Arte de Rene Magritte
Em defesa da Reforma Psiquiátrica brasileira: contra os elitismos corporativistas e contra a covardia !
Num país marcado pela existência de graves injustiças sociais que a condução política jamais ousa enfrentar radicalmente, chama a atenção o singular processo representado pela Reforma Psiquiátrica Brasileira.
Nela, a situação injusta e desumana de milhares de portadores de sofrimento mental, reclusos em hospitais psiquiátricos, vem sendo objeto de um incisivo enfrentamento. Ao longo dos últimos 20 anos, num movimento que já possui lugar na história e firme presença no cenário nacional, conquistas importantes vêm sendo obtidas, no que diz respeito à garantia dos direitos e à oferta de cuidados aos portadores de sofrimento mental.
Denúncias sistemáticas e bem documentadas de violações aos Direitos Humanos nas instituições psiquiátricas chegam ao conhecimento público desde a terrível situação de Barbacena, em 1979, até a divulgação recente de mortes ocorridas em sinistros hospitais psiquiátricos brasileiros. Desde 1992, no Rio Grande do Sul, surgem novas legislações estaduais e municipais que afirmam os inalienáveis direitos de cidadania dos portadores de sofrimento mental, culminando, em 2001, na aprovação da Lei Federal 10.216.
Modelos assistenciais substitutivos aos hospitais psiquiátricos, guiados pela lógica do cuidado, da inclusão e da reinserção social, demonstram concretamente sua viabilidade e eficácia, a começar pelo exemplo de Santos, em 1989, até experiências atuais e atuantes, nos mais diversos locais do país. Em inúmeros espaços públicos de debates e deliberações, vai se delineando, com clareza crescente, uma política voltada para a conquista da cidadania, sempre negada aos chamados doentes mentais, desde o I Encontro Nacional de Trabalhadores de Saúde Mental, em Florianópolis, 1978, até a importante III Conferência Nacional de Saúde Mental, no final de 2001.
Nestas diversas frentes, cabe ressaltar a atuação firme e constante dos movimentos sociais e das entidades profissionais, cobrando do poder público seu compromisso com a efetivação de uma Reforma Psiquiátrica verdadeira. E todo este processo vai se constituindo num verdadeiro patrimônio de toda a sociedade brasileira, no qual a vida de dezenas de milhares de brasileiros é fortemente impactada no seu cotidiano, ampliando-se a sua qualidade, proporcionada por uma atenção efetiva, realizada eticamente, em regime de liberdade e convivência social através dos CAPs, hospitais-dia, moradias protegidas, centros de convivência.
Destacamos o cenário adverso em que se dão estas importantes conquistas: num contexto nacional onde as políticas sociais são escassas e pobres, enfrentamos ainda a existência de um parque manicomial de cerca de 40 mil leitos, consumindo ainda quase meio bilhão de reais por ano dos recursos do SUS. É a chamada indústria da loucura, embora não tão rentável como já foi, que ainda exerce inescrupulosamente, em todo o país, o destrato, o descuido, o abandono, atingindo pesadamente um grande contingente dos portadores de sofrimento mental brasileiros.
Neste cenário surpreende, causa repúdio as declarações “de encomenda” da Associação Brasileira de Psiquiatria, representada pelo seu presidente Dr. Josimar França, (veiculado no Jornal O Globo, de 20/07/2006) que, se pretextando “ofendido” com a associação entre certas condições assistenciais, ainda persistentes, e a existência de violação de Direitos Humanos na área da Saude Mental, aproveita para desembarcar de vez, com todas as suas malas, do bonde democrático do processo da Reforma Psiquiátrica e atacar as suas conquistas.
Usando e abusando de falácias, o seu artigo na verdade tem como finalidade advogar, na contra mão das tendências mundiais, a favor da manutenção dos hospitais psiquiátricos como feudos corporativos e contra o incômodo fim dos privilégios dos empresários da Psiquiatria e de uma certa elite acadêmica. A Psiquiatria de gravata utiliza destes estabelecimentos como campo privilegiado para experimentos locais, teleguiados pela indústria farmacêutica mundial.
