agosto 13, 2006

Ricardo Aquino critica os presidentes da ABP e do CRM-RJ

Foto: Rogelio Casado - Hospital Colônia Eduardo Ribeiro - pátio da
Ala Feminina - Manaus- AM, 1980.














Nota: A psiquiatria conservadora e carcerária, algumas vezes chamada de psiquiatria organicista, foi e continua sendo numericamente superior, seja nos serviços públicos, seja na academia. Nem por isso, deixou de ser tecido em todo o país, ao longo de duas décadas, uma rede de saberes e fazeres profissionais comprometidos em por fim à barbárie do modelo manicomial, como o registrado na fotografia acima. O psiquiatra Roberto Aquino é um desses personagens. Leia sua resposta à ABP, tecnica e politicamente competente, e compare com a posição adotada pelo presidente da ABP e seus pares. É de corar de vergonha; pelo menos para aqueles que ainda são capazes de demonstrar vergonha cívica.

Resposta à ABP

Ao Sr. Ministro da Saúde e Procuradores, Gerentes de Saúde, Gestores, Colegas:

Rio de Janeiro, 25 de julho de 2006

Assisto estarrecido às iniciativas daqueles que se colocam na direção do atraso e do retrocesso no campo da Psiquiatria; considero oportuno me manifestar. Refiro-me às iniciativas do Presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, Sr. Josimar França e às do Presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro, Sr. Paulo César Geraldes. Ambos se colocam na perspectiva de se auto-nomearem enquanto porta-vozes de uma pretensa “cientificidade” psiquiátrica e em nome desta condenam as práticas e resoluções do Ministério da Saúde e do Movimento de Reforma Psiquiátrica.
Estas iniciativas se somam às dos que pretendem implantar uma lei do ato médico e visam restringir as ações médicas e em particular as do médico psiquiatra àquelas afinadas com os pressupostos nos quais eles se baseiam.

Quem são eles e o que querem?

Eles representam uma corrente dentro do campo da Psiquiatria e os agentes que eles privilegiam como parceiros são os empresários da saúde e os laboratórios farmacêuticos (ambos não são especialidades médicas) ao lado de médicos que se dispõe a fazer lobotomia, dar eletrochoque, conferir minoridade social ao louco, entupir de remédios e recolher em manicômios psiquiátricos os denominados “doentes mentais”, quiçá por toda a sua vida.

Em seu nascedouro a Psiquiatria, de fato, internou, medicalizou, confinou e condenou ao silêncio. Isto tem 250 anos!
A psicanálise é uma venerável senhora de mais de 100 anos de idade e as experiências com medicamentos já contam 50 anos; a década de 1950 conheceu as terapias. Umas tantas outras experiências devem ser lembradas: as práticas grupais; a sociologia; a arte; a filosofia; a crítica das prisões; as práticas pedagógicas; as lutas pelos direitos civis e de gênero; enfim, uma grande massa de conhecimentos foi acumulada - destaco a experiência de reorganização da assistência psiquiátrica de países como EUA e Itália, e de cidades como Madrid e Buenos Aires, entre tantas -, para enfatizar que é um crime (a palavra é esta: crime) reduzir os esforços que podem ser envidados no sentido da promoção da saúde e de valorização da vida.
Ou seja, estes senhores representam a redução de uma complexidade de fatores a iniciativas de um médico de um tipo de psiquiatra. E a experiência dos enfermeiros, dos assistentes sociais, de artistas, dos grupos de auto-ajuda, dos alcoólicos, narcóticos e neuróticos anônimos, dos psicólogos, dos terapeutas ocupacionais, dos doutores do riso, de tantas ações, experiências, iniciativas e agentes profissionais? E, mais recentemente dos denominados “cuidadores em saúde mental que são pessoas das comunidades com treinamento e supervisão mas sem formação acadêmica? E o papel das associações de familiares? Em síntese, é um crime reduzir este universo que lida com o doente mental e acumulou saberes e experiências; querer anular tudo isto para valorizar a prática de um psiquiatra que se baseia em princípios denominados no jargão da especialidade de “organicistas” e que despreza a dimensão psicológica, inconsciente, social, coletiva, simbólica etc.

Eles representam, apenas, um setor dentro do campo da especialidade psiquiatria, um ramo da medicina. Por uma questão de compromisso com a verdade eles deveriam citar os outros segmentos de psiquiatras, com outras experiências práticas e teóricas que denunciam o arcaísmo dessa concepção e que propugnam, em conseqüência, por mudanças e avanços da Reforma Psiquiátrica.
O fato de estes senhores estarem encastelados na cúpula de algumas entidades ou associações não lhes outorga o direito de falarem em nome de todos os psiquiatras ou da Psiquiatria!

