junho 22, 2006

O Delegado do Diabo e a Gaivota
















Chamava-se em vida José Ribamar Affonso. Mas era conhecido, carinhosamente, como "Delegado do Diabo". Consta que o apelido lhe foi dado pela imprensa dos anos 1960/1970, quando Ribamar assumiu o Departamento Estadual de Trânsito. Tentou-se identificá-lo com um outro "delegado", de nome Fontenelle, que no Rio de Janeiro se notabilizou por comandar, com mão de ferro, o trânsito caótico da Cidade Maravilhosa. Confrontada as duas experiências, o nosso "delegado" se distinguiu pelo uso de métodos educativos. Por exemplo: para disciplinar o cidadão mal educado, do interior de um fusca, munido de um megafone, advertia os infratores sem usar o talonário de multas. Quanta falta fez Ribamar, quando a cidade cresceu vertiginosamente devido a migração provocada pela emergente Zona Franca de Manaus. Despreparadas, autoridades sem nenhuma vocação pedagógica deixaram crescer a indústria das multas, deixando para trás o exemplo de respeito à cidadania do velho "Delegado do Diabo".

Ribamar era um homem de múltiplas qualidades. Dizem que, se queremos conhecer um homem, devemos visitar sua casa. A moradia de Ribamar na Avenida Getúlio Vargas, quase esquina com a Rua Henrique Martins, onde ainda moram seus familares, até hoje é um exemplo de amor à cidade. Na frente da casa, das dezenas de oitis plantados pela municipalidade em via pública, foi a única que mereceu um cuidado especial: aos pés da árvore foram plantados delicados arranjos florais, embelezando um dos raros passeios públicos de uma cidade de calçamento precário. Mas é o no interior da casa que o "Delegado" cultivava outras paixões, como a dos livros e revistas da época, estas cuidadosamente encadernadas.

Num artigo memorável, publicado, salvo engano pelo jornalista Mário Adolfo, no Jornal Amazonas em Tempo, tomei conhecimento de um fato pelo qual José Ribamar Affonso ganhou para sempre meu profundo respeito. Havia uma das nossas loucas de rua de nome "Gaivota"; alta e magra, vestida com roupas surradas e encardidadas, cabelos em desalinho, ela vivia a subir e descer a Avenida Getúlio Vargas acompanhada de dezenas de cachorros. Era Ribamar quem a alimentava diariamente. "Gaivota" recusava receber o prato das mãos de um outro humano; ele respeitava seu gesto de recusa. Sem dúvida uma recusa simbólica. Por isso, ele colocava o prato de comida no chão; só então, ela aceitava a oferta daquele homem de baixa estatura e de uma generosidade grandiosa. Esse tipo de solidariedade é uma dessas qualidades típicas dos habitantes de pequenas cidades, como era a Manaus do início da Zona Franca, lá pelo final dos anos 1960, e que ainda não foi de toda perdida, apesar do cenário de competição homicida e camaradagem hipócrita da sociedade pós-moderna. Ribamar foi um desses cidadãos que soube honrar a tradição da outrora "Cidade Sorriso".

Hoje, quando já não estão mais entre nós essas duas personagens singulares, a cidade de Manaus vive o desafio do desmonte da instituição psiquiátrica e a criação de serviços que substituam o hospício. Que o exemplo de José Ribamar Affonso, o querido "Delegado do "Diabo", ilumine os caminhos da construção de uma sociedade sem manicômios. Que as novas "Gaivotas" continuem a merecer a generosidade dos seus contemporâneos nesse desafio civilizatório que é incluir os loucos na cultura dos nossos tempos. Com isto, a sociedade civil e a sociedade política estarão ajudando a abrandar um preconceito social fruto de 250 anos de confinamento dos loucos em manicômios, que lhes subtraiu a humanidade e a cidadania. Posted by Picasa

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