Na verdade, desde o início da Reforma Psiquiátrica no país, diferentemente, a maioria dos milhares de psiquiatras brasileiros, parceiramente, sustentam o processo no cotidiano dos Serviços Substitutivos e nunca deixaram de combater e colocar obstáculos para que se pudesse fazer avançar a democratização da assistência à Saúde Mental. Mas não é nova essa posição que sempre apostou no insucesso da Reforma, que a difamou, que mentiu, que buscou manipular familiares e a opinião pública, impedindo de todas as formas o acesso da sociedade brasileira à terrível realidade dos hospitais psiquiátricos. O que é novo é a sua exposição desesperada diante do êxito e da expansão dessa política pública, nesse último governo. É o uso da autoridade da entidade nacional dos psiquiatras, que,desde 1990, vinha apoiando a Reforma Psiquiátrica Brasileira, através de vários manifestos e posicionamentos oficiais, para a veiculação das atuais teses corporativistas das entidades médicas, lamentavelmente associadas à inconformidade com as exigências de um relacionamento mais democrático dos médicos no interior das equipes multiprofissionais de saúde, de um relacionamento mais democrático dos profissionais de saúde para com os usuários dos serviços substitutivos, de um relacionamento mais horizontal entre os vários saberes e profissões que hoje constroem o Sistema Único de Saúde.
O que fica evidente, na extemporânea linha de argumentação do dirigente, é o seu alinhamento com a política corporativista do ATO MÉDICO, é a defesa da manutenção do hospital como a garantia da existência de um feudo, onde o poder médico ainda possa ser exercido e defendido, a despeito do custo negativo que isso possa ter para a vida e para o tratamento dos portadores de transtorno mental. E a defesa de uma pratica médica onde seja possível ao profissional se desresponsabilizar diretamente pelo cuidado dos pacientes de quem ele trata, reduzindo a sua atuação a uma mera prescrição farmacológica.É a tentativa de não participação do médico no cotidiano dos cuidados hoje desenvolvidos nos serviços substitutivos de forma integrada por todos os integrantes da equipe multiprofissional. Como sabem aqueles que realmente trabalham em serviços territoriais: paciente preso (internado) no hospício, médico solto; paciente solto no território, médico preso no serviço! Tentativa deplorável pela posição que representa: inteiramente descomprometida com a dimensão pública, estritamente voltada para interesses coorporativos e privados. Deplorável pelo seu alinhamento tão estreito, com os interesses mesquinhos da “indústria da loucura”, representada pela FBH, que sempre reuniu a fauna faminta dos detratores da Reforma Psiquiátrica.
Contrapondo-se ao covarde ataque corporativista, este manifesto vem reafirmar a beleza e o vigor da Reforma Psiquiátrica em andamento. Sustentamos a defesa deste alicerce de um modelo de assistência para o sofrimento mental, e de uma presença na cultura para a diferença, que são motivos do mais justo orgulho para a sociedade brasileira.
Na III Conferência Nacional de Saúde Mental, órgão máximo do controle social do SUS - em dezembro de 2001, reuniram-se cerca de 1.250 participantes dentre os quais mais da metade eram usuários, familiares, representantes de movimentos sociais e membros usuários de Conselhos de Saúde. Neste fórum expressivo e amplo, manifestou-se de forma inequívoca a deliberação pela extinção progressiva dos hospitais psiquiátricos e da implantação de um modelo substitutivo de assistência ao sofrimento mental. Reiterando nosso apoio a esta corajosa decisão, as entidades e instituições abaixo-assinadas convocam os numerosos atores, defensores e participantes da construção da Reforma Psiquiátrica a defendê-la conosco, mais uma vez, contra a ação covarde de todos os manicômios e dos seus patrocinadores.
Conselho Federal de Psicologia
http://www.pol.org.br/noticias/materia.cfm?id=618&materia=943
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