É o meu caso enquanto médico e psiquiatra. Fiz 3 anos de residência médica em psiquiatria e especialização na UERJ, onde me formei em 1977. Estou em vias de completar 30 anos na especialidade da qual me orgulho, trabalhando como psiquiatra desde então em consultório e na rede pública federal.
Sou médico psiquiatra e freqüentei nesses anos todos, sem exceção, os grandes hospitais do Ministério da Saúde localizados na cidade do Rio de Janeiro. Neles ocupei todos os cargos de direção e prestei assistência em todas as modalidades: enfermarias, ambulatório e pronto-socorro. De algumas coisas tenho orgulho, cito algumas: dirigi o Hospital Odilon Galotti e consegui fechá-lo - fui o seu último diretor quando eu também era vice-diretor do Centro Psiquiátrico Pedro II -; presidi Comissão de Ética Médica, presidi Centro de Estudos - ambos os cargos eleito por colegas; dirigi serviços e projetos; trabalhei 9 anos em Programa de Residência Médica em Psiquiatria, reconhecida pelo MEC, colaborando na formação de gerações de psiquiatras como professor, supervisor, preceptor. Para todos esses eu pude passar uma semente de que a psiquiatria deve cuidar da Vida que habita em cada um, mesmo que ela esteja mortificada pela doença mental; que a psiquiatria asilar e anacrônica que estes senhores defendem investe na doença, no silêncio e na Morte; aprendi e transmiti também que o compromisso ético que temos com a Vida de cada doente nos leva a lançar mão do máximo de conhecimentos humanos acumulados em qualquer área da atividade humana para confortar, minorar a Dor, amparar, recuperar e ampliar a capacidade laborativa, afetiva e de circulação social; e que, em muitos casos, tantos outros agentes de saúde (técnicos), vizinhos e familiares, tantas experiências, da arte, do lazer, da solidariedade, do riso, do convívio foram e são tantas vezes mais essenciais e decisivas no confronto com a Doença. Por isto reitero que seja um crime contra a Vida o que eles propõem.

Atualmente trabalho na antiga Colônia Juliano Moreira, hoje municipalizada. Almejo ver um dia ela fechada para que se encerre o ciclo funesto dela, como o do Juquery, de Barbacena, entre tantos, de serem verdadeiros currais (des)humanos, locais da violência, da lobotomia e do eletrochoque. Ela chegou a abrigar 3500 internos. Hoje moram cerca de 700 pessoas. Com eles é desenvolvido um amplo, sério, qualificado e persistente trabalho de re-inserção social: muitos foram salvos e saíram; outros têm a sua condição de vida e saúde melhoradas e são tratados com toda a dignidade e respeito.
Os desmandos e distorções que ocorreram não são fortuitos e nem foram ocasionais ou circunstanciais: eles são os desdobramentos da lógica que eles postulam. Eles querem naturalizar e reduzir à doença o que é de outra ordem.
Não queremos a volta do passado que esses senhores representam!!! Esta psiquiatria falsamente médica, asilar e organicista mutilou, violentou, barbarizou, mortificou: historicamente ela cumpriu o seu ciclo: Chega!

Ingressei no Ministério da Saúde em 1980, matrícula SIAPE 0239255, e venho acompanhando com interesse o esforço de implantação do SUS e de normalização e regulação da assistência psiquiátrica co-substanciada em leis e normas. O que esses senhores defendem é a ilegalidade, a ausência de princípios reguladores para que possa valer os desmandos em nome do lucro fácil e de interesses mesquinhos retornando a assistência aos padrões de então: elitista, caótico e corruptor.
Fiz parte do quadro da Secretaria Municipal de Saúde da Prefeitura do Rio de Janeiro que realiza a fiscalização de clínicas conveniadas, aplicando o PNASH e acompanhando instituições regularmente onde pude constatar o estado de violência que ainda perdura nas clínicas particulares complementares.
Insisto e sublinho: o setor público tem que avançar na consolidação de instrumentos de normatização, acompanhamento e avaliação desses serviços para que novos crimes em nome da ciência, da paz e da livre concorrência não sejam perpetrados, posto que são vidas que estão em jogo. É contra iniciativas e ações deste naipe que estes senhores se colocam.

Assim, me estendi para deixar claro que estes senhores são da estatura do que eles representam: uma corrente dentro da psiquiatria, uma especialidade dentro da medicina, um dos agentes profissionais, ao lado de outros profissionais, ao lado de outras instituições e agentes sociais todos esses saberes, práticas, agentes, especialidades e correntes psiquiátricas lidam de alguma maneira com o sofrimento psíquico e com a doença metal.
Eles cometem um deliberado ato de manipulação dos fatos para encobrir o essencial: eles falam a partir do ponto de vista deles, voltados para os seus interesses, dirigidos para os seus interlocutores e não poderiam se colocar como se falassem em nome da psiquiatria: no que eles pensam eu não me reconheço.

Atenciosamente,

Ricardo Aquino
Diretor do Museu Bispo do Rosário
CREMERJ 52 29919-0
Mat. SIAPE 0239255
e-mail:ricardoaquinorico@hotmail.com Posted by Picasa

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