiente onde vivem, ao traçar seus misteriosos percursos afetivos. Ainda hoje eles estão presentes no cenário urbano, lembrando a mobilidade social da loucura na Europa do final do século XV, embora desprovidos da representação a ela conferida no "teatro do mundo", a que se referiu o filósofo Michael Foulcault.

O desafio está lançado. Quem se habilita a escrever lembranças sobre os loucos da nossa infância?

Como fonte de estímulo, leia esse belo poema, que dedico à companheira Lúcia Antony.

LOUCOS

José Paulo Paes Leme

“Ninguém com um grão de juízo ignora estarem os loucos
muito mais perto do mundo das crianças do que do mundo
dos adultos. Eu pelo menos não esqueci os loucos da minha
infância.
Havia o Elétrico, um homenzinho atarracado de cabeça
pontuda que dormia à noite no vão das portas mas de dia
rondava sem descanso as ruas da cidade.
Quando topava com um poste de iluminação, punha-se a
dar voltas em torno dele. Ao fim de certo número de voltas,
rompia o círculo e seguia seu caminho em linha reta até o
poste seguinte.
Nós crianças, não tínhamos dúvida de que se devia aos
círculos mágicos do Elétrico a circunstância de jamais
faltar luz em Taquaritinga e de os seus postes, por altos
que fossem, nunca terem desabado.
Havia também o João Bobo, um caboclo espigado,
barbicha rala a lhe apontar o queixo, olhos lacrimejantes
e riso sem causa na boca desdentada sempre a escorrer de
baba.
Adorava crianças de colo. Quando lhe punham uma nos braços,
seus olhos se acendiam se acendiam, seu riso de idiota ganhava
a mesma expressão de materna beatitude que eu me
acostumara a ver, assustado com a semelhança, no rosto
da Virgem do altar-mor da igreja.
E havia finalmente o Félix, um preto de meia idade sempre
a resmungar consigo num incompreensível monólogo. A
molecada o perseguia ao refrão de ‘Felix morreu na guerra!
Félix morreu na guerra!’
Ele respondia com os palavrões mais cabeludos porque o
refrão lhe lembrava que, numa das revoluções, a mãe o
escondera no mato com medo do recrutamento, a ele que
abominava todas formas de violência.
Quando Félix rachava lenha cantando, no quintal de nossa
casa, e, em briga de meninos, um mais taludo batia num
menor, ele se punha a berrar desesperadamente: ‘Acuda!
Acuda!’ até um adulto aparecer para salvar a vítima.
Como se vê, os loucos de nossa infância eram loucos úteis.
Deles aprendemos coisas que os professores do grupo e do
e do ginásio não os poderia ensinar, mesmo porque,
desconfio, nada sabiam delas”.
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