junho 09, 2006

Para entender o futuro

Foto: Rogelio Casado, Hospital Colônia Eduardo Ribeiro, 1980














São passados 26 anos depois que fiz essa fotografia no pátio da Ala Masculina do então Hospital Colônia Eduardo Ribeiro. Liderados por Silvério Tundis, trabalhadores de saúde mental haviam denunciado o perverso conluio entre violência contra portadores de sofrimento mental e corrupção administrativa.

Estávamos no final da ditadura militar. Governava o estado do Amazonas o Professor José Lindoso. Silvério seria conduzido pelas mãos de Francisco de Paula, Secretário de Estado de Saúde, para a direção do velho hospício de Manaus. Fui por ele indicado para responder pela direção clínica. Minhas credenciais: durante dois anos, entre 1978 e 1979, fiz residência médica em Psiquiatria Social na Associação Pró-Reintegração Social da Criança e no Instituto de Psiquiatria Social, em Diadema-SP, tendo como um dos preceptores o psiquiatra Osvaldo Di Loretto. Detalhe: essas duas instituições estavam entre outras que patrocinaram a vinda de Franco Basaglia ao Brasil. Me recordo da alegria com que ele foi recebido na Comunidade Terapêutica onde cuidávamos de crianças no primeiro ano da residência médica.

Basaglia foi o pai da psiquiatria democrática. No final dos anos 60, depois de abandonar a cátedra de psiquiatria, insatisfeito com os limites impostos pela academia, a partir de Gorizia, em seguida Trieste, ele e sua equipe foram desmontando as instituições psiquiátricas por onde passavam até a aprovação da Lei 180, em 1978, que criava uma rede de atenção em saúde mental substitutiva ao hospital psiquiátrico. A experiência brasileira muito se inspirou no modelo italiano, a exemplo do município de Santos que, em 1989, colocou o Brasil no mapa mundial das experiências de mudança de paradigmas obsoletos.

Sob este signo, em 1980, os trabalhadores de saúde mental iniciaram em Manaus a Reforma Psiquiátrica que se disseminava por todo o Brasil. Começavamos aí uma história que mudaria a face da atenção em saúde mental no estado do Amazonas.

Em certas circunstâncias, a fotografia aqui publicada vem à minha memória. Foi o caso, na manhã de 8 de maio de 2006, quando me dirigi ao Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Silvério Tundis para atender a TV Amazonas que ali fazia uma matéria sobre o novo modelo de atenção à saúde mental dos brasileiros que vivem no Amazonas. Em nada esse modelo lembra a tragédia que abateu inúmeras vidas confinadas no único hospital psiquiátrico existente em território amazonense.

Observe novamente a fotografia. Olhe detidamente o destaque dado no canto superior esquerdo. Ali se veem dois símbolos de culturas absolutamente distintas: uma cruz e um arco e flecha. No princípio havia um arco e uma flecha, a ele se sobrepôs uma cruz. Foi Marcus Barros, atual presidente do IBAMA, que viveu entre os ticunas do Alto Solimões, quem me chamou atenção para a representação gráfica das duas civilizações. Desnecessário comentar as implicações desastrosas desse encontro. Os números falam por si: mais de 6 milhões de índios desapareceriam da face da terra, abrindo uma dívida social para as centenas de etnias sobreviventes.

O autor dessa representação, que colhi no "pátio dos condenados" - e que mereceu um registro em filme do cineasta David Pennington e do artista plástica Roberto Evangelista - é um dos anônimos pacientes que ali perdeu a cidadania e a humanidade. Talvez, quem sabe, possa ter se beneficiado pelos novos ares respirados por todos os anos 1980. Mas, se ele continua ignorado, sua representação foi colhida por um fotógrafo aprendiz de feiticeiro, que fotografava o que via e registrava o que ainda não sabia olhar. Que essa foto sirva de alerta contra todas as armadilhas que retiram do homem a liberdade do viver, e que modifique nosso olhar sobre todas as coisas do mundo, em particular sobre o futuro dos portadores de sofrimento mental. Posted by Picasa

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